Cordilheira de Amora II: inventar para sobreviver

cordilheira de amora II

por Adriana Gaeta –

Cordilheira de Amora II é um filme sobre a reinvenção. Na vila indígena de Amambai, no Mato Grosso do Sul, vive a menina Guarani Kaiowá Carine Martines. Menina brilhante, Carine, seu primo e seus amigos imaginários criam um mundo próprio que nos leva, além de qualquer possibilidade material, para um lugar mais interessante e melhor.

Quintal metáfora do mundo, Carine, a pequena inventora, faz da escassez de brinquedos sua riqueza. Munida de tijolos, de restos de móveis e lixo, a menina cria sua casa própria, motivo de tanto orgulho quanto o de nós adultos quando conseguimos realizar o sonho de ter um teto para chamar de nosso. Pequena brincante, Carine não vai para Marte ou faz alusão à universos estranhos. Ela debruça toda a sua capacidade criativa sobre o mundo real dos adultos. Replicando o seu mundo, ela nos conta um pouco mais sobre ele. E o mundo dos adultos visto por nossa indiazinha é o mundo urbano: salão de beleza, computador, shoppings e pontos de ônibus. O conto de fadas é o europeu: Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos. E é desse registro que o curta nos coloca nesta relação de identificação/estranhamento, dessa menina que vive dia a dia a perda de sua cultura original.

Para entendermos melhor a força do curta, temos que lembrar que os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul vivem um cotidiano de guerra civil. Nos últimos dez anos, as degradantes condições de vida e o confronto entre índios e grandes proprietários de terra se tornaram tão dramáticas que a taxa de assassinatos de Kaiowás, ultrapassa qualquer estatística de países em guerra e é 495% maior que a média brasileira. A cada seis dias, um jovem Kaiowá Guarani se suicida. E esse são dados oficiais.

A Cordilheira/ Xanadu é logo ali. A redenção possível também. Carine não precisa ir muito longe porque sabe intuitivamente que toda a riqueza que precisa está dentro de si. Uma criança/personagem de uma nobreza e força que nós espectadores torcemos para que nunca se perca. Seu “filme invisível” já está sendo feito, é este curta que assistimos. Sua mensagem está sendo dada e nós espectadores, também se tivermos sorte, teremos lugar em seu coração e seremos seus amigos invisíveis, torcendo para que o mundo lúdico de Carine jamais se perca na mediocridade da vida ordinária.

Em um lugar onde resta aos Guarani Kaiowá trabalhar na lavoura de cana ou ser mendigo, o futuro é um não ser aquilo que se é. Assim, dentro de uma realidade tão dura, o escapismo infantil de Carine talvez signifique mais que um brinquedo, talvez também seja uma estratégia de sobrevivência.

Cordilheira de Amora II está na Mostra Brasil Infantil e Infanto-Juvenil. Clique aqui para ver a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Kyota e sua sabedoria precoce

kyota

por Letícia Fudissaku –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Em meio às intensas tramas presentes na Mostra Internacional 4, o curta Kyota – O Pequeno Entregador foi como uma brisa de ar fresco. Com uma trilha tipicamente japonesa, o curta já dita seu ritmo leve e agradável. Kyota é um garotinho sagaz e carismático em sua excentricidade. Por se tratar de uma sequência, não há muito tempo para apresentar o personagem – o que não chega a incomodar, porque assim o conhecemos melhor conforme a história se desenrola. Além disso, o incidente incitante da narrativa é novidade tanto pra nós quanto para Kyota: uma pequena recém-chegada em seu bairro.

Me impressiona a habilidade dos realizadores de curtas-metragens, como um todo, de transmitir o máximo de informações visualmente, dado o tempo reduzido. Só pelo chapeuzinho de Kyota, vemos que ele é diferente dos demais e, ao ver uma garotinha de macacão e máscara, seus olhos brilham em comemoração: “Achei alguém como eu!”. Por uma coincidência, sua mãe tem de entregar uma encomenda na casa dos novos moradores. E lá vai o pequeno Kyota cumprir essa missão – a visão de um garotinho tão jovem caminhando sozinho cheio de mercadorias é quase absurda aos olhos da brasileira que sou, de tão impraticável que seria em nossa realidade…

Quando o encontro acontece, a história toma um rumo bem diferente do habitual boy meets girl. Kyota descobre que as coisas que lhe chamaram atenção na menina eram apenas ordens vindas do pai. Num diálogo simples e ao mesmo tempo profundo, ela diz “Pensei que você era igual a mim, ia te chamar pra brincar comigo”, ao que Kyota responde algo como “Nós não precisamos ser iguais para brincarmos juntos” (talvez em forma de pergunta, não me lembro bem). Unidos, os dois se libertam de seus adereços – o chapéu dele e o macacão dela – e saem juntos para brincar.

O pai da garotinha, furioso, vai correndo ao seu encontro. É até divertida a postura de Kyota, nem um pouco intimidado pelo homem – pelo contrário, chega até a elogiar sua atitude. A fala inocente de Kyota desperta o pai de seu extremismo e este se ajoelha frente à filha, pedindo-lhe perdão. No que diz respeito ao núcleo familiar, a sociedade japonesa é vista como muito rígida e ligada à disciplina. Justamente por isso, essa inversão (pais abandonando sua autoridade pelo bem dos filhos) é válida e presente em outras produções japonesas – como o longa Pais e Filhos, de Hirokazu Koreeda.

É interessante reparar no dilema de Kyota, paralelo aos acontecimentos, de largar ou não seu chapeuzinho. Não me arrisco a identificar o que ele simboliza, pois ainda quero assistir o primeiro filme da sequência. Mas é seguro dizer que, assim como seu protagonista, o curta-metragem Kyota – O Pequeno Entregador é autêntico e envolvente, retratando temas complexos em situações simples.

Kyota – O Pequeno Entregador está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Os Contos da Maré: folclore é documento

os contos da mare

por Amanda Martinez –

Apesar de classificado como documentário, o curta Contos da Maré (2013), de Douglas Soares, conta mais ficções do que dados estatísticos sobre o surgimento do Complexo da Maré, bairro de baixa renda no Rio de Janeiro. Remetendo aos primeiros moradores da comunidade, o filme escolhe junto de seus entrevistados uma maneira diferente e ao mesmo tempo tradicional de documentar a história de um lugar: contando suas histórias.

Inseridas em um formato documental convencional, com enquadramentos estáticos e abertos dos entrevistados, histórias de família são contadas informalmente à câmera-diretor. Divididas em capítulos, como em um livro, são mitos muito semelhantes ao folclore brasileiro, mesclando animais e pessoas em um só ser através de situações que se repetem – a diária transformação em lobo, a troca de pele da cobra, etc. A ficção se torna cada vez mais presente através de takes noturnos e mais soltos acompanhados de uma forte construção sonora, gerando uma dualidade de gênero que coloca em dúvida a veracidade dos depoimentos dados com convicção pelos moradores da Maré.

Como nas lendas, a resposta a essa indagação nunca é completa, se apoiando mais na relação de confiança entre narrador e ouvinte do que no conteúdo em si. As máscaras vestidas pelos entrevistados colocam-se em meio a isso, dando-lhes o caráter de personagens ao fazer uma analogia entre eles e os animais dos contos. São personagens do filme Contos da Maré que narram histórias mirabolantes e, simultaneamente, personagens (ou animais) de suas próprias histórias, algo que lhes confere uma espécie de credibilidade, mostrando ao espectador a possibilidade de aquilo ter sido realmente presenciado por alguém.

Entretanto, antes que seja possível depositar alguma confiança no que é dito, as próprias testemunhas põe em jogo a realidade de seus contos, desconstruindo a esperada função das histórias de transmitir acontecimentos ou alertar gerações seguintes sobre alguma moral. Os contos da Maré têm fim em si mesmos e sua importância está simplesmente no fato de terem existido em uma comunidade em crescimento, seja para divertir ou botar medo, preenchendo a escassez de pessoas e construções da época.

Ao transitar entre dois gêneros, Contos da Maré traz a lenda como caráter documental de uma sociedade, colocando em pauta o poder das histórias na construção de uma determinada cultura. O folclore criado no Complexo, por compor parte significativa da memória daquela população, serve não só como lembrança, mas também como registro, definindo o passado do local como um período em que os mitos eram verdade e o presente como um tempo em que as pessoas, incluindo seus narradores, já não acreditam tanto em nada disso.

Os Contos da Maré está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Sophia: o mundo dela

sophia

por Letícia Fudissaku –

Antes mesmo de começar, as palavras do diretor Kennel Rogis sobre o curta-metragem Sophia já me chamaram a atenção: um sensível retrato da relação entre mãe e filha. Tenho um interesse especial por enredos que tem como tema central os relacionamentos. No início, como a aspirante a roteirista que sou, me incomodei com a falta de diálogos – mal sabia eu o quanto isso acresce à história… Extremamente sensível, o diretor definiu bem.

Gosto particularmente do aspecto cíclico da narrativa: todas as pequenas cenas abstratas que pareciam unicamente satisfazer às preferências estilísticas do diretor fazem todo o sentido ao final da trama, e o filme inteiro é “rebobinado” na cabeça do espectador. A descoberta da surdez da filha, na perspectiva do espectador, dá novos significados a diversas cenas, tornando-as até mais poéticas – como quando a filha traz o rádio para que a mãe dance com ela. O silêncio no ambiente familiar, que de início parecia indicar um distanciamento – ou até uma falta de afinidade – entre mãe e filha é, afinal, uma mera circunstância.

A representação em cores distintas para as duas personagens – amarelo e laranja para a mãe e azul para a filha – e o cuidado especial com os diferentes sons da rotina destas foram os elementos técnicos que mais me chamaram a atenção. Exemplo disso é a cena em que a mãe nada em um rio, afundando a cabeça e voltando à superfície. Debaixo d’água, os sons são amenizados ou até eliminados. Mergulhando nas águas azuis, é como se a mãe tentasse reproduzir a percepção de mundo da filha, que não escuta. Essa tentativa da mãe também pode ser notada em outras cenas, nas quais ela usa protetores de ouvido fora do ambiente de trabalho barulhento.

Pelos motivos indicados acima, creio que a experiência de assistir Sophia seja por si só bastante sensorial, com uma trilha que ambienta o espectador de maneira intensa. Justamente por isso, é uma surpresa que, mais ao final, uma música cantada faça parte da trilha – a delicada Meu Amor É Teu, de Marcelo Camelo. Sua melodia combina perfeitamente com as cenas de companheirismo e afeto entre mãe e filha que encerram o curta. Sophia foi o destaque da Mostra Brasil 9 e reafirma a máxima de que existem inúmeras formas de demonstrar amor.

Sophia está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Dia branco: o mundo daqui, o mundo de lá

dia branco

João Gabriel Villar da Cruz –

Um filme pode ser de longa, média ou curta metragem e, nessa lógica, um curta nada mais é do que um filme mais curto – abaixo de quinze minutos –, e a sua única diferença em relação ao longa está na duração. Pensamento plausível e perfeitamente condizente com a nomenclatura. Por isso mesmo que devia haver outro nome: um curta não é só um longa curto. Curta-metragem que quer ser longa se perde em si próprio, um curta deve ser emancipado do imaginário de longas para poder respirar sozinho.

Não se trata de tom ou de ser ou não narrativo. Trata-se de uma consciência dos limites palpáveis – de tempo, de ambição – não como gesso mas como estímulo. Em vez de adaptar o que se quer dizer ao espaço do curta, simplesmente, dizer… um curta. Parece que – e isso não é a colocação de uma regra do bom curta, apenas uma constatação nascida da observação – um curta não quer dizer, simplesmente diz, é dito. Ao contrário do longa, onde a extensão dos acontecimentos que se desenvolvem e relatos que se entrelaçam tornam muito mais consciente o trabalho do autor – assim como a recepção do espectador –, um curta pode se permitir ser e acontecer. Talvez, tentando-se examinar o que mais se salta aos olhos dentro da produção de curta-metragem e colocando-a frente aos longas, possa-se encontrar nesse fator uma diferença essencial – mas não arbitrária – entre os dois formatos.

Em um dia frio e sem sol, três meninos estão em um pico, onde não tem sinal de 3G (“O bagulho que entra Facebook, Twitter, e-mail”). Demoramos para ver seus rostos, a princípio eles são apenas presenças, palavras soltas. O mundo ficou lá em baixo e dele aqui só existem as imagens armazenadas no celular – fotos de família e amigos, tiradas a esmo, que nos são apresentadas a princípio – e trivialidades sendo faladas. Ou ao menos assim parece: perdido entre as corriqueiras conversas dos meninos, está um amigo morto, cuja missa acontece lá em baixo, em uma igreja que mal se vê por entre a neblina, enquanto os três se isolam no espaço tão vazio quanto o dia parece ser lá em baixo.

Nesse meio delicado, a câmera, que correria o forte perigo de ser uma intrusa ali, resolve se esconder atrás da própria paz do dia: sua presença ali é tão natural quanto a da neblina, uma câmera tão tranquila quanto o dia – branco, sereno, calmo, melancólico –, que mapeia a ação com uma leveza quase imperceptível, e também escorrega dessa de volta para o céu e a nebulosa vista com a mesma naturalidade.

De intruso mesmo, só o grupo de turistas que aparece ao longe registrando, com um tablet, a presença naquele lugar – que não é deles –, mas que também some sem deixar marca que não seja um leve desvio no assunto dos meninos, assunto que vagava com tanta errância e calma quanto a própria câmera. Talvez até demais: O assunto desvia da morte sempre de raspão, e sempre marcado por uma forte indisposição e tristeza. O silêncio parece sempre preferível, quando suportável. Um dia marcado pelo peso de que eram pra ser quatro ali, sempre foram quatro, e agora a única evidência palpável do quarto que não voltou é uma fita amarrada na árvore – é sempre alguém diferente, entre os quatro, que escolhe onde ela vai ficar –, que permanece lá, ainda demarcando a corrida que os meninos ainda competem.

Ora o silêncio pesa, ora a palavra se perde. A verdade é que são todos tão opacos quanto o próprio dia, parabéns aqui aos atores, que se deixam existir na frente da câmera – façanha muito mais difícil do que se pensa – ao mesmo tempo que permitem que seus personagens se retraiam. Para atrás da neblina. Para dentro das fotos. Para dentro do conforto da fraterna crueldade do outro, emulação de uma convivência que persiste em se fingir banal como sempre, como o céu.

Dia Branco está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A identidade no outro

menino peixe

Em Menino Peixe a diretora Eva Randolph retoma alguns pontos já trabalhados em seu curta Dez Elefantes (2008): família comandada pela figura matriarcal, relação de cumplicidade e embate entre irmãos.

No novo curta as figuras femininas são centrais, nos papéis da mãe grávida e da filha pequena. O homem está sempre por vir, seja o bebê que a mãe espera e o pai trabalhador em uma plataforma em algum lugar do oceano. A aguá, aliás, possui importância capital na narrativa como aquela que acolhe as figuras masculinas e as mantém longe do convívio familiar – o filho dentro da barriga, o homem no trabalho rodeado pelo mar.

No início do curta, a mãe conta para a filha que no princípio todos éramos peixe, até que se tornaram como são hoje em dia, o bebê em seu ventre é um peixe que nada em seu líquido. É o bastante para que a menina comece a divagar sobre a identidade do novo membro da família, o rosto daquele que vem dividir com ela as atenções da figura protetora e que pela proximidade do parto recebe cada vez mais atenção.

Novamente o mar aparece como figura preponderante. Em seus sonhos a menina se imagina na praia à noite, no breu, com o mar revolto, e seu irmão, da mesma idade que ela, se revela um menino-peixe, cheio de escamas. A relação a princípio é tão tensa quanto o mar, não se entendem, brigam. A diretora, como em seu primeiro curta, se vale de maneira muito feliz do artifício do esconde-esconde, brincadeira favorita infantil, para revelar o jogo de achar no outro sua identidade, de encontrar eco. A brincadeira no escuro, no espaço violento de ondas quebrando vai se tornando mais intensa ao longo da narrativa, conforme o parto vai se aproximando cada vez mais, assim como o ciúmes da menina em relação à mãe.

Eva consegue de maneira satisfatória criar um paralelo simbólico entre vida e a água, através do mar, bravio, misterioso, forte, imenso, como potência de criação e nascimento e através das cenas nas quais a filha aparece nadando na água represada e calma das piscinas, recurso artificial que não possui a mesma força do oceano, um simulacro apenas, como desejo da menina em retornar ao útero materno.

A cena final amarra de maneira muito interessante este jogo de procurar a si mesmo, a construção de identidade no outro. Após a ida da mãe abruptamente para o hospital e a chegada atrasada do pai para o parto corta para a mãe dormindo calmamente numa cama na praia onde os irmãos se encontram à noite, o mar furioso, mas a figura materna está lá calma e adormecida, os dois sempre no breu, sempre apenas contornos. Possuem lanternas, o garoto aponta sua lanterna para o rosto da irmã, ela se ilumina e aparece finalmente na escuridão. Ela sorri.

Malu Andrade

Menino Peixe está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

O menino, o velho e a árvore: um faroeste moderno

arapuca

“Sobre uma árvore” como descreve a sinopse. E de fato é mesmo, mas não apenas sobre uma árvore. Arapuca escrito e dirigido por Hélio Vilella é um daqueles filmes que você quer ver sempre e pra sempre sem cansar de assistir. O filme é marcado por planos abertos e algumas sequências no maior estilo faroeste, poucas falas e personagens carismáticos. Além de uma fotografia sensacional.

Começa com uma sequência belíssima de cenas onde um garoto come uma fruta, enterra a semente e urina em cima dela; há uma passagem rápida de tempo, a árvore já está grande, cheia de novos frutos, e voltamos ao jato de urina, mas agora o menino já é um senhor. A sequência anuncia uma forte relação dessa personagem com a árvore, eles cresceram juntos, apenas os dois. Só essa sequência já é digna de subirem os créditos e receber aplausos, mas o filme consegue nos cativar ainda mais com a chegada do menino que perde sua pipa perto da árvore e resolve subir nela pra pegar uma fruta. O velho, muito incomodado com a presença de outra pessoa perto de sua árvore, expulsa o menino que vai embora, mas volta.

A partir dai o velho vai tentando afastar o menino da árvore, como se fosse um pássaro que estivesse lá para destruir o que ele cuidou todos esses anos. O velho inclusive coloca um espantalho a fim de afugentar o garoto que, com a inocência de criança, leva tudo aquilo como uma brincadeira – ao mesmo tempo que quer irritar, quer se aproximar do velho.

O primeiro confronto entre os dois remete aos clássicos westerns americanos, o plano aberto com a sombra dos dois em meio a paisagem, um de frente para o outro mantendo uma certa distancia, passando para um plano aproximado de cada um e finalmente a troca de olhares à Clint Eastwood.

E assim um vai criando armadilhas para o outro. O ator mirim, muito expressivo, consegue fazer rir com as respostas que dá ao velho, às vezes passando a impressão de ser mais maduro que o próprio senhor, sabendo reconhecer quando ele tem que pedir desculpas.

No desfecho da história o velho acaba como começou – sozinho –, com a sensação de ter vencido o menino na brincadeira, só que dessa vez sem sua companheira a árvore.

Curta mais maduro em relação ao curta anterior de Hélio, A Mula Teimosa e o Controle Remoto, com grande potencial pra desenvolver um belo longa investindo nessa temática, leve, minimalista e delicada. Fica de minha parte um gostinho de quero mais.

Danielly Ferreira

Arapuca está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Prever o futuro, lembrar o passado

mauro em caiena

Há um cinema muito particular vindo de Pernambuco, Fortaleza e Recife, nos últimos anos, e que é de rico conteúdo. Mais interessante ainda, uma boa parte dele tem se concentrado, organizadamente, no curta-metragem. A primeira vez que percebi isso foi quando vi o curta Muro (2008), de Tião, que me deixou com uma forte impressão, um turbilhão de ideias e uma inquietação grande de saber de onde tinha vindo – quem eram esses “novos” realizadores?

Fui descobrindo que havia muito mais no cinema do Nordeste do que eu conhecia; o timing para a descoberta foi ótimo porque, desde então, não é difícil encontrar ótimos filmes em festivais que tenham surgido dali – Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus, é um deles.

Como muito dos filmes que tem surgido de realizadores dessas cidades, Mauro em Caiena é um filme que sabe muito bem como observar seu redor, ou seja, entender criticamente a experiência do tempo e lugar no qual se vive, além de, no caso, saber se projetar no passado, presente e futuro desse lugar – o cineasta se entende como parte de um processo, que inclui sua família e seus vizinhos: enquanto a cidade no entorno se altera, mudam também seus sonhos, sua maneira de agir e olhar.

O primo moleque de Leonardo gosta de se fazer de dinossauro e o curta abre com uma colagem de filmes antigos do Godzilla e a performance do garoto para a câmera. Cômica e de criatividade infantil, o filme, narrado como uma carta de Leonardo ao seu tio, consegue apreender outras camadas dessa relação, criando metáforas, como a do Godzilla, que estimulam interpretações abertas a seu público – no caso, achei tanto cômica quanto angustiante a citação do monstro nuclear nesse meio (o filme se mantém no preto-e-branco das colagens), a comparação do sentimento do fortalezense frente a urbanização com a paranóia masoquista do Toquiano pós-guerra. Há uma certa depressão contida nesses filmes, que se comunica através da mais aguda consciência social, unida de formas fílmicas interessantes, densas.

Depois dessa introdução, o filme continua como uma colagem de retratos, paisagens e registros poéticos dos arredores do cineasta, através do diálogo imagem-texto; descobrimos que a carta, ou a vídeo-carta, se dirige para o tio de Leonardo, Mauro, que se exilou na Guiana Francesa, um “lugar para o qual ninguém foge”. Filma-se na impossibilidade de encontrar esse tio, de apreender e conhecer completamente a história de uma família e de conseguir prever seu futuro. Resta filmar, registrar, e projetar-se nessas memórias, nesses indivíduos e nessas trajetórias, para projetá-las numa sala de cinema e com isso, talvez, comunicar esse sentimento fugaz da simpatia. Paralelismo de coração, que se tem com a trajetória de sua família, indistinta de suas memórias, potencias e da materialidade de onde se vive, em constante transformação, lugar de inquietude, separação e transição da infância a uma vida adulta que trás novos horizontes – mas quais?

Comecei falando que, quando primeiro me deparei com um curta nordestino recente, fiquei me perguntando “como chegaram nesse resultado?” (ou seja, que trajetória cinematográfica percorreram para criar aquela obra), até descobrir que muitas dessas obras são exatamente sobre esses deslocamentos, de cidade, biografia e olhar.

Rodrigo Faustini

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Luz, sombras e imaginação

carrossel merry-go-round

O prazer de ver um quadro antigo, daqueles clássicos, com figuras humanas posadas, vestidas com roupas claras, que nos permitem – quando paramos para contemplá-las – imaginar uma história ou contexto para elas. Esta sensação, de nos perguntarmos de onde vem as figuras pintadas, onde estão, porque estariam ali, como viviam, do que gostavam ou tinham medo…É um prazer visual que conquista e sugere, sem ser autoexplicativo. Assim é Carrossel (Merry-go-round), de Esther Löwe.

Fotografia contrastante, muito claro e escuro, remete às telas de Caravaggio. Um quadro sem data nem país identificado. Um universo sombrio onde duas crianças vivem, sem explicação do onde ou por quê. Simplesmente estão e dominam o espaço, uma espécie de sótão escuro e cheio de objetos sinistros. São crianças aparentemente abandonadas e sozinhas, cheias de sujeira, arranhões sem curativos e roupas antigas.

Além da própria imagem, a relação fraternal entre os dois pequenos – da irmã mais velha que brinca e é protetora do irmão mais novo – desperta tanto a atenção quanto o cenário e o jogo de luzes. Curiosidade e um certo frio na barriga surgem com o suspense presente a todo momento: o que acontecerá a seguir? Do que ou de quem eles se escondem? Alguém ou algum ser vai aparecer? Mesmo sem compreender a situação e de pouco ser revelado, uma coisa é certa: os sentimentos vividos pelos dois irmãos podem ser facilmente assimilados. Ansiedade, alegria, entusiasmo, medo. O espectador é jogado no meio desse relacionamento fraterno e fantástico.

Ouvi algumas recepções negativas ao filme, principalmente pela falta de uma explicação ou pela sensação que ele cria de que algo está para acontecer, mas não acontece, o que é decepcionante. Eu já vejo de outro jeito. Tudo pode ter acontecido ou ainda irá acontecer, como se nós tivéssemos tido a oportunidade de espiar um universo paralelo, ao qual não pertencemos, rico em detalhes e perdido no tempo e espaço, cheio de coisas para serem observadas e sentidas. Um quadro com figuras que deixam de ser estáticas por alguns minutos e te conduzem para um além quadro ainda por se construir, longe de qualquer desapontamento.

Raquel Arriola

Carrossel está na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas

A memória, a infância e o Godzilla

mauro em caiena - godzilla-ed

Mauro em Caiena (Leonardo Mouramateus, 2012) é como uma carta-cinema. Não uma carta filmada, ou um filme sobre uma carta, mas as duas coisas dentro de uma só, palavra e imagem, indissociáveis. A leitura sutilmente saudosa, ficcional, divagante traz a qualidade de memória para as imagens em preto e branco. Expande-se o universo das duas dimensões justapostas, que se fazem como camadas para a leitura una do curta-metragem.

A carta é endereçada a um tio, Mauro, que está na Guiana Francesa, e saiu há um tempo considerável de Caiena, esta cidadezinha de interior de descampados e montes de terra de construção. O sobrinho lhe fala com amor, saudade, e talvez, um certo rancor por um tio que se foi e não volta, que deixa a avó sempre na esperança da volta. Talvez, também, com um pouco de inveja por ele ter ido embora deste pequeno cerco. Lembra-me o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, só que sob a visão do irmão que fica, vendo o outro que se foi, desgarrou-se e deixou mágoas na família. O irmão que, talvez, também quisesse ter ido.

Enquanto as palavras, informais como devem ser as cartas, correm, as imagens as confirmam, distanciam, embolam-se com elas. O menino que imita um cachorro e depois sobe em árvores deve lembrar o tio criança, diz a carta. Aqui, o que se fala é quase o que se vê – o menino não é um personagem construído, está ali como ilustração, é uma imagem reflexiva do lugar, das crianças que subiam e ainda sobem em árvores. O primo pequeno e o tio que se foi há tanto tempo são os mesmos, condensados nessa imagem – e assume-se o caráter de imagem, de reprodução, de ilustração.

A carta, talvez para convencer o tio a voltar, diz que o lugar continua o mesmo de sempre. O que vemos na imagem são os montes de terra de construção, são os guindastes, imagens de um lugar em constante transformação. Caiena nunca mais será a mesma da infância de Mauro, mas o modo como o realizador resgata as memórias do seu tio e as insere nas imagens atuais, faz lembrá-lo de que Caiena ainda é Caiena. Daqui falo da dimensão dolorosa da memória da imagem: um lugar nunca é o mesmo, mas o permanece nas nossas memórias, e os nossos olhos por vezes procuram na paisagem, ansiosos, aonde é que as imagens da nossa memória permaneceram. E eles permanecem, de algum jeito. Também nas imagens de um filme visto na televisão, como as cenas de Godzilla, em que as imagens ficcionais de um outrem tornam-se carregadas de memórias nossas, particulares. Memórias que são conjuntas, mas que por estarem desligadas de qualquer lastro de realidade, podem ser tomadas como nossas, de um momento que pertence a todos.

Algumas imagens atestam a triste derrocada da memória do lugar. Quando o realizador filma a árvore da infância de Mauro sendo derrubada, esta árvore que não é de seu afeto – já que ele diz que estava de ressaca e pouco interessado na árvore que ia ser cortada – não deixa a tomada toda em filme: é triste mostrar o decapitamento total desta memória. Mas está lá, como atestado dessas mudanças irrevogáveis.

A permanência parece estar na figura da avó, figura comum entre os dois, sempre citada pelo narrador da carta, com certo pesar, contando ao tio o modo como a avó o abraça achando, por vezes, que ele é Mauro. Engraçada colocação, que justifica a fixação num tio que já se foi há tanto tempo. Escrever-lhe é quase um pedido de troca de lugar; e uma carta (ou um filme) é quase sempre uma vontade de troca, estar por uns momentos em outro lugar, junto de um outro. Mas é essa avó, a verdadeira árvore no quintal, que fincada com suas raízes no mesmo lugar, está em tela e em vida como uma presença divina, matrona da infância de todos os meninos, recipiente das saudades, das memórias. É o elo da ligação, não de um lugar, passível de transformação, mas de gente comum, que aparece em tela picando legumes para pular ali um gato e comer os restos.

E nessas indas e vindas dolorosas sobre a memória, a saudade, os lugares que já não podem ser os mesmos (se o tio voltasse ele reconheceria Caiena como o narrador da carta parece tanto insistir?), o realizador termina o filme voltando a si mesmo. É preciso deixar Guiana Francesa e a vontade de ser Mauro, de estar longe, é preciso deixar de filmar aquilo que deve ter sido a infância de Mauro – resgatado pelas memórias da avó – para constituir-se, também, como alguém; e não mero observador desse processo. E dessa forma, não poderia ser tão emocionante a longa tomada de uma menina em uma balada, um universo exclusivo ao realizador. A menina é filmada com carinho e a narração que já se calou. É preciso voltar a vida, e a vida do que há por vir. A imagem da menina olhando para a câmera não é, como outras, a ilustração de um passado, a reconstituição de uma memória, mas sim atestado do presente.

Mariana Vieira

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013