Filme de amor

“Pra Eu Dormir Tranqüilo” é um filme de amor mesmo, não de terror, como diz o título do texto de Mirrah Iañez (leia aqui). É um amor que encontra formas não ortodoxas de se expressar; é necrofilia cinematográfica, considerando que “nekrós” vem de cadáver e “phil” de amor. A história do garoto que encontra a babá, já falecida, no armário de seu quarto, o único monstro dentro do armário do qual Luís não tem medo.

No entanto, medo permeia o filme, seja pela aparência quase grotesca da babá necrosada ou pelo pânico que toma a mãe de Luís, na espera do segundo filho. Na ausência da mãe, a defunta Dora cumpre seu papel até após a morte. Mesmo assim, o carinho que a babá nutre por Luís não é o suficiente para mantê-la e o garoto passa a alimentar o seu sonho com aves e cachorros; ele caça a carne que sustenta seu delírio. Ocorre assim uma inversão de papéis: é Luís que cuida de Dora, que se preocupa com ela, que faz de tudo para protegê-la.

O filme pode se perder no clichê do filho ciumento, com medo da substituição do afeto. A mãe transtornada beira cair no estereótipo da depressão pós-parto e o pai invisível faz com que o espectador pondere se ele é relapso ou apenas um extra.

Na casa vazia, Dora, com aparência saudável, chama Luís para o café da manhã. Seu paraíso se concretiza enquanto pinta figuras escarlates no papel ao lado de Dora. Gostaria que seqüências como essa pontuassem mais o filme, cenas oníricas como essa de pura ternura sanguinária. (Mariana Serapicos)

“Pra Eu Dormir Tranqüilo” está na Mostra Brasil 2.

Onde é que o Graffiti mexe?

“Graffiti que Mexe” é uma animação muito bem feita, divertida, plasticamente bonita, produzida por um coletivo, o que costuma ter efeitos no mínimo interessantes sobre o resultado final, e o beatbox como trilha sonora ficou incrível.

Mas, lendo a proposta do filme e do coletivo “Graffiti com Pipoca” de engajar e conscientizar por meio da arte, e de que o cenário dessa arte seja a cidade, parece que fica faltando alguma coisa. A ludicidade, as cores e a beleza do graffiti estão lá, mas apenas para ilustrar a idéia de que a experiência de grafitar ou somente o contato com essa expressão artística poderosa que é o graffiti são transformadoras.

Parece que o potencial de expressão do cinema – que não se resume a apenas ilustrar – foi subutilizado, subutilizando também o graffiti. Talvez a intenção fosse, de fato, apenas brincar com essa idéia de movimento e de efemeridade que são características do graffiti. Mas parece que ficou faltando, na minha opinião, é claro, a coisa mais importante: a cidade – aquilo que o graffiti pode mesmo transformar. (Beatriz Macruz)

“Graffiti Que Mexe” está na mostra online KinoOikos.

Aqui, o jornal da edição 2011

critica curta 2011

Na edição de 2011, os participantes da oficina Crítica Curta foram convidados a redigir textos críticos sobre os filmes apresentados no Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. O resultado foi a publicação de um tabloide, distribuído ao final do evento. Para baixar o tabloide clique aqui.

Ao todo 23 alunos de universidades, faculdades e escolas livres de audiovisual do estado de São Paulo escreveram sobre os curtas exibidos na Mostra Brasil, Panorama Paulista, Mostra Latino-americana, Oficinas Kinoforum e Mostra KinoOikos. Para baixar o tabloide, clique aqui.

As páginas seguintes trazem 51 textos (editados a partir de um total de 112) sobre 51 filmes exibidos pelo Curta Kinoforum. Seus autores, como a leitura mais atenta revela, têm ideias muito distintas em relação ao cinema e, de maneira mais ampla, ao audiovisual contemporâneo. Essa diversidade ajuda a compreender as principais tendências de pensamento hoje em circulação nas escolas paulistas de audiovisual e, talvez, alguns dos valores políticos e estéticos mais caros à geração que chega neste momento ao cenário da produção.

Boa leitura!

(Sergio Rizzo)

Armando o jogo

Primeiras imagens. Um homem no banheiro. Cocaína. Uma arma na mão. Olhar e gestos tensos. Cortes rápidos. Um senhor calvo compra uma passagem na rodoviária. Três mulheres na plataforma da rodoviária, duas adolescentes e uma mais madura. O homem do banheiro as olha de longe. A câmera toma a subjetiva e passeia longamente pelo corpo das mulheres. O olhar do homem mostra raiva e desejo. O homem calvo chega, cumprimenta-as. São sua família. Ele entra no ônibus. Porta do ônibus fechando, preparando-se para partir, mas é impedida pelo homem do banheiro, que entra apressado e senta ao lado do homem calvo.

Esses passos iniciais parecem o prenúncio de uma tragédia, e assim o diretor Marcos Fábio Katudjian habilmente conduz sua narrativa. Tomando como base a refilmagem de “Cabo do Medo” por Martin Scorsese (1991), a progressão do embate entre o ex-detento Jonas e o promotor Dr. Mascarenhas, que o mandou para a cadeia, chega a um nível quase insuportável, ancorado na força dos diálogos e atuações precisas dos atores.

Quando tudo parece que vai para o desfecho trágico ou que iremos mais fundo no poço, a percepção de Jonas se volta para alguém entrando no ônibus (seria a polícia?). Sua expressão denota surpresa e aí vemos quem está entrando… Só nesse momento lembra-se o nome do curta: “Rivellino”. E é ele mesmo que surge. Os personagens, antes envoltos no clima de tensão, esquecem-se de tudo e mostram-se mais do que fãs, pessoas que tiveram suas vidas marcadas pelas suas atuações. Outro clima instala-se no curta; toda aquela tensão some como mágica e assume tons cômicos e sentimentais de homenagens ao jogador.

É um pequeno milagre conduzir duas partes tão díspares de forma tão completa e com uma transição sem traumas entre elas, mantendo a coerência e a facilidade de comunicação com o público, sem deixar de surpreendê-lo. Se isso é difícil num longa-metragem, imagine condensado em 16 minutos. Um filme completo em sua proposta e com potencial para atingir em cheio as pessoas, muito além dos amantes de futebol. (Carlos Alberto Farias)

“Rivellino” está no Panorama Paulista 4.

Um curta antes de um longa. Por que não?

A chamada “lei do curta” foi criada em meados da década de 1970 e previa a exibição de um curta antes de cada sessão de longa-metragem estrangeiro. Foi combatida ferozmente pelos donos de cinema e simplesmente descumprida (está em vigor até hoje, aguardando uma nova regulamentação). Explico essa situação porque é na época da “lei do curta” que se passa a história de “Tela”, de Carlos Nader.

Logo no início, um letreiro nos informa sobre a “lei do curta” e nos conta a história de um diretor fictício que teria feito um filme chamado “Inferno”, que consistia em 15 minutos de um plano único de uma sala de cinema com espectadores assistindo a um filme. Esse é o ponto de partida da história de Nader, que tenta discutir uma das leis mais polêmicas do audiovisual brasileiro.

De um lado, o público, que se vê diante de uma obra a que não escolheu assistir. De outro, os exibidores, que não querem dividir os lucros da bilheteria com os curta-metragistas, nem perder o tempo disponível para veiculação de filmes publicitários antes das sessões (até no cinema somos obrigados a assistir a alguém tentando nos vender algo). É claro que o curta de Nader não se aprofunda na questão e fica apenas com as reações do espectador, como se na tela estivesse sendo exibido um reflexo do que está ocorrendo. Usando o subterfúgio do sonho, o personagem principal acorda dentro do próprio sonho e se revolta com a exibição do tal “filme de gênio”.

Para além da revolta do público, é interessante que um filme de curta-metragem aborde de maneira descontraída e crítica uma lei antiga que caiu em “desuso” (é revoltante essa expressão). Uma situação que hoje não seria possível vislumbrar. Imaginem o sujeito querendo assistir a “Planeta dos Macacos” e antes da exibição se deparar com o curta “Ninjas”, de Denisson Ramalho (exibido no festival ano passado). Seria chocante.

Mas é claro que existem maneiras de selecionar e classificar os filmes para cada tipo de sessão; seria muito fácil colocar a lei do curta em prática. A realidade é que a má vontade governamental e do mercado de exibição impede que os curtas voltem a ser exibidos em circuito comercial. Seria muito melhor ver curtas do que a publicidade chata e repetitiva que somos obrigados a assistir, mesmo pagando ingresso. Ou seja, aos espectadores só resta o abuso. (Renato Batata)

“Tela” está na Mostra Brasil 6.

Nas oficinas, jóias audiovisuais

Os programas das Oficinas Kinoforum foram muito interessantes. Percebe-se que a cada lugar em que foram feitos os curtas há uma visão diferente de como se fazer cinema. Uma coisa que ficou muito clara ao ver as mostras, tanto a especial de 10 anos quanto a das oficinas do ano passado, é que há muitos documentários, talvez por uma necessidade dos moradores de periferia de mostrar sua realidade, o que pensam do mundo, e isso é muito importante, pois está sendo passado através da arte.

A sala estava lotada nas duas apresentações das oficinas. Parentes, amigos e o público em geral viram ali um trabalho muito bom, que vai além dos filmes, mexe com a vida das pessoas. Aliás, isso foi dito por vários participantes. Um deles salientou até que fez a oficina quando estava chegando a São Paulo e, ali, conheceu as pessoas com quem convive hoje. Depois, todo orgulhoso, exclamou: “Eu deixei meu antigo emprego e hoje posso dizer que vivo de audiovisual”.

Claro que não é objetivo principal das oficinas que seus alunos trabalhem na área, mas é interessantíssimo ver que a vida das pessoas começa a ser mudada com arte, até porque há nos curtas feitos ali jóias audiovisuais como “Pueril”, de Jean Pierre Dominguês e Fernando F. Freitas, um documentário sensível e brilhante que mostra o cotidiano das crianças de uma creche. Um curta muito engraçado de assistir, pois o público de tempos em tempos se dividia em dois tipos de reação: ou ria adoidado, ou ficava com aquela cara de “olha que bonitinho” ao ver as situações protagonizadas pelas crianças.

Dou como exemplo “Pueril”, mas poderia destacar diversos curtas com qualidade idêntica, como “Entre”, de Carlos Côrtes e Maira Di Giaimo, que debate com lésbicas temas como família, casamentos e preconceito. Esse curta começa com uma sacada muito boa, com a equipe entrando em um armário, em referência à expressão “sair do armário”.

Além de trazer-nos obras muito boas, os programas das oficinas serviram para mostrar o resultado de um excelente trabalho realizado pela Kinoforum e trazer um lado mais humano, de como a criação artística pode ser fundamental para melhora de vida e de visão de mundo das pessoas. (Henrique Gois de Melo)

“Pueril” e “Entre” estão na mostra Oficinas Kinoforum 1.

A essência do “bullying”

Em uma época em que se fala tanto em violência gratuita, pensa-se muito na violência física e se esquece da psicológica. Mas, como dizem: às vezes uma palavra doi mais do que um tapa.

Faz um tempo assisti ao documentário “Amor?”, de João Jardim, e logo em seu começo uma senhora diz que cometeu muita violência contra seu marido; não bateu nele, mas fazia com que ele se sentisse um nada. Se alguém pode fazer com que um adulto tenha baixa auto-estima, o que se pode dizer quando tratamos de crianças?

“L”, de Thais Fujinaga, tem um clima tenso trazido pela personagem principal, Teté, uma garotinha de 11 anos, que tenta se afastar das pessoas, como se essa fosse uma forma de evitar o sofrimento, mas em nenhum momento mostra ser feliz com isso, até que conhece um garotinho que não a deixa em paz e eles acabam se tornando amigos.

É uma obra bonita: ao mesmo tempo em que deixa aflito o público por certo desequilíbrio de Teté, mostra também que a amizade, ou o que Michel Maffesoli chama de “prazer de estar junto”, pode ser importante para superar os percalços da vida, por ser essencial para nós humanos termos com quem dividir nossos problemas, alegrias, sabendo que a pessoa ao lado irá nos compreender.

Muitas vezes os pais se preocupam se o filho está apanhando na escola e não levam em conta os apelidinhos, a exclusão dos colegas, entre outros fatores que podem vir a ser predominantes para definir o que a criança irá se transformar quando adulto. Além de bem feito tecnicamente, “L” consegue passar para o público muito bem a essência do “bullying”. (Henrique Gois de Melo)

“L” está na Mostra Brasil 3.

O campo da imaginação, sem medo

“Fábula das 3 Avós” explora, basicamente, o mundo da imaginação. Uma menina de 10 anos acaba de perder sua avó e recebe a visita de um “fado”, que pretende levá-la a uma visita pelo norte, pelo sul e pelo oeste, fazendo com que a menina conheça suas 3 avós imaginárias. Começando pelo elenco, a menina e o fado estão muito bem no filme. O texto parece se encaixar na boca dos atores e a química entre eles é única.

Outro ponto marcante é a exploração desse campo imaginário. A partir do momento em que o filme assume esse lado fantástico, ele vai até o fim, não retornando ao real, apenas mesclando cenários e figurinos reais e não reais. A direção de arte e a fotografia constroem esse ambiente colorido e instigante da imaginação da menina, que sofre com a aparição e o desaparecimento repentino do “fado”, agora denominado Ora Ora Ora.

A narrativa, incluída em uma trilha sonora simplista e também minimalista, segue uma linha linear com a menina conhecendo as estranhas avós. Acredito que o grande mérito do filme é explorar esse lado não-real em um curta-metragem, e principalmente não deixar a narrativa “em cima do muro”, quando a história não caminha nem cá, nem lá e se recusa a tomar um partido.

Feito para todas as idades, o filme, sem rodeios, nos leva a uma viagem extraordinária dentro da cabeça de uma jovem, com muitos sonhos e muitos medos. Palmas para o cinema do não-real. (Renan Lima)

“Fábula das 3 Avós” está no Panorama Paulista 3.

Sonhos de liberdade

A primeira coisa a levar-se em conta sobre “Aguasala”, dirigido por Cristiane Arenas, é a circunstância como ele foi captado. Filmado dentro da Fundação Casa em cinco dias, com tensão crescente e irritabilidade das internas conforme os dias passavam e sua rotina era modificada pela equipe de filmagem. Como disse a diretora na conversa após a exibição, “fomos expelidos de lá”. Isso com certeza contribuiu para alguns desacertos, mas as qualidades narrativas sobressaem.

O filme conta a história de Ana, menor presa que descobre sua gravidez dentro da instituição. Os planos de corredores, salas de aula e grades salientam a semelhança do local com o ambiente encontrado em escolas públicas (os uniformes das meninas também). Essa semelhança possibilita um trabalho com essa ambiguidade e gradativamente descobrimos onde ela realmente está. A presença constante do namorado também embaralha as coisas.

Nessa perspectiva, a cena mais problemática é a da discussão entre Ana e o rapaz. A ação entrecortada de planos diferentes com cortes secos, mantendo a linearidade, parece solução para problemas do material (talvez de atuação, interferência externa ou captação), tirando a força de um momento central. Infelizmente, pois justamente a edição sobressai-se no restante do curta, seja a cena inicial na qual o tempo e nitidez são alterados ou no corte para a cena idílica final que, junto com a música da banda colombiana Bomba Estéreo, produz um belo efeito e desfecho.

Um filme com arestas, mas que possui qualidades suficientes para causar empatia e interesse pela história e seus personagens. (Carlos Alberto Farias)

“Aguasala” está no Panorama  Paulista 2.

 

Sutileza narrativa do cotidiano

Um retrato do cotidiano e da espera: esse seria um ótimo resumo para “Carol”, de Francisco Guarnieri. O filme, baseado em personagens reais, conta a história de Lucas, um menino de 13 anos que aguarda a chegada de Carol, sua irmã mais velha. A narrativa, completamente minimalista, mostra a espera de Lucas, enquanto seu pai dorme até tarde. Ele se ocupa de atividades comuns a uma criança de sua idade: joga videogame, atende o telefone e anota recados, vai ao supermercado e compra mantimentos para casa. Sozinho, ele se ocupa enquanto espera a chegada da irmã.

O filme é econômico no número de planos e torna a espera ainda mais longa. A se destacar, o plano fixo sem correção, em que Lucas joga tênis no videogame. Sua movimentação dentro do quadro é muito semelhante ao do próprio jogador de tênis e por isso, muitas vezes, ele fica fora de quadro, por manter a liberdade do jogo. Além disso, a relação que se estabelece entre Lucas e seu pai durante a espera por Carol é muito rica; eles se mostram muito próximos e também demonstram enorme carinho pela irmã/filha, mencionada e lembrada o tempo todo. O filme tem esse poder de estender o tempo e deixar o espectador ansioso pela chegada da menina. E quando ela finalmente chega, o filme termina, ou seja, o fim da espera é também o fim da narrativa. Nada mais precisa ser dito. (Renan Lima)

“Carol” está no Panorama Paulista 3.