Pequena Aldeia: A Praça Roosevelt em disputa

pequena aldeia

por Adriana Gaeta Braga –

O começo do curta Pequena Aldeia já nos dá uma ideia do que será o filme: um argentino narra sua relação com a cidade e com o país. O “olhar do estrangeiro” é menos um estranhamento do que é visto e mais um saudável afastamento brestianiano das mazelas da cidade e de suas personagens.

Com imagens em plonglée (ou seja, sempre vistas de cima para baixo), enquadramento que também reforça o nosso olhar de espectador, aos poucos vamos nos (re)conhecendo nestas pessoas que passam anônimas pela nossa câmera/janela.

A praça Roosevelt talvez seja um dos símbolos mais representativos da “nova” cidade que está sendo almejada. Sua construção foi demorada e controversa, entrando em choque com diversos interesses econômicos, sociais e imobiliários. Antes, uma região desprezada, a Roosevelt se tornou símbolo da reinvenção urbana em uma cidade que empurra para fora de seus espaços públicos o cidadão comum.

Praça que em seu projeto original abrigaria uma floricultura e quiosques para uso comum, a Roosevelt tem, em vez disso, a estrutura ocupada pela Guarda Civil Metropolitana. No curta esses conflitos são expostos, escancarados pelo flagrante de uso do espaço público pelas diferentes tribos que ocupam a praça. Skatistas disputam lugar com os idosos. Coletores de papel são vigiados de perto pela polícia, além de “noias” pelos cantos e também os bêbados restantes da noitada nos bares do entorno.

De certa forma, a praça neste curta representa, em seu microcosmos, tudo o que São Paulo vive e é. A Rooselvelt se tornou um lugar único: praça sem árvores, praça sem sombras, praça ícone do mais árido e cimentado da cidade, a praça só pode realmente merecer este nome pela riqueza das personagens urbanas que nela desfilam e convivem, muitas vezes em pé de guerra. A Roosevelt é uma praça tão mutante como as fases da lua, onde fincar seu lugar “é um pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade”. Espaço de repouso e luta, lugar de encontro e solidão. Lugar de eclipses diários e de supernovas possíveis.

Pequena Aldeia desperta esses sentimentos contraditórios em relação à nossa paisagem paulistana. Em um momento onde o “repensar” da ocupação e do uso do espaço público está tão em alta na cidade (ciclofaixas, fechamento da Paulista aos domingos, minhocão em festa), assistir a esse curta torna-se uma experiência mais que sociológica. Diria mesmo, que nesses tempos de extremismos de polaridades, se torna uma experiência necessária.

Pequena Aldeia está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Das origens das criaturas

the masters voice caveirao

por Samuel Mariani –

The Master’s Voice: Caveirão é um curta que se relaciona com as temáticas dos filmes anteriores de Guilherme Marcondes. As técnicas de animação diferenciadas como a manipulação direta em vídeo, light writting e o pixilation ilustram bem a liberdade de criação do curta-metragem e a referência ao trabalho anterior de Marcondes, como em Tyger (2006).

A partir de uma locação real bem específica paulistana e uma premissa simples, o curta se desenrola usufruindo de uma boa direção de imagens animadas, ótimo tracking e ritmo. Assim, os espíritos noturnos da cidade ganham espaço para sua atuação temática e burlesca, além de esbanjar seu design lúgubre e bem elaborado.

Desse trabalho com o cômico e o sinistro, Caveirão também destaca uma figura policial autoritária quase humana e sua perseguição aos fantasmas boêmios. Porém, a razão desta caçada se enrola à existência deste personagem vigilante de uma maneira em que a narrativa em primeiro plano parece se justificar retroativamente, o que, ao meu ver, perde para a liberdade expressiva das animações do curta, que me parece muito mais atraente.

Dada esta narrativa justificada ao curta, parece-me pouco comparado à carga folclórica e de herança simbólica das animações, mesmo porque ela ganha mais importância em termos de montagem, pois a exposição do universo “animado” possui mais tempo de tela e é feita de maneira muito apurada.

De qualquer maneira, a locação poluída e a iluminação escassa contribuem para legitimar as animações que dançam em um cenário real, com referências refinadas e transições bem planejadas entre segmentos.

Para além da ideia do vigilante, me encanta no trabalho de Guilherme a sobrevida que o curta-metragem tem quando deixa livre para a imaginação a causa/origem dessas criaturas noturnas paulistanas, mistério e abertura que marca seu trabalho e que o expande para infinitas possibilidades.

The Master’s Voice: Caveirão está na mostra Panorama Paulista 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A Nau dos Loucos: o quinto Império

a nau dos loucos

por João Pedone –

Eu, enquanto produtor do filme A Nau dos Loucos, sinto-me na obrigação de adverti-lo antes de começar a escrever. Não participei diretamente do processo criativo do filme nem tenho intenções propagandísticas, escrevo tão somente porque o filme me toca. Se alguém perceber aqui faltas para com a ética de crítico, peço-lhe desde já que me perdoe a falha indesejada [N.E.: A Nau dos Loucos foi produzido como um exercício de realização na ECA-USP e exibido no festival dentro do programa Cinema em Curso].

O filme abre com seus créditos iniciais em silêncio, e termina em silêncio sem créditos, de cara rompendo com a convenção estabelecida de experiência cinematográfica. Apresenta-se como um anti-filme. Esse silêncio sepulcral – artificial – atravessa toda a primeira sequência do filme: longa, não dramática. Há duas personagens, são músicos, mas o filme vai adiar sua apresentação.

Há uma ficção: as pessoas estão deixando São Paulo. É uma narração em voice over que, de maneira muito curiosa, se sobrepõe a imagens quotidianas do trânsito, e à figura também absolutamente quotidiana de um vendedor ambulante. O que continua a nos estranhar é o silêncio que toma conta da cidade de São Paulo.

Depois dessa exposição um tanto árida do cenário de um suposto êxodo coletivo, os músicos aparecem em primeiro plano para tocar sua música. Da mesma maneira que essas personagens se inserem (sua ação, suas roupas, sua fisicalidade) de maneira completamente destoante das outras personagens e do cenário, a montagem do filme as isola em um plano “à parte”: cenário sem profundidade e situação acronológica. Essa dupla está evidentemente destacada do filme, eles são o comentário dos realizadores sobre o próprio filme.

Felizmente, ao contrário de muitas obras autoindulgentes, a voz dos realizadores aqui se faz necessária para esclarecer a absoluta hermeticidade dos primeiros minutos de filme. Assim, quando eles cantam “vai embora, povo ingrato” e “esse silêncio que agora impera é o que sempre desejei”, completam o sentido do filme, mostrando-nos que a ficção que – à maneira de Othon, de Straub e Huillet – se desenrola sobre o pano de fundo da realidade é a ficção que os próprios diretores projetam sobre a cidade. O silêncio é o próprio desejo deles por silêncio que se impôs à representação. Há uma busca do filme por reencontrar paz, nem que seja fazendo tabula rasa da cidade.

Se o barco, ao final do filme, busca escapar, o plano de encerramento parece estático, margeando o rio sem jamais se desprender da visão da cidade. Há um evidente afeto pela cidade (“foi aqui que eu nasci, é aqui que morrerei”), que faz do filme um hino de amor a São Paulo – o que nada parece carregar de ironia. Um hino de amor e a projeção de um futuro melhor. Se essa projeção é romântica e idealista, isso não a desqualifica, porque essa parece ser a única saída possível. Já que a realidade material da cidade de São Paulo não oferece alternativas de transformação, o único caminho é o gesto desmedido, a negação da razão, a projeção de uma ficção subjetiva sobre uma realidade castradora, lembrando que a projeção, assim como o projeto, aponta para o futuro. Afinal, “nada deve parecer impossível de ser mudado”.

A Nau dos Loucos está na mostra Cinema em Curso 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Master Blaster: descoberta de humor na Nebulosa 2907N

master blaster

por Amanda Martinez –

Um dos filmes com título mais comprido do festival e, ao mesmo tempo, não muito esclarecedor de início, com certeza está entre os que mais conseguiram entreter a plateia. O mistério a respeito do conteúdo de Master Blaster – Uma Aventura de Hans Lucas na Nebulosa 2907N, dirigido por Raul Arthuso, serve sem dúvida como elemento importante para impactar o público positivamente, quando se revela em meio a letreiros russos uma inesperada e divertidíssima comédia.

Em um misto de Eisenstein com ficção científica, a chamada Cidade-trabalho com dois sóis é apresentada sob o olhar sério e nórdico de Hans Lucas. O agente intergaláctico investiga o aparecimento de um novo sol vermelho que brilha constantemente, mudando o ritmo da metrópole, que passa a trabalhar sem descanso. Um ar de futuro distante engloba o discurso da narração, intrigada em compreender os seres do estranho lugar, enquanto a controversa estética de um preto e branco ruidoso lembra filmes da antiga União Soviética.

Sem fazer piadas diretas, os risos são rapidamente arrancados de quem assiste através de quebras entre a visão subjetiva do personagem e monólogos dos moradores da cidade, quase em uma espécie de reportagem realizada pelo agente. Isso se deve ao fato de a misteriosa e caótica cidade em muito se assemelhar a uma São Paulo contemporânea, local onde coincidentemente se dá a exibição do curta: há o ambulante que vende água, o vendedor de óculos escuros, os operários, todos dando seus depoimentos em bom português coloquial. A excessiva seriedade com que tal realidade tão familiar é encarada, repleta de suspense, se torna o trunfo humorístico em Master Blaster, criticando o ritmo frenético das metrópoles através de uma grande sátira.

A forma de humor empregada no curta é muito interessante e se destaca de comédias mais convencionais, onde a graça é o personagem atrapalhado. Hans Lucas, ao contrário, é um homem inteligente e dedicado, e é exatamente isso que o torna cômico. O filme conduz os espectadores através de piadas que não se focam em menosprezar ou expor, mostrando que a ironia na comédia pode ser tão eficaz quanto o famoso “rir da desgraça alheia”. Além disso, o timing dos acontecimentos é excelente, não tornando o filme arrastado e fazendo com que nem só uma risada seja falha.

Ao final da exibição, o primeiro filme na sessão Panorama Paulista 3 tem seu resultado claramente reconhecido pelo público. O final heroico de Hans Lucas é recebido com uma grande salva de palmas pelos verdadeiros habitantes da Nebulosa 2907N, espectadores de um filme leve, de bom entretenimento e criativo.

Master Blaster está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A Era de Ouro: o palco e a verdade

a era de ouro

por Bianca Elias –

A vida em torno de festas robotizadas pelas roupas pretas e o eletrônico tem grau de normalidade que vai dos paulistanos aos cearenses. Não cabe falar de uma pureza de raiz do paulistano que cresceu no coração do progresso econômico, pois quando não motorizada, a identidade mais miscigenada é a sua. Falamos aqui, ou falam Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, dos efeitos da cidade que perde suas convicções naturais e se transforma em impérios modulares de coqueiros e arranha céus de vidro; homens que se auto enclausuram com a identidade mantida no sotaque e mais nada.

A Era de Ouro aparenta um resultado final (ao menos até agora) de ensaios sobre a vida dentro dos muros invisíveis e sobre quatro rodas. Os realizadores em codireção sintetizam o que é brincar de atuar para a conquista do sucesso profissional e, hoje não desvinculado, pessoal. São tomadas diretrizes de duração de planos, escolhas de cores e palavras corporativas para a imersão no espectro burguês que não se discernem da presença preponderante desses elementos ermos na vida real: um incômodo invasivo toma conta do espectador que, mesmo não indo na contramão da ideologia mercadológica que se retrata, identifica um constrangimento ainda que não saiba qual é. O contato entre Simone e David, que se viram pela última vez no Ceará, acontece pela vitrine do viver em São Paulo e, por conta das tentativas vindas dele, de se resgatar o elo antes vivo e poético entre os dois. Um passado teatral que os conecta respinga apenas na teatralidade de Simone na vida real.

E e Salomão, ambos no festival deste ano e codirigidos por Miguel, em mesmo nível, mas em teor documental, resgatam pelo sarcasmo de suas imagens e silêncio a representação dos estacionamentos e do templo da Igreja Universal do Reino de Deus da mesma maneira em que se perpetua um papel para os personagens da ficção: ao alcance da aprovação em sociedade cria-se um discurso convincente sobre si mesmo e para si mesmo. O Completo Estranho (também em mostra) de Leonardo Mouramateus se situa dentro do mesmo universo em Fortaleza e cria o cenário para falar da sobrevivência conquistada através das máscaras, onde perucas e danças ensaiadas fazem parte de uma encenação pensada para ser verdadeira.

Relações esfriadas pela vida e outras esquentadas pela ideia de ser arte consagram-se e, sem força, acordam no dia seguinte sem esperança para ser. Numa descaracterização dos personagens, que vem sem informações adicionais que não seus nomes e vícios de entonação, poderíamos pensar no filme sendo realizado diegeticamente em qualquer lugar do Brasil, quiça do mundo.

Os dois diretores traçam caminhos que passam pelo entendimento da fraqueza relacional e/ou o fortalecimento inevitável das barreiras de concreto, para que juntos pudessem sintetizar um propósito, um fim em si: o alcance de consciência na retomada da atuação teatral. A Era de Ouro termina com Simone cedendo aos textos por ela conscientemente esquecidos e os declamando em voz alta, aos prantos, exterminando sua outra aparência e dando espaço ao riso por ferir David com seu cartão de visita de vidro – o papel dela o fere, e lhe invade o riso leviano do reconhecimento. Se atuar é estar em palco, então é o palco a única possibilidade da verdade.

A Era de Ouro está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

O Táxi de Escher: o tempo do espaço

o taxi de escher

por Valéria Tedesco –

A presença do infinito nas obras de M. C. Escher pode ser considerado um de seus pontos mais marcantes. A ideia de uma representação que sempre retorna para o início de uma maneira diferente da original, formando assim uma sequência infinita de caminhos e possibilidades, são constantemente apresentadas pelo artista em suas obras.

Logo no início do curta-metragem O Táxi de Escher, exibido na sessão Panorama Paulista 1, a referência ao universo idealizado por Escher fica clara desde o primeiro momento. A cena de abertura, com a entrada e saída de pessoas do mercadão, aparecendo e desaparecendo ao cruzar uma linha imaginária no centro do quadro, é a primeira relação de desconstrução entre espaço e tempo que podemos levantar na narrativa.

O filme está em constante desconstrução. O retorno as cenas iniciais com perspectivas e acompanhamentos diferentes. As mudanças de enquadramento atuam quase como um novo personagem, o único que parece estar presente em todos os momentos, é através da mudança de quadro, seja ele fixo ou com a movimentação da câmera, o filme percorre todos os caminhos dos personagens que, no final, tornam-se apenas um.

A narrativa retorna o tempo todo para diversos elementos apresentados em cenas anteriores, como quem diz, olhe mais uma vez, preste mais atenção. As voltas que o filme percorre, mais do que representar a busca do personagem por respostas internas e externas a ele, instiga o espectador a observar melhor as situações e objetos ao redor, e perceber que eles podem ter mais do que um, dois, três significados. Em diversos momentos, as mesmas falas são utilizadas com abordagens diferentes, reforçando a ideia de pluralidade de interpretações, mesmo para uma ação idêntica.

De todas as maneiras de interpretar o filme de Flavio Botelho e Aleksei Abib, fico apenas com a sensação de que não se faz possível, tampouco necessário, criar uma definição limitada sobre a narrativa, mas sim uma reflexão em constante movimento sobre os (des)encontros e suas consequências.

O Táxi de Escher está na mostra Panorama Paulista 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

O muro do arrebatamento

salomao

por Ivan Ribeiro –

Vivemos em uma época em que grupos religiosos, sejam eles ligados a qualquer crença, têm sido arquitetos de ações diversas e mudanças relevantes para a sociedade, ao redor do mundo, de um modo geral. Entenda “relevantes para a sociedade” por diversos aspectos. Proporcionando ajuda humanitária a populações necessitadas e devastadas pela miséria ou proporcionando guerras intermináveis. Propagando o amor ao próximo, a compreensão e, no mínimo, a tolerância ou disseminando preconceitos e ódio. Discutindo, junto à sociedade civil, temas de interesse público como o aborto, por exemplo, ou procurando impor seus preceitos e regras através de alianças e “cartadas” políticas.

No Brasil, onde a constituição declara que o Estado é laico (neutro ou imparcial no campo religioso, não apoiando ou discriminando nenhuma religião e não permitindo que nenhuma delas interfira em decisões sociopolíticas), temos visto, incoerentemente, o crescimento da influência cristã, sobretudo dos evangélicos, sobre as práticas políticas e ações do governo. Isso fica evidente em determinadas situações como, por exemplo, na inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, ocorrida oficialmente em 31 de julho de 2014, cerimônia à qual estiveram presentes diversos políticos brasileiros de alta cúpula, incluindo o prefeito da cidade, o governador do estado e a presidenta da nação. Presenças de importância estratégica no evento em ano de eleições.

Os líderes evangélicos e suas bancadas políticas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, têm cada vez mais demonstrado seu poder e influência em assuntos vitais de interesse comum da sociedade deste país. A construção do já citado Templo de Salomão, além de ser obra de intesse dos fieis da IURD por se tratar de mais um local de orações e prática religiosa diária, foi também vista pela mídia e diversos segmentos da sociedade como uma demonstração física e visual deste poder.

E é sobre o surgimento desse “colosso arquitetônico” em plena região central da maior cidade do país que trata o preciso, sucinto e, ao mesmo tempo, assustadoramente poético, Salomão, curta-metragem dos diretores Miguel Antunes Ramos e Alexandre Wahrhaftig, também responsáveis pelo roteiro, produção, fotografia e edição do filme.

É por meio de imagens dos tapumes que cercam as obras do imenso templo que os diretores nos apresentam a monumentalidade do que está para surgir. Os tapumes são decorados com plácidas ilustrações do prédio que terá suas instalações erigidas no local. Gigantescas colunas, paredes imponentes de pedra impenetrável, paisagismo e arquitetura de deixar qualquer crente ou ateu sem fôlego e de pêlos eriçados, por onde, nas mesmas imagens, passeiam pessoas felizes, sorrindo, casais de mãos dadas com seus filhos, fieis tão pequenos perplexos diante da grandeza da obra de Deus (e dos homens), ofuscados não pelo sol que os acolhe, mas pelo matiz dourado do templo que acolhe e ofusca ainda mais.

Contrastando com os paineis que protegem a construção e a enchem de mistério e promessas de dádivas sem fim estão os transeuntes que passam pelo bairro, em frente aos tapumes. Pessoas comuns. Gente que vai de lá para cá atrás de seus afazeres diários, de seus empregos, preocupações cotidianas, vidas que seguem enquanto aguardam (ou não) a conclusão das obras atrás do muro. Gente que continua existindo e sobrevivendo independentemente do que é erguido no local.

Da construção do templo só ouvimos os sons de máquinas, tratores, escavadeiras, martelos, serras, ferramentas tão humanas que darão forma a obra tão divina. A brilhante direção de som do filme deixa no imaginário do espectador a relidade por trás daquelas tapadeiras que exibem o que foi idealizado por seus engenheiros e arquitetos. Mesclada ao som dos trabalhadores, começa a crescer, em off, a voz de um pastor que prega maravilhas. O pastor, possivelmente repleto da inspiração do Espírito Santo, se empolga cada vez mais, num ritmo e intensidade crescentes, exaltando-se e exaltando o poder (de sua fé) de Deus:

“Depois da tempestade vem a bonança”. “É preciso existir guerra para que haja vitória”.

Os tapumes já não existem mais. Andaimes imensos, intrínsecas teias enormes de barras de ferro, emaranhados de madeira, pregos e metal santos surgem na tela diante dos olhos extasiados ou indignados do espectador da sala de cinema.

O Templo de Salomão vai surgir, o templo está de pé, Aleluia!

Enquanto isso, as pessoas na rua apenas passam. E param. E seguem.

E Salomão, sem fazer qualquer crítica contrária nem apologia à construção do Templo ou à IURD e seus representantes, deixa para o espectador a responsabilidade da reflexão. O que é necessidade real e o que é dispensável? O que é fundamentalismo e o que é fé? O que é realidade e o que é utopia? O que está à vista o que se faz oculto? O que é caridade e o que é ostentação? O que é divino e o que é humano?

Mas uma certeza fica. Este deus tem uma nova casa na Torre de Babel que é esta cidade sulamericana com nome de santo. Paraíso para uns, inferno para outros tantos.

Hosana nas alturas!!!!!

Salomão está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Dos vazios da Pauliceia

E

por Thiago Zygband –

São Paulo movimenta-se em tédio. Mitose da compulsão e da rotina, carros, monocromia, prédios, gentrificação e a expansão irracional de certa lógica perversa. Diz-se que a cidade não pára, a cidade só cresce. Serão os deuses testemunhas? Se parece inelutável o destino, ao menos fazemos cinema.

E, dos diretores Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos, é uma interessante perspectiva sobre tais fatos. O documentário vai ao cerne da autorreplicação e do aparente nonsense da metrópole bandeirante ao analisar uma de suas mais gritantes manifestações: os estacionamentos. Crescem em vertigem esses espaços silenciosos, mas que não surgem do nada – os depoimentos colhidos nos lembram que aqueles lugares também têm história e afetos: um era (saudoso) cinema-de-bairro, outro a casa do papai, um terceiro a da vovó, um quarto, um quinto…

O documentário assume ares de ficção científica. São estranhas, as máquinas. Abstratas, têm apelo estético e parecem existir por si próprias – de fato, não há imagem humana nítida no filme. O movimento está restrito aos guindastes, carros, catracas e, nos prédios das classes abastadas, até aos próprios estacionamentos-elevadores. “Privacidade, exclusividade, […] morar bem”, depõe uma moradora. Podemos ver suas mãos que saem de dentro de um enorme carro: o único pedaço de carne do curta.

O proprietário de estacionamento nos confessa: “Investimento pequeno, rentabilidade pequena também […] não é um grande negócio”. Nesse caso, sua serventia é apenas a ocupação do espaço; logo erguerá um prédio, grande negócio, por suposto. Assim rumamos aos céus. Eram sete pequenas casas, logo serão a concretização de uma maquete pomposa em regalias contemporâneas – elevador de automóveis, parque privativo, vigilância 24 horas e outras liberdades do espaço privado, sonhos em metros quadrados que o dinheiro pode comprar.

E são através das fotografias de satélites retiradas do Google que recordamos como eram as tais falecidas casas. Note-se: especulação imobiliária nas ruas, informação-mercadoria no mundo virtual. Também são privadas as imagens do espaço público da cidade, e por ela só se flana enquanto potencial consumidor dos anúncios que pululam no canto da tela. Logo se atualizarão as fotografias, e aquilo será somente o eterno-presente da Internet.

Em Pequena História da Fotografia, Walter Benjamin, sobre o trabalho do fotógrafo Atget na Paris do século XIX, indica que aquelas imagens privadas de corpos humanos, nas quais captou construções solitárias e indiferentes típicas da vida moderna, parecem esconder a evidência de um crime. Da mesma forma, a São Paulo esvaziada de E é como casa que não encontrou moradores, uma cidade que parece prescindir o mundo dos humanos. Onírica, surreal, espetáculo da ausência e do vazio, infinitamente cinza e melancólica. E tão estranhamente suspeita…

E está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A cidade e seus personagens

os irmaos mai

Thais Fujinaga, diretora do belo curta-metragem L, que arrebatou mais de 50 prêmios e menções, volta às telas neste ano com mais um maduro filme e repete a parceria com o jovem ator Luis Mai King. O argumento de Os Imãos Mai, sobre um fragmento de um dia de dois garotos em busca de um presente de aniversário para a avó pode parecer simples. Se no seu curta anterior a realizadora desenvolveu com muita delicadeza o drama de Tetê e Hector – de aceitação da aparência, a partir da intimidade entre os dois amigos –, em Os Imãos Mai ela privilegia novamente as relações pessoais enquanto promove um profundo olhar sobre a metrópole.

Como num road movie, o trajeto é mais importante do que o destino. A partir das andanças nas ruas, quando de fato vivenciam a cidade, é que os meninos são transformados pelo acaso, pelas surpresas, pela convivência com os anônimos que cruzam o seus caminhos. São Paulo está lá tal como é: bela, agressiva, concreta e humana. Diferentes crenças, valores, relações de trabalho, posições políticas e sociais são apresentadas de diversas formas e colaboram para traduzir a capital paulista em imagens.

A cidade que desconstroi é a mesma que transforma e recria, promove mudanças e reflete o relacionamento dos irmãos chineses, ora conflituoso, ora de bem-querer. Nesse sentido, de maneira bem orgânica, os meninos respondem aos estímulos da cidade, que por sua vez, retruca com uma sinfonia de sons, empecilhos e acidentes. Uma tentativa de mandar fazer um presente, uma chuva fora de hora, vontades, raivas e desejos incontroláveis, tudo pode provocar novos sentimentos e reações. O que é inútil para alguns pode ser tudo para muitos outros.

Se o roteiro, também assinado por essa segura diretora, é excelente, o trabalho com som e trilha sonora também merecem destaque. Finalmente, a sequência final é uma síntese do curta. Enquanto os irmãos partilham de pontos de vista opostos e sentem a necessidade de interagir, mas guardam certo distanciamento, cada um em seu cantinho da varanda do prédio. No enquadramento, ao fundo, um caótico e fluido fluxo de carros, enfatizando mais uma vez, a relação dos meninos com a cidade.

Camila Fink

Os Imãos Mai está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013