Para além do preto e branco

parque sovietico

por Lucas Navarro –

Comecemos por Parque Soviético. Um casal com encontro marcado dentro de um parque construído em homenagem aos sovietes discute a relação e sua inadiável separação. Na medida em que o diálogo vai tomando a forma prevista do desenlace, a escuta atenta-se para o eco fantasmático dos monumentos cuja reverberação equivale ao mistério da crise. A voz desses obeliscos mudos fala aquilo que o casal silencia. Ambas são, salvo as dimensões, guerras frias.
Há, porém, entre discussões e reconciliações, uma pista, contada somente nas imagens, da natureza misteriosa dessa relação. Ela sucede a abordagem do rapaz nas moças que se fotografam. Consiste em uma série de planos corriqueiros dos gestos retirados da cena que acabamos de ver, só que, agora, vista “de fora” pelos olhos da mulher que os individualiza em fragmentos: sorriso, carícia, olhar: signos que, convertidos pelo olhar ciumento em indícios da culpabilidade do parceiro, compõem o secreto idioma do qual ela não participa. Resta aquela conhecida violência em sua absoluta magnitude infringida contra si própria, decifradora – fracassada – de cenas. A sequência termina com uma segunda suspensão que poderíamos chamar de montagem dialética pouco ortodoxa ao princípio eisensteiniano. Refiro-me a interrupção do fluxo narrativo que des-cobre, em três quadros, o estado desses personagens que, destacados sobre batalhas opostas, convergem na síntese de um mesmo fundo. Entretanto, mal nos acostumamos à terceira via refletida no abraço, voltamos à afirmação da diferença.

Se existe uma lei que aproxima essas duas potências ela está na mútua seriedade com que não participam do encanto contido num mesmo corpo. Tanto isso é verdade que todos os defeitos são levantados até que não reste mais nada com que se possa ornamentar a matéria rochosa. A força contida na diferença cumpre o gesto de ferir lembranças encararando o rosto livre de códigos decifráveis.

O preto e branco conecta Parque Soviético e La Llamada. Não há a intensão de justapor os curtas apenas porque empregam esse efeito, mas sim lidar com as particularidades a partir desse ponto de contato. Enquanto que no primeiro caso essa opção funciona como um personagem norteador que acentua uma diferença primordial – ela veste branco; ele, preto – no segundo ela aparece como resistência à cor – tão cara a Cuba – contrastando o peso da memória ao vazio cotidiano. Ambos os filmes motivaram esse texto menos por suas relações exteriores do que pelo impacto que tiveram iniciando e concluindo uma mesma sessão. Reduzi-los em conceitos significaria ignorar a insolubilidade da experiência que provocaram.

Divididos por uma grade, o cineasta faz perguntas ao seu personagem até que esse assine o termo de contrato para instalação do telefone, o dispositivo que envolverá o filme. Já temos aqui um modo muito original de aproximação do assunto por meio de uma brincadeira metafórica que conecte o interior ao além-grades. A partir desse primeiro contato passaremos para o outro lado sem mais abandoná-lo. Ficamos então a observar pequenas cenas onde a intensão previamente organizada compete com o acaso circundante, gerando mais-valia nos termos do cinema.

Nos dois filmes lidamos com relacionamentos cuja crise pouco se sabe. Aqui as memórias de um filho, esposa, amigos e revolução são atenuadas via furacões. Já o advento do telefone pouco lhe altera o horizonte, pois a chance de ouvi-lo tocar é desacreditada meio que por antecipação, afinal ninguém possui seu número. A respiração das cenas parece, contudo, sugerir a chance de ouvir, a qualquer momento, a chamada.

O filme passa então a crescer sobre o abismo do seu personagem até o ponto em que esse, durante a simulada conversa com o filho, desvela o sadismo desse dispositivo, colocando em xeque todo um modo de olhar para si que escapa ao cineasta. A notória abertura dessa cena para autocrítica mostra como, por vezes, personagens diante do filme estão como bebês diante do canibal.

A resignação se revela potência. Isso por que Gustavo Vinagre parece ter plena consciência de que qualquer imagem quando projetada no quadro suscita questões que são, antes de tudo, questão de cinema. Pois é exatamente sobre uma tela autossuficiente que se exprime o ponto de chegada de La Llamada, sendo o seu valor documental meramente acessório. Resta, porém, a secreta vontade de conferir se o número revelado romperia as conhecidas grades que separam personagem e espectador.

Parque Soviético e La Llamada estão na Mostra Brasil 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Dia branco: o mundo daqui, o mundo de lá

dia branco

João Gabriel Villar da Cruz –

Um filme pode ser de longa, média ou curta metragem e, nessa lógica, um curta nada mais é do que um filme mais curto – abaixo de quinze minutos –, e a sua única diferença em relação ao longa está na duração. Pensamento plausível e perfeitamente condizente com a nomenclatura. Por isso mesmo que devia haver outro nome: um curta não é só um longa curto. Curta-metragem que quer ser longa se perde em si próprio, um curta deve ser emancipado do imaginário de longas para poder respirar sozinho.

Não se trata de tom ou de ser ou não narrativo. Trata-se de uma consciência dos limites palpáveis – de tempo, de ambição – não como gesso mas como estímulo. Em vez de adaptar o que se quer dizer ao espaço do curta, simplesmente, dizer… um curta. Parece que – e isso não é a colocação de uma regra do bom curta, apenas uma constatação nascida da observação – um curta não quer dizer, simplesmente diz, é dito. Ao contrário do longa, onde a extensão dos acontecimentos que se desenvolvem e relatos que se entrelaçam tornam muito mais consciente o trabalho do autor – assim como a recepção do espectador –, um curta pode se permitir ser e acontecer. Talvez, tentando-se examinar o que mais se salta aos olhos dentro da produção de curta-metragem e colocando-a frente aos longas, possa-se encontrar nesse fator uma diferença essencial – mas não arbitrária – entre os dois formatos.

Em um dia frio e sem sol, três meninos estão em um pico, onde não tem sinal de 3G (“O bagulho que entra Facebook, Twitter, e-mail”). Demoramos para ver seus rostos, a princípio eles são apenas presenças, palavras soltas. O mundo ficou lá em baixo e dele aqui só existem as imagens armazenadas no celular – fotos de família e amigos, tiradas a esmo, que nos são apresentadas a princípio – e trivialidades sendo faladas. Ou ao menos assim parece: perdido entre as corriqueiras conversas dos meninos, está um amigo morto, cuja missa acontece lá em baixo, em uma igreja que mal se vê por entre a neblina, enquanto os três se isolam no espaço tão vazio quanto o dia parece ser lá em baixo.

Nesse meio delicado, a câmera, que correria o forte perigo de ser uma intrusa ali, resolve se esconder atrás da própria paz do dia: sua presença ali é tão natural quanto a da neblina, uma câmera tão tranquila quanto o dia – branco, sereno, calmo, melancólico –, que mapeia a ação com uma leveza quase imperceptível, e também escorrega dessa de volta para o céu e a nebulosa vista com a mesma naturalidade.

De intruso mesmo, só o grupo de turistas que aparece ao longe registrando, com um tablet, a presença naquele lugar – que não é deles –, mas que também some sem deixar marca que não seja um leve desvio no assunto dos meninos, assunto que vagava com tanta errância e calma quanto a própria câmera. Talvez até demais: O assunto desvia da morte sempre de raspão, e sempre marcado por uma forte indisposição e tristeza. O silêncio parece sempre preferível, quando suportável. Um dia marcado pelo peso de que eram pra ser quatro ali, sempre foram quatro, e agora a única evidência palpável do quarto que não voltou é uma fita amarrada na árvore – é sempre alguém diferente, entre os quatro, que escolhe onde ela vai ficar –, que permanece lá, ainda demarcando a corrida que os meninos ainda competem.

Ora o silêncio pesa, ora a palavra se perde. A verdade é que são todos tão opacos quanto o próprio dia, parabéns aqui aos atores, que se deixam existir na frente da câmera – façanha muito mais difícil do que se pensa – ao mesmo tempo que permitem que seus personagens se retraiam. Para atrás da neblina. Para dentro das fotos. Para dentro do conforto da fraterna crueldade do outro, emulação de uma convivência que persiste em se fingir banal como sempre, como o céu.

Dia Branco está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

O menino, o velho e a árvore: um faroeste moderno

arapuca

“Sobre uma árvore” como descreve a sinopse. E de fato é mesmo, mas não apenas sobre uma árvore. Arapuca escrito e dirigido por Hélio Vilella é um daqueles filmes que você quer ver sempre e pra sempre sem cansar de assistir. O filme é marcado por planos abertos e algumas sequências no maior estilo faroeste, poucas falas e personagens carismáticos. Além de uma fotografia sensacional.

Começa com uma sequência belíssima de cenas onde um garoto come uma fruta, enterra a semente e urina em cima dela; há uma passagem rápida de tempo, a árvore já está grande, cheia de novos frutos, e voltamos ao jato de urina, mas agora o menino já é um senhor. A sequência anuncia uma forte relação dessa personagem com a árvore, eles cresceram juntos, apenas os dois. Só essa sequência já é digna de subirem os créditos e receber aplausos, mas o filme consegue nos cativar ainda mais com a chegada do menino que perde sua pipa perto da árvore e resolve subir nela pra pegar uma fruta. O velho, muito incomodado com a presença de outra pessoa perto de sua árvore, expulsa o menino que vai embora, mas volta.

A partir dai o velho vai tentando afastar o menino da árvore, como se fosse um pássaro que estivesse lá para destruir o que ele cuidou todos esses anos. O velho inclusive coloca um espantalho a fim de afugentar o garoto que, com a inocência de criança, leva tudo aquilo como uma brincadeira – ao mesmo tempo que quer irritar, quer se aproximar do velho.

O primeiro confronto entre os dois remete aos clássicos westerns americanos, o plano aberto com a sombra dos dois em meio a paisagem, um de frente para o outro mantendo uma certa distancia, passando para um plano aproximado de cada um e finalmente a troca de olhares à Clint Eastwood.

E assim um vai criando armadilhas para o outro. O ator mirim, muito expressivo, consegue fazer rir com as respostas que dá ao velho, às vezes passando a impressão de ser mais maduro que o próprio senhor, sabendo reconhecer quando ele tem que pedir desculpas.

No desfecho da história o velho acaba como começou – sozinho –, com a sensação de ter vencido o menino na brincadeira, só que dessa vez sem sua companheira a árvore.

Curta mais maduro em relação ao curta anterior de Hélio, A Mula Teimosa e o Controle Remoto, com grande potencial pra desenvolver um belo longa investindo nessa temática, leve, minimalista e delicada. Fica de minha parte um gostinho de quero mais.

Danielly Ferreira

Arapuca está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Em respeito à solidão

au revoir

O minucioso controle e planejamento dos gestos, palavras, enquadramentos e cortes parece procedimento minoritário no atual contexto do cinema de caráter mais “autoral”. Em meio à um mar de planos propositadamente esgarçados, gestos “espontaneamente” rarefeitos em seus sentidos e uma certa utilização da ambiguidade como fator pré-legitimador a filmes que se querem “sérios”, Au Revoir, de Milena Times, chega como uma necessária recordação da riqueza e pertinência que a construção cinematográfica econômica e precisa em suas escolhas, sem receio de fazer sentido, pode agregar a um filme.

O corpo da protagonista carrega em cada gesto uma objetividade narrativa que, ao contrário do engessamento que tal escolha dramática aparentemente suscitaria, acaba por pontuar ao longo do filme – aliada sempre à fala precisa e à uma minuciosa exploração espacial – os exatos humores e níveis de familiaridade vividos entre a brasileira e a senhora sua vizinha ao longo da delicada relação ali estabelecida.

O hall do edifício em que moram é a primeira fronteira entre suas intimidades. Encontrando-se através de seus respectivos exílios, as duas mulheres percorrem um caminho de incômodas minúcias. O apartamento vizinho, que a mais jovem, a princípio, adentrava com acanhamento e retidão, passa a ser um prolongamento de seu lar: um imóvel do qual partilha as chaves e a solidão inabitável.

Se a fronteira entre seus apartamentos é logo transposta, a total aproximação entre as duas personagens só esboça se dar por completa sob a íntima e solitária lógica da dor humana, na qual, em sua excruciante plenitude, só é possível permanecer sozinha(o). Quando a jovem esboça partilhar de seu sofrimento, a convalescente senhora necessita partir: Não existe calvário com lugar para dois.

Os últimos planos do filme são os do apartamento da falecida, vemos a brasileira sozinha no quarto de cama vazia e a sala sem seu gato: nem mesmo Hércules resistiu. Idos aqueles poucos próximos de si, restam à jovem a indiferença do espaço e um cilindro de oxigênio, condições típicas para todos nós, exilados.

Bruno Marra

Au Revoir está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013