Aprendendo a crescer

confabula de uma menina dissecada

Uma das oportunidades mais interessantes que festivais como o Kinoforum oferecem aos cinéfilos, é a de assistir obras de países como o México, cuja a produção cinematográfica atual raramente chega ao circuito nacional. A terra que nos presenteou com diretores excelentes, como Alejandro Iñarritu, esse ano nos agracia com uma bela obra de fantasia. Contrafábula de Uma Menina Dissecada, de Alejandro Iglesias (xará de Iñarritu), é uma “coming of age story” com ares de conto de fadas macabro e uma impecável direção de arte, aos moldes da escola del Toro, que, vale lembrar, também é mexicano.

Gizella está fazendo 15 anos e sua família burguesa lhe prepara uma grande festa para apresentar a filha, que se tornou mulher, à sociedade. A mãe lhe diz como se portar, o pai lhe ordena o que dizer e a filha mal consegue respirar embaixo de tanta pressão. Sozinha em seu quarto, enquanto termina de se arrumar, a garota nota algo embaixo da cama. Aproxima-se e descobre o objeto: um unicórnio de brinquedo, que lhe faz sorrir pela primeira vez. Assim como a cena citada transparece, é sobre essa dificuldade de abandonar a infância que a obra trata, mas, como toda boa fábula, abusa de metáforas para tecer seus posicionamentos.

Nesse ponto, os mais exigentes podem torcer o nariz e argumentar que a escolha por essa figura de linguagem é pobre e tola, mas, se Milan Kundera afirma que uma simples metáfora é capaz de fazer nascer o amor, podemos supor que uma série delas são capazes de gerar no mínimo alguma reflexão. Aos que eu não consegui convencer na sentença anterior sobre o possível valor das simpáticas alegorias peço que interrompam a leitura por aqui: elas serão encontradas em abundância pelas próximas linhas.

Aos que continuam, peço desculpas por minha extensão digressão. Mas bem, voltemos a trama. Durante o jantar, em meio a figuras mais bizarras que qualquer ser mitológico, a menina nota algo dentro da boca e, incomodada, vai até o banheiro onde descobre que um galho está crescendo dentro de sua boca. O peculiar membro cresce cada vez mais ao decorrer da noite, enquanto Gizella luta para escondê-lo a todo custo. Existe algo na jovem que quer aflorar, rebeldemente, mas a mesma se censura, no desespero de cumprir o seu sacro dever de honrar pai e mãe.

E aí reside o conflito da nossa donzela indefesa. De um lado, o anseio por agradar a mãe, que lhe proíbe de sujar as sapatilhas alvas quando o genuíno desejo de moleca é o de afundar os pés descalços, sem qualquer receio, na lama macia; a obrigação de recepcionar banquetes enfadonhos quando sonhar com unicórnios é muito mais interessante. O medo de crescer quando esse processo significa abandonar todos os prazeres que você conhece até então. A jovem se encontra desarmada em meio à guerra que seus pais declararam contra a sua infância, sem nenhuma trincheira para a mocinha se esconder.

O destino de Gizella, que precisa escolher entre o indivíduo e a instituição familiar, tem cores de tragédia grega; ela, sabores de Antígona, heroína de Sófocles que teve que escolher entre sua família e seu governo; e o drama é familiar a quase todos nós. Como toda fábula indica, por definição, o filme se encerra com uma moral da história. Mas sem a promessa de um final feliz.

Henrique Rodrigues Marques

Contrafábula de uma menina dissecada está na Mostra Latino-americana 5. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Diversidade latina

chuva nos olhos

A Mostra Latino-americana 4 traz cinco curtas onde as relações entre pessoas, o cotidiano e a cidade são os temas recorrentes, mas tratados de maneiras diferentes.

Começamos com o documentário de Esteban Arguello, Trabalhando Ainda (Todavia Trabajando), onde o cineasta de maneira simplista retrata em imagens o dia a dia de sua avó na Argentina e a narrativa fica por conta das ligações que a avó faz para o neto que está na China. O curta trabalha bastante a questão do deslocamento, a avó que tem medo de parar de trabalhar e mudar de casa consequentemente e o neto, um cineasta argentino tentando viver na China.

O drama mexicano de Anais Pareto A Calçada (La Banqueta) envolve três homens, amigos de infância que seguiram rumos diferentes em suas vidas e se reencontram no lugar onde costumavam conversar e conviver como irmãos – na calçada. Em todos os momentos um dos personagens segue triste e cabisbaixo, mesmo quando estão todos se divertindo ele está com o semblante triste. No final todos eles tem o mesmo semblante e refletem sobre o que eram e no que se tornaram. Diferente dos dramas que em geral relatam a vida de uma garota, ou de um casal, como no filme Anqas desta mesma sessão, A Calçada consegue trazer uma visão bem masculina desse gênero.

Uma Cuba, pobre, com dificuldades, porém feliz é o que nos mostra Jorge de Léon Amador através do curta Felicidade (Felicidad) Através das imagens do cotidiano difícil de algumas pessoas da Ilha ele consegue nos mostrar um sorriso a cada cena. A câmera se entrosa com as pessoas e é bem aceita, um senhor chega até a dançar para ela e logo depois somos conduzidos a uma festa onde o diretor optou por nos deixar ouvindo música clássica enquanto víamos as mulheres se requebrando ao som de alguma música popular, fazendo essa fusão entre o popular e o erudito, a pobreza e a felicidade.

Anqas traz a angustiante espera da mulher que aguarda seu marido voltar para casa depois de anos trabalhando para a empresa de plástico. Os dois escrevem um para o outro por meio de carta em forma de diário e temos mais um filme narrado. É interessante a inserção de algumas cenas em animação que tem um aspecto de tricô e da subjetividade que o curta aborda o assunto tornando – o mais interessante.

Fechamos a sessão com o belíssimo e delicado Chuva nos Olhos (Lluvia en Los Ojos) uma animação mexicana de Rita Basulto. O filme aborda o primeiro contato da menina Sofia, de sete anos, com a morte, que através do relato de como quebrou seu braço nos convida a brincar com ela e a investigar pra onde seu avô foi que não levou suas coisas, nem sua câmera para mostrar as fotos quando voltasse, nem seu rinoceronte de estimação.

Danielly Ferreira

Clique aqui e confira a programação da Mostra Latino-americana 4 no Festival de Curtas 2013

Sobre sexo e poder

sobre chas e vinhos

“Tudo nesse mundo é sobre sexo exceto sexo. Sexo é sobre poder”. A frase do célebre escritor britânico Oscar Wilde serve como perfeito epítome para o curta-metragem Sobre Chás e Vinhos, dirigido por Lucas Barão, que trata de relações sociais, afetivas e de poder. O filme nos apresenta a um grupo de personagens extraordinariamente complexos e bem desenvolvidos, fundamental nesse tipo de drama psicológico. O resultado atingido é oportunamente seco e até mesmo um pouco frio, sem nunca se exaltar ou esboçar algum sentimentalismo.

Luiza é contratada por Evandro, um recém cadeirante, para ser empregada doméstica em sua casa, onde passa a morar com seu filho, o garoto Francisco. Desse ponto em diante, o roteiro se constrói através de pequenas situações cotidianas que, por mais banais que pareçam na superfície, sempre escondem intenções mais elaboradas.

Outro elemento narrativo importante para a trama é o conspícuo desejo que Evandro nutre por Luiza e as implicações desse sentimento. Francisco tem déficit de atenção e sua mãe lhe educa em casa. Evandro, ao descobrir sobre a situação do garoto, coloca-o em um colégio particular. Por generosidade? Ou para plantar em Luiza o sentimento de estar em dívida com seu patrão? Esse jogo de possibilidades e interpretações se repete a cada cena. Evandro derruba um garfo; Luiza se adianta para pegar; o cadeirante, ofendido, após algum esforço, pega o garfo do chão.

Evandro precisa se exibir como macho, alfa e independente. Em seguida, ele derruba um guardanapo; Luiza não se move; dessa vez, Evandro a encara, em silêncio, até que a empregada se ajoelha e recolhe o objeto. Evandro precisa se exibir como patrão, como elemento dominante e lembrar Luiza de que o seu lugar é abaixo dele. Ou o recado transmitido é ainda mais cruel: o seu lugar é onde ele quiser. Malgrado momentos como este, a verdadeira intimidação vem por parte do único amigo de Evandro, que em suas visitas assedia a moça frequentemente, enquanto o anfitrião assiste calado, demonstrando sua impotência e até mesmo seu ciúmes. Mas qual é a relação dele com seu visitante? E por que, apesar de seu interesse em Luiza, ele permite as investidas abusivas do outro homem?

Mas apesar dessa relação passivamente opressora e da negligência de Evandro, a doméstica parece nutrir certo afeto por seu patrão, o que leva o espectador a novos questionamentos. Seria esse sentimento amor? Ou uma espécie de instinto maternal inspirado pela deficiência do homem? Ou apenas uma reação comportamentalista a generosidade de Evandro?

Após ver o filme percebi que o fruto mais saboroso que ele nos dá não é o do conhecimento, e sim o da incerteza. Aqui, nada podemos afirmar, já que o agoniante jogo de relações de poder – em que o predador se impõe e presa se resigna – proposto por Barão não se dedica em nenhum momento a nos oferecer respostas. Mas se por um lado nada é explícito, por outro, nada é gratuito ou deslocado. A ideia aqui é que o espectador indague-se sobre as motivações existentes por de trás de cada gesto, seja ele um convite para um inofensivo chá ou para tomar uma insinuante taça de vinho. A digestão é difícil, mas as reflexões profundamente necessárias.

Henrique Rodrigues Marques

Sobre chás e vinhos está na mostra Panorama Paulista 4. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Filmar o espaço

sana

As areias brancas dos lençóis maranhenses, a cidade desenhada em preto, velho e vermelho, a suja São Paulo (suja cidade e não cidade suja). O espaço das memórias que despencam como cabelos já cansados, nosso lugar é onde mora nossa memória. Uma mesa de identificação em meio a uma tribo, o não-lugar, o não-pertencimento. Espaços privados demarcados por muros e portões, porém inseguros quando o privado torna-se público – o espaço a serviço do indivíduo endinheirado.

Espaços distintos filmados por óticas e discursos diferentes compõe, de alguma maneira, a Mostra Brasil 1. O espaço é objeto e produto do filmar, da escolha do olhar; não é uno, mas sim, feito de conflito; não é absoluto, relativa-se naquele que o pensa, ás vezes sem pensar. É deslumbrante ou opressor. A cidade é filmada de peito aberto em Unfit – O chá de bebê, reclusa, esteta e repressora em Quinto Andar. A areia branca de Sanã deslumbra a tela, dá-lhe branco e dá-lhe vento e a cortina branca florida encerra o espaço que ficou guardado na memória de O que lembro, tenho. O curto espaço da mesa que ocorre Retrato N. Kahrô parece guardar em si a tensão de um tempo outro em conflito com o nosso, não-indígenas. Por fim, Câmara Escura e o espaço que existe dentro de uma câmera filmadora. Qualquer uma.

Pode ser esta uma leitura reducionista. Mas a disposição dos curtas vistos de maneira linear, dentro de uma mostra curada, deve um influenciar ao outro. Ao menos, um diálogo quer se fazer possível. Muitas das vezes, difícil e irracional. É mesmo intenção do Festival que estes se complementem, que se tornem espaço de reflexão? Sentada eu e os outros espectadores, na caixa preta do cinema, entregues às imagens que vão sendo regurgitadas, criando outros espaços além-tela, espaços em que queremos olhar com mais proximidade. Imersos, enfim. Receptores e articuladores, nós, espectadores, as vítimas e os algozes.

Sanã perde-se em meio a tanto espaço e tantos planos. O perigo de filmar lugares turísticos como agências de viagem esta à espreita. A areia é disforme e o vento que sopra vai recriar sempre um espaço irreconhecível. Não é possível apreendê-lo além de uma cegueira branca. O personagem, Sanã, metonímia do espaço escolhido. Albino em areia e sol. Esconde sua cabeça no buraco, perde sua corporalidade. Sua contradição não se faz em filme. Seu rosto manchado é sempre filmado com algo a frente, interpelado pelo espaço e pelos objetos. Sua voz não nos dá a dimensão do seu existir. Persiste apenas o sufoco sensorial do modo como são filmadas as dunas. Esteta, com ares de fenomenológico. Espaço largo e mutável, ainda assim, concreto.

O que lembro, tenho escolhe o afeto das memórias. O espaço, sim, concreto, mas não se sabe se ainda presente. O fim escolhe sua posição: permanece o afeto, permanece a escolha consciente do indivíduo no fim da vida. O verde gramado da roça, a casa pobre e a janela aberta se intercalam com a cortina fechada de uma casa outra, de uma paisagem que não se vê. A senhora vê o desenho na televisão, mas não o vê. Fazer as malas continuamente é o modo de querer voltar ao seu espaço afetuoso – ao que a memória ainda lhe guarda. O espaço que a memória traz é a realidade de uma personagem. A realidade é relativa a partir do contraponto com o que olha a filha – e o que também olhamos. Os milhos jogados às galinhas num passado são os espalhados no chão de cimento no presente. O espaço perde sua dimensão, torna-se ele aquilo que resta de memórias. Concreto, mas absurdo para alguém que guarda poucas memórias ainda. É a canção que atravessa os tempos sem se importar com o lastro real; que ano é hoje? Não importa.

Quinto Andar, animação, se inicia com a cidade para adentrar no apartamento do personagem. Confinado, ele só sai de seu espaço para adentrar outro: o escritório. A grande cidade se faz entre um espaço e outro. Não pode ser vivida, já que o espaço particular é soberano ao público em uma grande metrópole. O personagem poderá se libertar apenas em sua forma irracional: aí transforma-se em animal. Quinto Andar não propõe, mas visualiza. Não quer entender, entrega. E ao espectador, resta os sintomas da metrópole, inseridos na linguagem da animação que permite o fantástico – o tornar-se outro além da carne e do osso de que somos feitos.

Unfit – chá de bebê escolhe a câmera documental para seguir seus personagens. É de se perguntar se é real ou não, mas o câmera, para além da mão tremida e improvisada, parece inexistir naquele universo. O universo é um apartamento, paulistano, de determinada tribo. A festa, um chá de bebê. O desejo de causar choque é latente. Mas quase tudo é desperdício, se não a cidade vista do viaduto junto do berço de madeira ao lado. O paulistano destemido enfrenta sua cidade. Ela é uma merda, mas também divertida. O paulistano deseja encontrar espaço na sua cidade, mas os headbangers de Unfit escolhem a eterna agressividade de colegial para se expressar.

Retrato N. Kahrô parece curto. Seu fim é abrupto, mas se faz coerente. A questão posta parece insolúvel – documentos oficiais de uma indígena que não precisaria de documentos oficiais, mas que neste mundo de burocracias, só receberá sua aposentadoria a partir deles. O espaço é a mesa de debate, em que a moça que tudo media dá as coordenadas. Não se sabe onde estão, vemos os rostos do indígena, vê-se a mesa improvisada. Tudo está improvisado: a idade da indígena, a mesa naquele lugar. Um espaço vivo de contradição.

Câmara Escura parte do dispositivo. O diretor entrega uma caixa, onde dentro tem uma pequena câmera filmadora, para casas de famílias de classe alta desconhecidas. O dispositivo é só o gatilho. Os muros não devem ser atravessados. A gente toda se apavora. Uma câmera-surpresa é dita invasão de privacidade, atravessa os muros das grandes casas e assombra com a possibilidade de filmar seus grandes quintais. A câmera de segurança desta casa filma a rua do outro lado do muro. O espaço público pode ser filmado, sob justificativas socialmente aceitáveis. O privado, nunca. A pequena câmera filmadora delinea as concepções de espaço que esta classe defende, e traz junto para si as instituições (públicas, por sinal, como a Polícia Civil), que lhes dão respaldo. O espaço a mando de poucos.

O filmar nunca é neutro, sempre é invasão de privacidade. A invasão dos espaços se faz cada vez mais patente, necessária e urgente. Seja das headycams tremidas, das filmadoras escondidas, do traço do desenho, do olhar subjetivo. O espaço é matéria-prima primeira do cinema. O espaço colocado em contradição na tela é agente, fruto de um olhar que politiza, estetiza e poetiza seu universo circuncidante.

Mariana Vieira

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Quero frátria

exposed

“O maior golpe do mundo/Que eu tive na minha vida/foi quando com nove anos/Perdi minha mãe querida (…)”.

Assim começa a canção que abre o plano sonoro desse curta em Super-8, rodado Na Bahia de 1978. É o início de uma jornada anarco-edipiana. Acerca da mãe, temos uma foto, que pode muito bem ser a tumular. A letra da canção, segue, falando da morte dessa mãe, queimada no fogo. O filme mostra indícios de seu poder dessas chamas, crepitando sobre madeira.

Mais do Campo Sonoro: agora, uma oração desesperada, em inglês, falando em Deus e Pai. Na imagem: uma figura masculina (provável cônjuge da mulher-mãe do início) também é visto por foto dotada de uma “emanação” algo lúgubre. Um Menino, sentado em cima da capota do carro dirigido por um homem adulto. De dentro do veículo, “substituímos” o motorista, por meio da câmera subjetiva, o menino escreve em uma folha de papel, que ergue, para vermos uma frase ente ele e o vidro dianteiro do automóvel: “Não Corra Papai”. Paternidade, morte, real ou imaginada em pesadelo, traumática em qualquer dos casos, de uma forma de encenação que talvez evoque, no espectador jovem, vaga lembrança dos filmes asiáticos de horror.

Trilhos de linha férrea. Aparente movimento de entrada em túnel ou estação. Túneis e entradas que me lembraram de uma aproximação simbólica freudiana com o ato da penetração, linha de raciocínio exótica, mas não descartável. Já explorada pelo Rogério Sganzerla crítico, nos carros desbravadores em Os Cafajestes de Ruy Guerra. Algo a se considerar pelo mostrado ao longo do exposto por Navarro.

Voltamos ao Deus-Pai, por meio de canção, que acompanha entre outras imagens, a cópula entre dois cães, e o fogo que queimou a mãe simbólica no início retorna. “Esse mundo é de Deus/Esse mundo é grandão pra caralho”. Deus e mundo terminam no dado fálico, mesmo que a pichação no muro que inicia a sequência seguinte diga que a divindade condena a prostituição.

Órgão, dessa vez o musical, eclesiástico, sacro, na trilha sonora. Militares descendo dos seus veículos de transporte, prontos pra uma ação de ataque, presumindo defesa da pátria, do estado-nação paternal, que acolhe apenas enquanto não pune, não castra. Navarro, como Caetano Veloso na letra de Língua, não quer pátria, quer mátria, quer frátia.

Canhões fálicos e patriarcais antecedem pais da pátria, sejam eles militares ou os antigos monarcas, tornados mitos, Deuses. Ao lado de Cristo e apertos de mãos políticos, nesse panteão há um mito anárquico, como contraponto desestabilizador, que vem do cinema, como redenção: Chaplin.

De novo a mãe Morta. O filho-Édipo estimulado quer expor seu desejo para as mulheres que aparecem. Mas a verdadeira masturbação mental está em regozijar-se das especificações técnicas de um canhão. Expostos os complexos. Ao contrário do esperado, Libertar é Emascular.

Rafael Marcelino

Exposed está na mostra Cinema do Desbunde 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

A força da mulher

a mulher quebrada la mujer rota

O que mais me prendeu a atenção nesses dias de festival foi a representação das mulheres nas diferentes culturas que o integraram.

Logo na minha primeira sessão, latino-americana, me deparei com Solecito, de Oscar Ruiz Navia, da Colômbia. Estrelado por dois jovens selecionados em um casting em um colégio público, o curta-metragem traz a história de um amor inocente. Uma garota marcante tanto pelos piercings e acessórios como pela sua forte personalidade; segura de si, corajosa e que, através de um ótimo diálogo, regado de doses certas de inocência e malícia de ambos os personagens, nos revela uma mulher que no fim, acredita e aposta no amor. Como todas nós. A fotografia é impecável, e as tremidas de uma câmera na mão podem parecer inexperiência de início mas, a mim, caíram como uma luva à inexperiência dos personagens que vivem pela primeira vez uma história de amor.

As mostras brasileiras também trouxeram mulheres que valêm ser lembradas. O que lembro, tenho de Rafhael Barbosa (Alagoas) traz a temática da doença de Alzheimer representada por duas mulheres de muita força. O ambiente é de uma família muito simples, que vivia no interior, uma mãe criando dois filhos sozinha. Com a idade, veio o Alzheimer e a filha é quem passa a cuidar da mãe por toda a sua vida. A fotografia e o modo como esse tema tão triste foi abordado são muito delicadas; as personagens, apesar do sofrimento, me passaram uma profunda paz interior e algo que poderia trazer uma carga emocional forte e pesada é retratado com extrema sutileza.

Da Suécia veio a história de uma mãe solteira e cheia de desejos. Game, de Ylva Forner, se passa na sala de estar de Elizabeth, uma mãe que volta de um encontro ruim e se depara com Adam, amigo de seu filho adolescente, jogando videogame na sala. O garoto não parece se constranger muito com a situação e convida Elisabeth para o jogo, que primeiramente recusa, mas se deixa levar pela inocência da situação e termina por aceitar. Os dois passam a se divertir, ao mesmo passo que o desejo nos olhos de cada um vai surgindo. O diálogo entre eles começa banal, evolui e os aproxima cada vez mais. Uma belíssima fotografia e ótimas atuações nos levam ao mundo de cada uma das personagens; Elizabeth vê em Adam um mundo onde suas preocupações não existem, a juventude. Adam projeta em Elizabeth a experiência, o amadurecimento.

Outro forte retrato cultural da mulher foi abordado em Mais de duas horas (Bishtar az do saat), de Ali Asgari, do Irã. Porém, essa que poderia ter sido uma narrativa forte e emocionalmente intensa, se perdeu nas linhas de um roteiro fraco. Um casal de namorados infringe as leis religiosas de sua sociedade e pratica o sexo antes do casamento. Por problemas de saúde, o casal passa a noite atrás de um hospital que aceite tratar da mulher sem que ela apresente certidão de casamento. Sem encontrar outra saída, a mulher aparentemente se suicida. O curta não me agradou, vi nele uma fotografia despreocupada, diálogos que não se aprofundam muito e uma abordagem muito vazia de um tema que traz tanta carga emocional na bagagem.

Do Uruguai veio um dos melhores curtas que assisti nesta edição do Festival. A Mulher Quebrada (La Mujer Rota), de Jeremias Segovia, combina tudo que uma boa ficção deve ter. De início uma mulher gravemente ferida chega a um prédio e pega o elevador. Todo em preto e branco, e trabalhando muito bem os elementos de luz e sombra que essa técnica proporciona, sua viagem até o sexto andar é o ponto de partida de um suspense conduzido pelo olhar da câmera, e que aos poucos revela detalhes dos seus ferimentos e direciona o espectador à decifrar o que pode ter acontecido com essa mulher.

Um senhor entra no elevador e, em um timing perfeito, revela-se que este, que aparentemente iria se deparar com uma mulher coberta de ferimentos, é cego. E daí começam a surgir os componentes cômicos da narrativa, em meio a todo o suspense. O desfecho segue os mesmos passos; a mulher entra em um apartamento e o olhar da câmera continua a nos conduzir à descoberta do que aconteceu alí, em meio a um ótimo jogo entre a direção de arte e a fotografia. O fim traz uma dose certa de comicidade e, para mim, uma metáfora à força, determinação e inocência da mulher.

Julia Lacerda

O menino, o velho e a árvore: um faroeste moderno

arapuca

“Sobre uma árvore” como descreve a sinopse. E de fato é mesmo, mas não apenas sobre uma árvore. Arapuca escrito e dirigido por Hélio Vilella é um daqueles filmes que você quer ver sempre e pra sempre sem cansar de assistir. O filme é marcado por planos abertos e algumas sequências no maior estilo faroeste, poucas falas e personagens carismáticos. Além de uma fotografia sensacional.

Começa com uma sequência belíssima de cenas onde um garoto come uma fruta, enterra a semente e urina em cima dela; há uma passagem rápida de tempo, a árvore já está grande, cheia de novos frutos, e voltamos ao jato de urina, mas agora o menino já é um senhor. A sequência anuncia uma forte relação dessa personagem com a árvore, eles cresceram juntos, apenas os dois. Só essa sequência já é digna de subirem os créditos e receber aplausos, mas o filme consegue nos cativar ainda mais com a chegada do menino que perde sua pipa perto da árvore e resolve subir nela pra pegar uma fruta. O velho, muito incomodado com a presença de outra pessoa perto de sua árvore, expulsa o menino que vai embora, mas volta.

A partir dai o velho vai tentando afastar o menino da árvore, como se fosse um pássaro que estivesse lá para destruir o que ele cuidou todos esses anos. O velho inclusive coloca um espantalho a fim de afugentar o garoto que, com a inocência de criança, leva tudo aquilo como uma brincadeira – ao mesmo tempo que quer irritar, quer se aproximar do velho.

O primeiro confronto entre os dois remete aos clássicos westerns americanos, o plano aberto com a sombra dos dois em meio a paisagem, um de frente para o outro mantendo uma certa distancia, passando para um plano aproximado de cada um e finalmente a troca de olhares à Clint Eastwood.

E assim um vai criando armadilhas para o outro. O ator mirim, muito expressivo, consegue fazer rir com as respostas que dá ao velho, às vezes passando a impressão de ser mais maduro que o próprio senhor, sabendo reconhecer quando ele tem que pedir desculpas.

No desfecho da história o velho acaba como começou – sozinho –, com a sensação de ter vencido o menino na brincadeira, só que dessa vez sem sua companheira a árvore.

Curta mais maduro em relação ao curta anterior de Hélio, A Mula Teimosa e o Controle Remoto, com grande potencial pra desenvolver um belo longa investindo nessa temática, leve, minimalista e delicada. Fica de minha parte um gostinho de quero mais.

Danielly Ferreira

Arapuca está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Morte branca

o homem que matou deus-ed

O homem que matou Deus o fez de forma consciente, precisa e a sangue frio, não seria de outro jeito, uma vez que o teocida em questão é quem é.

Enquanto prepara as armas para uma caçada que ali é ato corriqueiro, o índio responde as perguntas que lhe são feitas pelo cinegrafista. O índio é Wem Tom, o cabeça entre os caçadores ali presentes, o destemido porta-voz daquela aldeia cuja liderança garante o sucesso de cada caçada. Mas a compulsão instintiva que leva Wem Tom a abater suas presas vai além da necessidade básica de alimentação; esta compulsão nasce principalmente do ódio e o instinto é de contra-ataque. Sendo assim, a satisfação do herói indígena a cada presa alvejada é justificada quando o homem branco se revela como caça.

Sim, o implacável Wem Tom se mostra um fora-da-lei, pois naquela longínqua região aos arredores de Rondônia não é permitida a caça ao homem branco (seja esportiva ou para consumo). E mesmo deixando clara sua vontade de andar conforme a lei manda – pois luta pela legalização deste tipo de caça em regiões onde a espécie seja abundante ou prejudicial ao meio ambiente –, o letal Wem Tom não demonstra intenção de poupar um espécime se quer, seja mulher, homem ou criança*.

Mas Wem Tom não tem culpa, as características que formam este exterminador/consumidor de homem branco foram definidas por Ele, o Todo Poderoso, Deus, com quem iria ter mais tarde. O Criador o fez assim, e há quem possa dizer que O Senhor foi generoso para com Wem Tom, pois lhe deu uma pontaria incredível, deu-lhe velocidade absurda, deu-lhe astúcia e uma força que lhe permite travar batalha com um jacaré de 3 metros para poder cruzar um rio.

Wem Tom discorda dessa generosidade divina; para ele, o fato de ter nascido um dos últimos de sua etnia somado ao fato de ser o melhor na arte de encurralar e matar o fizeram o que ele é, daí nasce a já citada compulsão instintiva, estes são os elementos que formam o homem que matou Deus. E é de se surpreender que a onisciente divindade tenha se surpreendido; que descanse em paz.

*cuja carne é mais macia e menos ácida, o que permite combinações gastronômicas mais variadas.

Led Franzoso

O Homem que Matou Deus está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Terror cotidiano

tremor

Tremor é um filme que depende muito da imagem de seu protagonista, sua inserção nos espaços gradativamente infernais em que percorre. Há, assim, uma grande centralidade na figura de Elon Rabin (que empresta seu nome ao seu personagem), ator que possui um perfil incomum para a tela de cinema – barba a fazer, cabelo grisalho e ondulado, fechados numa trança, os olhos pequenos e negros, a estatura baixa e passiva.

Descrevo-o assim pois o curta lhe observa de maneira a ressaltar sua fisicalidade, sua “couraça muscular” – a trajetória principal da narrativa se encontra aqui, na dramaturgia criada a partir da relação entre a câmera e as expressões corporais e faciais de Rabin; por vezes ficamos minutos sem enxergar seu rosto, há uma tensão em descobrir seus sentimentos. Trata-se de um homem em busca de um rosto e uma expressão, que lhe afague, drama que se acentua pela sua localização – Rabin está a caminho de um reconhecimento de um corpo que se encontra no subsolo do IML, local macabro, porém brutalmente banal, opressivamente real.

Com uma história que poderia seguir diversos rumos, é interessante pensar que uma das principais decisões estéticas e narrativas, aqui, seja o casting em si e o olhar instigante direcionado ao personagem. Tudo começa, aliás, com um rumo inesperado: um cavalo que caminha sozinho na cidade, como se estivesse perdido de seu dono; uma busca tal qual a de Rabin, mas cujas possíveis significações me escaparam numa primeira assistida – na cabeça, restou muito mais a ambientação delicadamente sombria do filme e o corpo de seu protagonista.

Encontrando o drama e sua fotogenia na frieza dedicada ao cruel cotidiano imposto a personagem, a abordagem do curta me pareceu muito em linha com uma série de curtas metragens brasileiros recentes, que dedicam-se a retrabalhar clichês de gêneros do cinema minimalisticamente, acentuando seu impacto através de uma tentativa de indistinção entre o drama (ou terror) cotidiano e o encenado, atenuando a ansiedade e a violência que existem nos espaços em que habitamos, nos rostos solitários que vemos de relance na rua. No caso, Tremor consegue tirar seu clímax a partir de um plano simples e próximo do rosto de sua personagem, com a qual dividimos uma revelação íntima e melancólica; na sala de cinema, é uma vitória.

Rodrigo Faustini

Tremor está na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Muito além do estranhamento

os invasores

Um jornalista entrevista um médico acerca de uma pesquisa inovadora no campo do sono. Num primeiro momento um olhar enrijecido sobre a cena, aliado a uma intensificação do estranhamento oriunda de uma encenação demarcada, podem sugerir duas dinâmicas contidas em Os invasores: um falso documentário e/ou a tentativa de construção de uma atmosfera de intenso estranhamento que irá ditar as regras (ou ausência delas) que regem o mundo observado no filme.

Num segundo momento nesta mesma cena o golpe decisivo que desconstrói as duas hipóteses levantadas acima e instaura de fato a mecânica do olhar proposto pelo filme: mantendo o mesmo olhar rígido sobre a cena, o médico responde com aspereza e ironia a pergunta do jornalista acerca de uma possível desumanização com a eliminação do sono e consequentemente dos sonhos na vida das pessoas – sonhos vistos como férias ou terapia. Ataque e desconstrução acerca das duas hipóteses levantadas logo de cara. Instauração de um humor irônico que contrasta com as expectativas primeiras criadas a partir da construção formal do olhar lançado sobre a cena. Os invasores lida justamente com isso: ataque e desconstrução de um discurso e de uma forma de olhar para o mundo. Mas a que e em que consiste esse ataque exatamente?

Seguimos. Mais uma cena no hospital: novamente dentro de uma dinâmica de um olhar rígido, observa-se um exame de tomografia na qual a situação foge do controle – estranhamento e incômodo se instauram novamente. O elo que possivelmente confere unidade ao suposto regime de estranhamento imposto pelo olhar proposto surge na figura dos “invasores” extraterrenos. Seria possível esboçar algumas teorias acerca do porquê esses “invasores” surgem. Nada disso é necessário ou sequer possível – mais uma vez uma provável justificativa para esse regime de estranhamento reside no discurso e no olhar depositado nas situações: arbitrariedade.

O surgimento da figura dos “invasores” como uma explicação arbitrária no universo do filme aflora como um ataque frontal a um tipo muito específico (e muito em voga) de olhar: aquele que busca a construção de uma atmosfera de estranhamento na realidade observada pelo simples efeito que tal estranheza carrega – espécie de olhar que se configura tanto como um registro de um incômodo no qual o cineasta não precisa se posicionar quanto como uma mera constatação: baliza-se o filme somente pelo valor de diferenciação que tal estranheza carrega – arbitrariedade ironizada e problematizada em Os invasores – portanto, uma vaidade pura misturada ao conforto da omissão perante o mundo.

Nesse contexto a desconstrução irônica do olhar proposta por Os invasores surge não apenas como uma sátira estéril e sim como uma tomada de posição: combate-se um tipo de olhar (e portanto de cinema) que se alija cada vez mais em relação a um debate crítico acerca do mundo que observa, e ao qual atribui como origem desse pretenso sentimento de estranheza – que ao justificar-se por seu valor de diferenciação e constatação não obriga o questionamento acerca de suas origens nem de possíveis conflitos e problemáticas existentes na realidade observada.

Filme sobre cinema: não como deleite em relação ao aparato nem fetiche metalinguístico (como muito se observa na produção universitária, da qual Os invasores faz parte). Filme sobre cinema no sentido de se recuperar a ideia de responsabilidade para com o olhar lançado sobre o mundo. Responsabilidade muito esquecida em prol de um sentimento de estranheza que transforma o mundo observado em um museu. Assim, filme sobre cinema como ato de resistência a simplificação brutal do olhar.

Guilherme Maggi Savioli

Os Invasores está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013