Essa tela (não) é pequena demais para nós dois

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Malária é um filme que narra o encontro da Morte com um homem que quer impedi-la de fazer seu trabalho. Situado numa mesa de bar, com a tensão ao redor de uma pistola que ameaça a vida dos dois, segue a linha de um tradicional western. O que há de inovador é a linguagem que Edson Oda adota para contar essa história, unindo a HQ ao cinema de uma maneira muito divertida e inteligente, chegando ao sentido intencionado para sua história e fazendo referências a estilos já consolidados. São dignas de destaque a construção sonora, cujos efeitos e músicas preenchem perfeitamente os espaços do quadrinho, e as vozes dos personagens, que são interpretadas com maestria por Antonio Moreno e Rodrigo Araújo, dando vida aos desenhos.

Dentro de um plano-sequência de quase cinco minutos existe uma decupagem detalhada. A história é desenhada em quadrinhos, que têm variação entre planos gerais, médios e closes, e são manuseados por uma mão que cumpre a função de montador do filme. Os momentos de quebra da quarta parede – num filme que possui cinco delas – em que elementos externos ao desenho interagem com a história são bem divertidos.

Além dos objetos que fazem intervenções pontuais, como o livro, o sangue, o rolo fotográfico de lembranças e o fogo, toda a direção de arte do espaço, com detalhes como a mesa de madeira, a vela e a faca que abre os balões de fala, contribui com a tensão e o clima de perigo e ameaça da história, casando perfeitamente com o gênero.

Diante do recurso utilizado por Oda, é interessante pensar sobre a influência da arte na própria arte. As histórias em quadrinho foram uma grande influência para os filmes exploitation dos anos 80, com a decupagem rápida e as cenas de ação sangrentas, adaptando o que os quadrinistas faziam através de variações no tamanho da margem e no “zoom” da imagem. E agora, em 2013, o quadrinho é colocado dentro do cinema e isso é considerado original e criativo, o que demonstra que na arte “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E o que temos aqui é uma transformação surpreendente e inteligente.

Marina Moretti

Malária está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Django indígena

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Na época de seu lançamento, o longa Django Livre de Quentin Tarantino, que transforma o período escravista dos Estados Unidos num western spaghetti, foi categoricamente criticado pelo também cineasta Spike Lee. “Tudo o que posso dizer é que o filme é desrepeitoso com meus ancestrais”, disse o cineasta engajado. Existem muitas similaridades entre o último filme do cultuado diretor e O Homem Que Matou Deus, do diretor francês Noé Vitoux. Semelhanças que não se limitam à temática das obras, já que o curta de Vitoux parece muito inspirado na estética tarantinesca.

A proposta do filme é extremamente interessante: utilizar um humor ácido e irônico para construir uma crítica política aos crimes cometidos contra a população indígena no país. Ou seja, fazer com índios o que o Django de Tarantino fez com os escravos negros e o que o Machete de Robert Rodriguez fez com os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. O resultado atingido é, inevitavelmente, tão controverso quanto o das duas obras citadas.

Em formato de falso documentário, a produção acompanha o cotidiano do índio Wem Tom, o melhor caçador de homens brancos da região. Nesse ponto o curta se difere dos filmes já citados: o nosso protagonista não vê no ato da caça um exercício de vingança, pois ele, como qualquer caçador, caça por prazer. Não pretendo de forma alguma por em debate os pilares do politicamente correto e taxar esse humor como ofensivo a moral e aos bons costumes. Sou entusiasta desse tipo de abordagem, e acho que vários filmes tiveram um êxito estrondoso nesse setor, como é o caso de Borat, personagem estrelado por Sacha Baron Cohen, que incomodou muita gente lá por meados dos anos 2000.

Compreendo muito bem a intenção do diretor, que fica bem clara através de um dos monólogos do personagem, de nos mostrar o quão desumano são os homícidios de indígenas que acontecem sem qualquer razão por diversas áreas do país e, de um modo geral, terminam impunes, através de uma inversão de papéis para ressaltar o absurdo da situação.Ora, se o homem branco mata um indígena por prazer, por que o contrário seria tão abominável? E é aqui que nasce o meu desconforto. Nesse processo, acho que de certa forma o autor causa um efeito reverso e acaba por desumanizar um pouco o protagonista. Na tentativa – fundamental para esse tipo de filme de protesto – de chocar o espectador constantemente, o discurso as vezes acaba sendo um pouco brutal demais. Ainda não encontrei a necessidade de se ter uma cena em que a tribo faz churrasco de um bebê.

Além dessas questões, o diretor também peca por não saber que rumo seguir, já que o roteiro abrange um excesso de recursos narrativos, esforçando-se desesperadamente em ter um aspecto cult. Narrativa não-linear, fotografia que alterna entre preto e branco e colorida, trilha sonora cheia de batidas eletrônicas contrastando com o bucólico das imagens, tipografia estilizada em cores neônicas e, até mesmo, uma desnecessária metalinguagem: tem de tudo um pouco nos míseros 18 minutos de duração do curta. São tantos apelos estéticos que o assunto central acaba perdendo um pouco de sua força, em meio a esse carnaval de referências a cultura pop.

No entanto, alguns méritos precisam ser dados a produção franco-brasileira. A iniciativa de tirar o indígena do papel de coadjuvante, quase sempre vítima ou marginal – ponto que o próprio Wem Tom menciona em determinado trecho – e colocá-lo não só como protagonista mas também como um anti-herói, é um grande passo, ainda mais quando se leva em consideração que não faz muito tempo que o primeiro ator negro protagonizou uma novela e o primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo aconteceu em um canal aberto.

É importante lembrar do papel intrínseco as obras audiovisuais na tarefa de quebrar preconceitos, e o melhor jeito de fazer isso ainda é através do desmitificação de estereótipos. Em meio a tantas boas intenções, é nesse pequeno detalhe que o filme nos mostra seu argumento mais incisivo.

Henrique Rodrigues Marques

O Homem que Matou Deus está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

O menino, o velho e a árvore: um faroeste moderno

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“Sobre uma árvore” como descreve a sinopse. E de fato é mesmo, mas não apenas sobre uma árvore. Arapuca escrito e dirigido por Hélio Vilella é um daqueles filmes que você quer ver sempre e pra sempre sem cansar de assistir. O filme é marcado por planos abertos e algumas sequências no maior estilo faroeste, poucas falas e personagens carismáticos. Além de uma fotografia sensacional.

Começa com uma sequência belíssima de cenas onde um garoto come uma fruta, enterra a semente e urina em cima dela; há uma passagem rápida de tempo, a árvore já está grande, cheia de novos frutos, e voltamos ao jato de urina, mas agora o menino já é um senhor. A sequência anuncia uma forte relação dessa personagem com a árvore, eles cresceram juntos, apenas os dois. Só essa sequência já é digna de subirem os créditos e receber aplausos, mas o filme consegue nos cativar ainda mais com a chegada do menino que perde sua pipa perto da árvore e resolve subir nela pra pegar uma fruta. O velho, muito incomodado com a presença de outra pessoa perto de sua árvore, expulsa o menino que vai embora, mas volta.

A partir dai o velho vai tentando afastar o menino da árvore, como se fosse um pássaro que estivesse lá para destruir o que ele cuidou todos esses anos. O velho inclusive coloca um espantalho a fim de afugentar o garoto que, com a inocência de criança, leva tudo aquilo como uma brincadeira – ao mesmo tempo que quer irritar, quer se aproximar do velho.

O primeiro confronto entre os dois remete aos clássicos westerns americanos, o plano aberto com a sombra dos dois em meio a paisagem, um de frente para o outro mantendo uma certa distancia, passando para um plano aproximado de cada um e finalmente a troca de olhares à Clint Eastwood.

E assim um vai criando armadilhas para o outro. O ator mirim, muito expressivo, consegue fazer rir com as respostas que dá ao velho, às vezes passando a impressão de ser mais maduro que o próprio senhor, sabendo reconhecer quando ele tem que pedir desculpas.

No desfecho da história o velho acaba como começou – sozinho –, com a sensação de ter vencido o menino na brincadeira, só que dessa vez sem sua companheira a árvore.

Curta mais maduro em relação ao curta anterior de Hélio, A Mula Teimosa e o Controle Remoto, com grande potencial pra desenvolver um belo longa investindo nessa temática, leve, minimalista e delicada. Fica de minha parte um gostinho de quero mais.

Danielly Ferreira

Arapuca está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Morte branca

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O homem que matou Deus o fez de forma consciente, precisa e a sangue frio, não seria de outro jeito, uma vez que o teocida em questão é quem é.

Enquanto prepara as armas para uma caçada que ali é ato corriqueiro, o índio responde as perguntas que lhe são feitas pelo cinegrafista. O índio é Wem Tom, o cabeça entre os caçadores ali presentes, o destemido porta-voz daquela aldeia cuja liderança garante o sucesso de cada caçada. Mas a compulsão instintiva que leva Wem Tom a abater suas presas vai além da necessidade básica de alimentação; esta compulsão nasce principalmente do ódio e o instinto é de contra-ataque. Sendo assim, a satisfação do herói indígena a cada presa alvejada é justificada quando o homem branco se revela como caça.

Sim, o implacável Wem Tom se mostra um fora-da-lei, pois naquela longínqua região aos arredores de Rondônia não é permitida a caça ao homem branco (seja esportiva ou para consumo). E mesmo deixando clara sua vontade de andar conforme a lei manda – pois luta pela legalização deste tipo de caça em regiões onde a espécie seja abundante ou prejudicial ao meio ambiente –, o letal Wem Tom não demonstra intenção de poupar um espécime se quer, seja mulher, homem ou criança*.

Mas Wem Tom não tem culpa, as características que formam este exterminador/consumidor de homem branco foram definidas por Ele, o Todo Poderoso, Deus, com quem iria ter mais tarde. O Criador o fez assim, e há quem possa dizer que O Senhor foi generoso para com Wem Tom, pois lhe deu uma pontaria incredível, deu-lhe velocidade absurda, deu-lhe astúcia e uma força que lhe permite travar batalha com um jacaré de 3 metros para poder cruzar um rio.

Wem Tom discorda dessa generosidade divina; para ele, o fato de ter nascido um dos últimos de sua etnia somado ao fato de ser o melhor na arte de encurralar e matar o fizeram o que ele é, daí nasce a já citada compulsão instintiva, estes são os elementos que formam o homem que matou Deus. E é de se surpreender que a onisciente divindade tenha se surpreendido; que descanse em paz.

*cuja carne é mais macia e menos ácida, o que permite combinações gastronômicas mais variadas.

Led Franzoso

O Homem que Matou Deus está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Rápido e rasteiro

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Temas e estilos diversos convergem para a formação do curta Malária, escrito e dirigido por Edson Oda. Provavelmente um dos curtas de menor duração de todo o festival, Malária realiza a proeza de manter o interesse do espectador do início ao fim – não utilizo o termo “de maneira constante” para não remeter à inércia ou qualquer sentimento de monotonia. Até porque, o curta é extremamente dinâmico, contendo elementos de faroeste, sobrenatural e graphic novels que, combinados de maneira tal, exprimem uma narrativa bastante jovial e moderna.

A influência do diretor Quentin Tarantino (mencionado, inclusive, na coluna de agradecimentos dos créditos finais) é quase palpável de tão expressiva e muito bem-vinda, presente também na intensa relação da trilha com o enredo. De fato, as recorrentes parcerias de Tarantino com Ennio Morricone em seus filmes faz com que músicas de western sejam rapidamente rotuladas como “tarantinescas”. Mas, a meu ver, a principal característica do curta que me remete ao diretor americano é o ritmo da narrativa – quase frenético, mas sempre envolvente.

Mais do que falar de possíveis influências ou referências, é indispensável mencionar o diferencial de Malária, que pode ser resumido em uma palavra: criatividade. Uma história relativamente simples (mas não por isso menos refinada), que ganha vida de uma forma inusitada, com a utilização de grafismos, gestos ágeis e narração em off, quase como um desenho animado. A diferença é que a mobilidade da história se dá “manualmente”, com as mãos do diretor guiado os quadros, como se passasse uma linha (narrativa) de costura ligando um ponto da história ao seguinte.

Os objetos utilizados juntamente com os quadros também são dignos de menção: em especial, a tinta vermelha representando o sangue e o negativo de filme representando um flashback. Numa época de uso desenfreado de efeitos na pós-produção, é revigorante encontrar um curta como Malária, que resgata uma linguagem mais rebuscada (que me lembra, inclusive, programas infantis como Rá-Tim-Bum), permitindo que a imaginação do espectador desfrute de sua simplicidade de maneira quase nostálgica – ao mesmo tempo em que se diverte com a temporalidade e a ironia contidas em seu desfecho.

Letícia Fudissaku

Malária está na Mostra Brasil 6 e na Mostra Infanto-Juvenil. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013