Ninguém ouve o barulho dos cristais

elefante na sala

O público adolescente é uma parcela carente do mercado audiovisual brasileiro. Perdido entre o cinema convencional e o voltado para o espectador infantil, esse grupo acaba encontrando poucas obras que retratem seus gostos e dramas, e mesmo dentre esses poucos filmes existentes nesse setor, a grande maioria acaba caindo na reprodução de estereótipos vazios e débeis interpretações. Raros casos como o prosaico As Melhores Coisas do Mundo e o doce Antes Que o Mundo Acabe conseguem traçar retratos fiéis desse período da vida. Agora, felizmente, temos mais uma obra a acrescentar a essa lista: o excelente Elefante na Sala, de Guilherme Petry, curta que compõe a Mostra Juvenil do festival.

O filme, apesar de quase não possuir diálogos, conversa diretamente com o público jovem. A ação é pouca, mas o curta é ágil como os videoclipes e direto como as mídias digitais, e ainda acha espaço pra imprimir seus toques autorais. Estabelecendo referências explícitas ao cinema de Gus van Sant, especialmente ao longa Elefante, relação aparente no título e no visual do protagonista, que muito lembra o jovem loiro de camiseta amarela que acompanhamos no longa do diretor norte-americano, o filme flerta com a estética do cinema independente contemporâneo, com muitos planos bem abertos, estáticos e hermeticamente desenhados.

É curioso notar como um curta de apenas nove minutos e sem falas consegue levantar diversas questões muito pertinentes. A busca da identidade, a necessidade de ser (ou aparentar ser) popular, a negligência familiar, a solidão num período de muitas dúvidas… Enfim, conflitos internos que muitos jovens enfrentam e não sabem como expressar e nem com quem falar sobre, paralisados pelo onipresente medo do julgamento que possuímos nessa fase inconstante. Quando tédio e solidão se confundem, e a pressão social para que o indivíduo se integre é muito alta, a sensação de ser um estranho no ninho podem gerar consequências surreais. O quão longe é possível ir pra manter um jogo de aparências? E não seriam essas mesmas atitudes extremas, paradoxalmente, um pedido de socorro? Como um elefante preso numa loja de cristais que destrói freneticamente tudo que encontra não por ser desajeitado, mas por ter uma esperança fina, porém inabalável de que alguém o escute.

Mas o mérito do filme não se limita à sua temática. A direção, muito segura, conduz extremamente bem cada uma das situações apresentadas, e está aliada a um roteiro bem construído, que a todo tempo te direciona a uma determinada interpretação só pelo prazer de desconstruir tudo na próxima cena, forçando uma revisão de seus próprios conceitos. Nada é tão simples como parece; nada é tão óbvio como a presença de um elefante na sala de estar.

O curta foi o grande vencedor do Festival de Gramado no ano passado. Prêmio mais do que merecido. Agora é torcer pra que isso estimule a produção de mais obras como essa, que tratem o jovem de igual pra igual, com o respeito e cuidado que esse nicho merece.

Henrique Rodrigues Marques

Elefante na Sala está na Mostra Infanto-Juvenil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Amor obscuro

Em Amores Passageiros, de Augusto Canani, partimos das imagens pálidas da cidade, de seus viadutos pichados, para adentrar a escuridão das galerias subterrâneas do esgoto, junto com o recluso Benites (Osmar Prado), e descobrir que seu trabalho solitário e distante do mundo espelha sua vida, que está prestes, estranhamente, a se transformar.

Lá embaixo, ele fica admirado com a descoberta do cadáver de uma bela garota. Esse acontecimento reativa a sua vontade de viver um relacionamento, trazendo um facho de luz à sua jornada na escuridão. Assim, nos tornamos quase cúmplices desse homem e de seu amor.

Amor que age como um sopro de vida para o protagonista. Paradoxalmente, é na morte que ele encontra uma razão para reviver. Dessa forma, percebemos o quanto ele mesmo era um “morto-vivo”. Mas o tema, tratado com sensibilidade, nos inspira compaixão em vez de repulsa pelo protagonista.

Afinal, nos afeiçoamos a Benites em sua tentativa de aplacar a solidão. Agora, ele se preocupa novamente em arrumar a casa, começa a consertar a porta e até compra um vestido para a sua “esposa”. As mudanças chamam a atenção dos colegas de trabalho e dos vizinhos, mas é o mau cheiro vindo de seu apartamento que se torna um problema para a sua necessária discrição.

O terceiro curta de Augusto Canani — ao contrário do seu anterior, o curioso Amigos Bizarros do Ricardinho (2010), que apostava em uma variedade de personagens e situações — investe no isolamento do protagonista, além da harmonia entre os enquadramentos, da paleta de cores e da maquiagem, que contribuem para o tom lívido e mórbido da história.

O diretor também se utiliza, para esse propósito, da trilha sonora que evidencia a cortante solidão dos ambientes, de uma interpretação de gestos e olhares, e em situações mais íntimas, como quando Benites e a falecida assistem à televisão juntos ou quando ele cuida da aparência dela.

Por fim, Benites, diante da chance de terminar seu relacionamento, escolhe ser fiel a ele, uma escolha difícil, mas coerente com a fatalidade de seu obscuro amor.

Marcelo Félix Moraes

Amores Passageiros está na Mostra Brasil 9. Clique aqui para ver a programação do filme

Uma ética de cumplicidade

A Cidade começa com um plano de ambientação, o bastante para saber que existe uma certa “ironia inevitável” no seu título. O que um espectador urbano pode fazer é chamar o local, no máximo, de “vilarejo”. Até o som do vento, que certamente não encontra prédios em seu caminho, é perceptível.

Uma mulher idosa dirige um Fusca, por caminhos de terra, e depois parcialmente asfaltados. A dinâmica de montagem parece acompanhar o movimento do veículo, com cortes em planos de detalhe da mão da personagem passando as marchas, ou seu pé pisando no acelerador, antes de adentrarmos o ambiente da narrativa.

Esse é o único momento do filme em que existe de fato alguma referência ao que pode ser veloz. Daí para a frente sobram tempos, esperas e memórias.

Todos os indivíduos colocados diante da câmera nesse documentário têm mais de 60 anos. Aparecem principalmente em suas casas, falando sobre doenças, entre outras coisas. Não seria exagero dizer que as próprias paredes das construções parecem filmá-los. A abordagem do filme com relação aos espaços e às pessoas que encontra é a de observação paciente. Os próprios idosos, que são apenas 35 no total, dizem claramente esperar, entre conversas e jogos de bocha, “que algo aconteça”.

Algo acontece. Vemos pessoas trabalhando em uma cozinha industrial, único vestígio de “progresso técnico” que o filme mostra para além do carro do início. Há um grande bolo sendo preparado, uma fanfarra juvenil aparece e toca. Um salão com algumas mesas preparadas… E tudo acaba, com  pucos comentários residuais posteriores.

Sequência com sete personagens na praia. Falam de suas memórias afetivas, casamentos, namoros. Aqui, pode-se pensar que a fotografia corrobora uma sensação geral que permeia o filme como um todo, mas recebe ênfase nesse  trecho: a luz solar ganha tons marrons, quase sépias, num momento em que se tem a plena certeza de que o presente daqueles que falam é construído de “remontagem dos cacos” do passado. Até o agora já passou.

A sequência da praia se encerra com uma senhora que canta “Quem Sabe”, que ganhou o status de emblema do século XIX e da primeira metade do XX no cinema historiográfico brasileiro. Não posso dizer com certeza se o ato de cantar foi totalmente espontâneo (o que a lógica “observacional” assumida pelo curta-metragem quer supor) ou pré-combinada (o que minha consciência sobre as “encenações negociadas” do documentário presume). O fato é que a letra da música parece constatar a relação entre o tempo, as lembranças e os seres humanos aí envolvidos (“Tão longe/De mim distante”…) e do próprio filme para com essas pessoas (“Onde irá/Onde Irá/Teu Pensamento?”).

Uma possível resposta ao perguntado na canção: imagens de arquivo do surgimento dessa cidade de Itapuã (RS), acompanhadas de cartelas de texto, explicando a condição extraordinária de surgimento do local: era uma colônia de isolamento compulsório para acometidos de hanseníase, popularmente conhecida como lepra, nos idos de 1940. Três décadas depois acaba o isolamento, mas quem não tem relações externas, mesmo curado, fica.

A pergunta que fica ecoando nos personagens: o que fazer lá fora?

Voltamos aos olhares para dentro das casas, agora se entende uma certa “claustrofobia aceitável” atuando no próprio método do filme. O isolamento, antes forçado, agora é desejado. E A Cidade assume uma ética de cumplicidade com os que lá estão, e que atinge e conquista o público.

Rafael Marcelino

A Cidade está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme