Memória dela, memória nossa

memoria da memoria

Assisti a esse filme e pensei (não sem uma dose de delírio, afinal, estamos falando de “desbunde”): “Está aí um caminho de encontro entre os realizadores caseiros com as possibilidades de expressão estética!”. Paula Gaitán fez, ao mesmo tempo, muito e nada além do que qualquer realizador diletante faria: reuniu as pessoas próximas dela para mostrar o que havia gravado e guardado sem rebuscamentos plásticos evidentes, contando apenas com as características físicas do suporte.

Falando como nós, os hoje como nunca, capazes materialmente de registrar tudo ao nosso redor, em certa medida ela nos supera: pelo dispositivo adotado nesse “egodocumentário”, ela mescla os interesses íntimos (muito próximos aos que nos movemos a reencontrar quando revemos os registros audiovisuais antigos de aniversários ou férias em casa) oferecendo e também construindo um prolongamento de tempos e espaços entre seus interlocutores no mundo diegético e os espectadores atrás da tela.

Seja pelas contextualizações pontuais do passado histórico, seja por comentários sobre o que envolveu os momentos de captação de imagens específicas, ela coloca o público como parte daquela apreciação familiar dos registros esparsos, nos torna unidos com as pessoas que em certo momento descobrimos serem seus filhos, uma vez que como eles parecem demonstrar, também vemos aquele material pela primeira vez, e somamos a curiosidade meramente voyeurista (inerente do cinema, mas em certa medida só possível com uma sensação de viver certo pacto implícito próprio da intimidade) ao interesse cinéfilo, de procurar por expressividades amplas, que possam estar nas imagens e sensações resultantes de sensibilidades incomuns, com algo de extraordinário, no sentido etimológico do termo: para além dos indicadores das trivialidades cotidianas, mesmo lidando com elas.

O caminho que apontei no início do texto: tanto se fala na contemporaneidade como período histórico em que as fronteiras entre imagem pública e imagem privada, se confundem, se borram ou são literalmente derrubadas, talvez o curta aponte o lado mais positivo de um cenário correntemente tratado como apocalíptico: a chance de executar uma construção de memória que é igual e sinceramente espontânea e construída, acidental e intencional, intuitiva e consciente.

Honestidades e liberdades factuais e criativas. Alternativa possível aos aficionados por gravar algo que ultrapasse os acidentes cômicos e/ou emulações televisas vistas no YouTube, se for repetida e gradualmente “distorcida”, reinterpretada, aos sabores artísticos e possibilidades técnicas de cada realizador, por ser livre sem ser negligente, deixar à mostra o que da mesma forma também podemos abraçar e abarcar: as músicas que ouvimos, os espaços que conquistamos, as pessoas às quais nos afeiçoamos.

Rafael Marcelino

A Memória da Memória está na mostra Cinema do Desbunde 2

Quero frátria

exposed

“O maior golpe do mundo/Que eu tive na minha vida/foi quando com nove anos/Perdi minha mãe querida (…)”.

Assim começa a canção que abre o plano sonoro desse curta em Super-8, rodado Na Bahia de 1978. É o início de uma jornada anarco-edipiana. Acerca da mãe, temos uma foto, que pode muito bem ser a tumular. A letra da canção, segue, falando da morte dessa mãe, queimada no fogo. O filme mostra indícios de seu poder dessas chamas, crepitando sobre madeira.

Mais do Campo Sonoro: agora, uma oração desesperada, em inglês, falando em Deus e Pai. Na imagem: uma figura masculina (provável cônjuge da mulher-mãe do início) também é visto por foto dotada de uma “emanação” algo lúgubre. Um Menino, sentado em cima da capota do carro dirigido por um homem adulto. De dentro do veículo, “substituímos” o motorista, por meio da câmera subjetiva, o menino escreve em uma folha de papel, que ergue, para vermos uma frase ente ele e o vidro dianteiro do automóvel: “Não Corra Papai”. Paternidade, morte, real ou imaginada em pesadelo, traumática em qualquer dos casos, de uma forma de encenação que talvez evoque, no espectador jovem, vaga lembrança dos filmes asiáticos de horror.

Trilhos de linha férrea. Aparente movimento de entrada em túnel ou estação. Túneis e entradas que me lembraram de uma aproximação simbólica freudiana com o ato da penetração, linha de raciocínio exótica, mas não descartável. Já explorada pelo Rogério Sganzerla crítico, nos carros desbravadores em Os Cafajestes de Ruy Guerra. Algo a se considerar pelo mostrado ao longo do exposto por Navarro.

Voltamos ao Deus-Pai, por meio de canção, que acompanha entre outras imagens, a cópula entre dois cães, e o fogo que queimou a mãe simbólica no início retorna. “Esse mundo é de Deus/Esse mundo é grandão pra caralho”. Deus e mundo terminam no dado fálico, mesmo que a pichação no muro que inicia a sequência seguinte diga que a divindade condena a prostituição.

Órgão, dessa vez o musical, eclesiástico, sacro, na trilha sonora. Militares descendo dos seus veículos de transporte, prontos pra uma ação de ataque, presumindo defesa da pátria, do estado-nação paternal, que acolhe apenas enquanto não pune, não castra. Navarro, como Caetano Veloso na letra de Língua, não quer pátria, quer mátria, quer frátia.

Canhões fálicos e patriarcais antecedem pais da pátria, sejam eles militares ou os antigos monarcas, tornados mitos, Deuses. Ao lado de Cristo e apertos de mãos políticos, nesse panteão há um mito anárquico, como contraponto desestabilizador, que vem do cinema, como redenção: Chaplin.

De novo a mãe Morta. O filho-Édipo estimulado quer expor seu desejo para as mulheres que aparecem. Mas a verdadeira masturbação mental está em regozijar-se das especificações técnicas de um canhão. Expostos os complexos. Ao contrário do esperado, Libertar é Emascular.

Rafael Marcelino

Exposed está na mostra Cinema do Desbunde 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Antropofagia, tecnofagia, autofagia. Bulimia.

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Mas não está claro que o problema está na terra? Essa aí com a letra minúscula que a gente pisa em cima e às vezes esfarela ou afunda, mas que começou a crescer e a engolir o Sol: febre do cimento, aço fálico.

Mudo. No quarto, um cigarro e o amanhecer: Não estamos sonhando. Ligou o gravador: o som das novas construções invade o filme, a febre é barulhenta, pede, além das palavras de um discurso de resignação, ação.

Vandalismo. São as pessoas que sempre estiveram ali com seu som e seus corpos reboliços que invadem a tela em Lagoa Remix. Parte da sessão Tomada Única, o filme superoitista traz a dança e as brincadeiras de quem frequenta a lagoa, a qual será também alvo futuro de reapropriação. Em volta da lagoa, carros de som com volume muito alto compõem a trilha do filme; o cenário, talvez pela proximidade das sessões, lembrou o de Céu sobre a água de Agrippino, revestindo-o da contemporaneidade da dança do bumbum, do período tão atual de manifestações e “datenismos” e explicitando o comum que se tornou a mediação. “Esse prefeito não presta, é eu que tô falando”, diz a moça pra câmera.

É eu que tô falando. “Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça o seu! arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível”. Torquato Neto em 1971 bradava pelo que hoje é quase hábito, senão demanda. O olhar sobre o contemporâneo e sobre o referencial ao qual pertence o artista, fez a produção superoitista na década de 70 resistir ao que pregava instituições e a cultura oficial, enfatizando a experiência pessoal como espaço de crítica política, econômica, etc. É a partir de seu próprio chão que o funcionamento do espaço é reavaliado (maldito foi o dia em que Adão resolveu fazer um testamento), quase um happening na vizinhança, o registro de um ato performático que rompe com o comportamento socialmente aceito. Dentro dessa política, o corpo ganha espaço no filme Super-8, e é por aí que caminha a dança do bumbum de Lagoa remix ou a masturbação e transa em espaços públicos de Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu.

Risse de tanto cu. Com certeza, de todos os filmes, Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu foi o que mais risadas trouxe à sala de exibição. Não foi só pela atitude a la Jackass com suas máscaras e bichinhos masturbatórios que as bocas se encheram de risos, algo ali incomodou e, se incomodou, deve ser bom, deboche é isso (também). Três rapazes espalhando amor pela cidade onde uma nova Dubai vai crescer monumental acabam por se jogar nos campos cercados nas proximidades do “haver avencas” relembrando os planos finais de Toques.

Monumental. O desmaio diante do monumental falo de cimento, depois da trajetória que percorre estátuas e outras construções “postais” (em forma de poste) é sedução que mata em Falos e Badalos. Mata sim e pra não morrer é preciso merda. Como disse o professor Rubens Machado após a exibição: “O 35mm dedica-se a construir monumentos; o 16mm a questioná-los; o Super-8 vem jogar merda nos monumentos”. Merda em forma de efeito visual, em trepidação, a bitola não é Super-8, mas se faz necessário a ação, a ação imaginária ou o terrorismo imagético. Buscando construir “o mundo que queremos”, Não estamos sonhando joga bombas nos prédios ao redor, destrói a imagem deles.

Terrorismo, aí vêm as câmeras de segurança, de vigilância, uma violência contra os corpos em planos contra plongée. Mas a suspeita de bomba é outra, é a que está na caixa de Marcelo Pedroso em Câmara Escura e que entra pela porta ou pela caixa de correio em uma propriedade privada, que filma e é logo julgada e condenada, uma arma, claro, a caixa preta de Vilém Flusser é logo tratada como criminosa, então é hora de fazer o filme.

Filmes bulímicos. Sem generalizações didáticas, vão pras telas. Nem sempre muitas telas, infelizmente. A produção superoitista de 70 já não tinha o público como grande preocupação, sendo assistido por quase ninguém em sua própria época. Espero que festivais como o Curta Oito, Kinoforum, youtube, vimeo e outros canais possam fazer essa interface. O desbunde aparenta muitas vezes como atitude vazia ou apenas risível, mas febres precisam baixar antes do colapso, não se vomita ar.

Carol Neumann

Não Estamos Sonhando e Câmara escura estão na Mostra Brasil. Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes

Lagoa Remix, Amor e outras construções e Falos e Badalos estão na mostra Tomada Única. Clique aqui e conheça o projeto

Raros sonhos flutuantes

memoria da memoria

Na sessão do Cinema de Desbunde 2, em meio a vídeos contestadores e cheios de ferocidade, “Memória da Memória” de Paula Gaitán acaba roubando a cena, não apenas por ser um trabalho recente, mas por ser extremamente pessoal.

O curta é uma colagem – tanto de imagens quanto de materiais, que vão do Super-8 ao digital – feita a partir do acervo da própria diretora, que possui um vasto material coletado desde a juventude. Aqui, as ingênuas filmagens em Super-8 vão além do caráter experimental visto nas outras obras exibidas na mesma sessão. Elas resgatam também a aura dos vídeos caseiros da época, outro fator intrínseco a esse formato.

A jovem Paula explora, experimenta, observa e articula não apenas o mundo que a cerca, mas seus próprios movimentos. Aqui, como explica a cineasta, a câmera é uma extensão do corpo e o processo, portanto, é muito mais visceral e intuitivo do que racional. Eventos familiares, lugares e até mesmo o próprio corpo são registrados com olhar de um curioso estrangeiro que não consegue esconder o seu fascínio por cada detalhe daquele universo tão novo.

Em alguns momentos, a delicadeza e espontaneidade das imagens nos remete ao cinema de Naomi Kawase, que mesmo documental consegue ser onírico. A escolha da trilha sonora é impecável e atinge o seu auge ao colocar um clássico esquecido da banda Sonic Youth para acompanhar esse desfile de lembranças. Por vezes, a música dá lugar a comentários dos amigos de Gaitán que, de forma descontraída, aumentam ainda mais a sensação de intimidade que se estabelece entre público e obra.

Paula confessa que fez o filme com o único objetivo de se divertir, uma espécie de terapia para se libertar das pressões que seus projetos atuais estavam lhe causando e fazer esse cinema mais natural, mais inerente, que o cineasta faz o tempo todo. “Nós estamos sempre registrando”, diz a diretora. Esse frescor no modo de se fazer cinema acaba sendo terapêutico também para o espectador, que embarca na narrativa difusa e sentimental para no fim da jornada encontrar reflexões muito acuradas. Nas memórias de Paula existem lugares comuns à memória de cada um de nós, que, cúmplices passivos, passamos a completar as lacunas com nossas próprias lembranças. A memória da memória.

Assistir ao curta de Gaitán é como revisitar um sonho belo que você não lembrava de ter tido. É ao mesmo tempo surpreendente e familiar, como a relação que aquela adolescente tinha com sua câmera Super-8. O filme se encerra com a imagem de Paula atualmente, na sua plácida maturidade, observando o horizonte, como que estabelecendo um diálogo com a jovem Paula, do outro lado, mas ainda parte dela. E naquele frame reside a sensação de que as duas finalizam um projeto secreto, mesmo que inconsciente, que se iniciou tempos atrás e se concluiu no momento perfeito.

Henrique Rodrigues Marques

Memória da Memória está na Mostra Cinema do Desbunde 2. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

O que fazer com essa tal liberdade?

o sangue de jesus tem dende

Dentre as sessões especiais do 24º Festival Internacional de Curtas, a Tomada Única foi provavelmente a que mais instigou o público, lotando a sala de exibição do MIS no último sábado à noite. Feita em parceria com o Festival Curta 8 de Curitiba, ela se constituiu da seguinte forma: oito artistas, cineastas e artistas plásticos, receberam o convite para filmar um curta de três minutos cada um em formato Super-8. Mas se a liberdade artística foi total, os participantes encontraram a limitação de não editar o vídeo em pós-produção. Ou seja, os cortes precisavam ser feitos na própria câmera e não existia a possibilidade de voltar um plano. Se a descrição do exercício parece complicada, os variados resultados obtidos pelo grupo fazem parecer um passeio no parque. Ou melhor, parque não. Num jardim das delícias de dar inveja a Bosch.

Iniciamos a deliciosa jornada com Lagoa Remix, um bem-humorado manifesto dirigido por Leonardo Mouramateus. O vídeo mistura imagens de banhistas que dançam, brincam e fazem graça para a câmera numa lagoa ocupada em Fortaleza, enquanto o áudio, no melhor estilo “carro da pamonha”, nos presenteia com um ácido remix, indo do funk ao eletrônico, mas sem antes esquecer de passar pelo apresentador Datena que indaga “Isso é manifestante? Isso ai é vandalismo”.

A crítica política e a ocupação do espaço urbano também foram temas de Amor e Outras Construções ou Uma Boca/Que Abarcasse/Tanto Cu, de Gustavo Vinagre, no qual três homens invadem prédios em construção para fazer sexo. Com ares de pornô terrorista e uma divertida direção de arte (blusão com estampa de personagens Disney, máscaras de morte), a obra protesta contra a construção desses projetos arquitetônicos comerciais e as consequências que causam no espaço urbano.

A cidade e o sexo também se encontram em Falos e Badalos, de Anita Rocha da Silveira, que registra a cômica fixação de uma garota pelos monumentos fálicos da cidade do Rio de Janeiro. O Sangue de Jesus tem Dendê, de Daniel Lisboa, brinca com a iconoclastia de símbolos religiosos, mas com muita elegância e sublime beleza. A serena movimentação, tanto da câmera quanto dos personagens, causam um efeito hipnotizante no espectador, uma curiosa sensação de paz.

Paz que Karen Black busca em seu Delete Deleite. Cansada dos excessos tecnológicos do cotidiano, a artista se revolta e troca seu pequeno quadrado de concreto por uma praia paradisíaca, onde finalmente encontra sua vingança num catártico ritual, onde a agressividade dos gestos contrastam com a leveza de sua nudez. Nesse reencontro com raízes primitivas, surge a liberdade.

E é essa a questão que cria um ponto de intersecção entre os oito curtas: o que fazemos da nossa liberdade? Como ressalta a diretora do festival, Zita Carvalhosa, a escolha pelo formato Super-8 transcende a simples nostalgia e o inegável charme estético: “nos anos 70 o Super-8 representava a liberdade de ter uma câmera na mão e fazer o que você quisesse. Hoje em dia todo mundo tem um celular para a fazer o que quiser”. E no atual contexto político do país, após a onda de manifestações que ocorreu neste ano, essa reflexão se torna ainda mais necessária, tanto em relação à utilização desses aparelhos eletrônicos quanto nas maneiras de se exercer o próprio ato de protesto.

Um momento de Lagoa Remix resume o que o projeto apresenta de melhor. “Essa prefeita não presta, eu que tô falando” diz a voz em off que, momentos depois, volta para declarar “esse mergulho é pra você, prefeita!”. Esses oito artistas, a exemplo da personagem citada, mergulham, festejam e brincam pra demonstrar o seu descontentamento. É crítico e reflexivo, mas também é bem humorado e prazeroso, sem nunca perder a fé no poder poético e provocador da imagem. O que acontece na tela é assim… um desbunde!

Henrique Rodrigues Marques

Um desbunde tátil

céu sobre a água

Havendo um feixe de luz, a câmera aceita de tudo – a liberdade do equipamento cinematográfico, com a vinda das câmeras Super-8, portáteis, uniu-se também a uma liberdade do olhar e da moral (o “tudo”) do que se registrava na película. A partir de sua inserção na mão do estudante, do amador ou do cineasta, trouxe consigo imagens que antes não eram vistas, nem registradas, abrindo a porta para novos discursos, criando uma utopia de liberdade de expressão diferente do contexto ao qual surgiu no Brasil.

A “limitação” técnica do formato (1/4 da ‘qualidade’ de um filme 32mm), veio a fazer com que o gosto pelo Super-8, hoje em dia, tenha ficado restrita ao aficionado ou ao historiador, levando-nos a esquecer o íntimo acesso que o equipamento trazia ao registro do corpo, da paisagem, da mescla entre aquela coisa qualquer e aquela outra que talvez estivesse ali perto, e que, no filme Super-8, se conectavam como se fossem o mesmo: a buceta e o céu como em Céu sobre Água ou Hendrix e Van Gogh em Jimi Gogh. A Mostra Cinema do Desbunde 1 me fez notar essas delicadezas do aparato, que, como uma luva, couberam na indistinção lisérgica da cultura dos anos 70.

A curadoria da Mostra conseguiu reunir em apenas cinco filmes de Super-8, de cineastas de extensa obra, um atestado vigoroso da versatilidade inconsequente do formato, com suas utopias recriadas e suas associações histriônicas. O Duelo, de Daniel Santiago, foi a única exceção na questão de unificação, pois divorciava o cineasta superoitista daquele do 16mm, já afirmando seu humor e descontração como sua política. Toques, de Jomard Muniz de Brito, mitifica o corpo jovem e belo, cuja inocência convive com o ménage, corpo que fala e estremece, quase virando um videoclipe precoce da música Pelos Olhos, de Caetano Veloso.

Curiosamente, Jimi Gogh também veio a se assemelhar, para mim, a um proto videoclipe – embora isso reduza sua experimentação, traz em mente o lado pop tropicalista do qual os superoitistas pareciam se filiar, adotando aqui uma estética de colagem iconoclasta que sabia apreciar as pérolas de Jimi Hendrix, associando sua guitarra histérica às imagens psicossomáticas de Van Gogh. Tudo podia virar tema, virar um ensaio no Super-8. O ridículo faz parte, claro, e torna muito mais coletiva a experiência na tela.

Agora, os curtas que mais me forneceram uma experiência, visual e corpórea, borrando as barreiras, foram Gato/Capoeira e Céu sobre água. Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, nos apresenta um corpo, o do Capoeira baiano, e sua harmonia com aquele espaço: descendo as íngremes ladeiras da cidade, o corpo do Capoeira já dança. Não se trata de um olhar distanciado, analítico, e sim um olhar empírico, compactuante, que entra na capoeira e não se limita a seguir seu “protagonista” se há algo interessante acontecendo numa janela próxima. Das anotações mentais, poucas sobraram, além da sensação de “Nossa, desvia!” durante a filmagem da luta de capoeira – há uma adrenalina que caminha junto ao Super-8, trazendo outra camada ao seu registro. Ou refazemos os passos do cinegrafista e algumas de suas associações momentâneas ou ficamos livres a divagar sobre a divagação que se transcorre na tela, passando a escutar-se os sons que não estão lá (o filme é mudo).

Durante a conversa com os curadores após a sessão, levantou-se a questão de uma tentativa de narrativização do filme de Super-8, seja por parte do cineasta-montador ou do público acostumado a enxergar por histórias, e, em Céu sobre água (de José Agripino de Paula), que poderia ser tomado como um mero registro de uma tarde, isso me ocorreu – há um intenso simbolismo em seu registro. Não se tratava de uma tarde qualquer, mas sim de ensaios circulares sobre água, céu, mãe, filha, corpo e os movimentos e reflexos de todos esses fatores, sob uma trilha eventual que convidava à meditação, sobre a purificação do corpo mãe-filha por um céu-mar, ou do mar-mãe pelo céu-filha – lisergia tátil. Há uma dificuldade em se categorizar esses filmes.

A narrativização me veio por uma associação distante, ou nem tanto – o filme Window Water Baby Moving, de Stan Brakhage, no qual, em 16mm ele filmou o parto natural de sua filha, na banheira de sua casa. A intimidade e o olhar curioso e desregrado das câmeras me fizeram ver os dois filmes como irmãos, sequências: Brakhage como a violência natural, e afetiva, do parto e Céu sobre água a lembrança do elo amniótico da maternidade, evocado pela câmera; um filme se destaca pelo vermelho, o outro pelo azul.

A comparação não vêm em vão: para mim, o Super-8 brasileiro, esquecido e escondido, merece um olhar tão afinado e radical quanto àquele dedicado à filmes conceituados como os de Brakhage (que também foi um forte nome no Super-8). Há muito a se escrever a respeito desses filmes e, principalmente, há muito o que se ver.

Rodrigo Faustini

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Alumbramento em Super-8

gato capoeira

Transgressão, liberdade, voz, expressão, calor, erotismo, crítica, contracultura, tesão. É por este caminho que vai a intrigante seleção Cinema do Desbunde, com curadoria de Marcelo Caetano e Hilton Lacerda.

A programação faz uma retrospectiva de filmes rodados em Super-8 especialmente na década de 1970, período de rica produção nesta bitola no Brasil. Entre os selecionados, os maravilhosos Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, e Céu sobre água, de José Agripino de Paula, representativos de um movimento, ou melhor, de uma geração baiana. Filmes produzidos em um contexto ditatorial e que representam, cada um à sua maneira, um retorno ao domínio dos corpos, que dançam um baile de liberdade de expressão, seja no ar ou na água. Corpos estes que representam tantos corpos reprimidos e escondidos, violentados física e moralmente por um regime de exceção.

Em Gato/Capoeira, a figura do homem negro, em uma das mais conhecida formas de expressão de uma cultura em combate. Em Céu sobre água, a força da mulher, do poder da criação. Em ambos, a beleza dos músculos, das curvas, da gestação, da infância, tudo em uma relação orgânica com a natureza e eternizado na granulação superoitista.

Ao mesmo tempo, a programação da Tomada Única (a partir da proposta do Festival Internacional de Cinema Super8 de Curitiba) oferece aos realizadores contemporâneos a oportunidade de produzir estes outros desbundes, de olhar o passado – com um pouco de nostalgia sim, e porque não? –, mas com um caráter de transformação, a fim de refletir um outro contexto com o frescor dos novos olhares. O resultado são imagens de crítica social e política, que abordam a nossa relação com a tecnologia, a especulação imobiliária, a religiosidade e a sua resinificação e, claro, com o corpo. A proposta é um belo convite ao desbunde, para além dos limites da programação do Festival Kinoforum.

Camila Fink

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