A Musa de Mil Faces sobre Gilda Nomacce

por Almeida Hildebrandt

 

Abordando as mais diferentes e absurdas histórias, de diversos diretores nos últimos anos, a mostra Gilda Nomacce (nomeada a partir da atriz homenageada) foi uma aventura por dentro da carreira e das habilidades da atriz. Atravessando diversos gêneros e gostos, em todas as obras Gilda revela seu dom e carisma apropriando de suas personagens e trazendo um toque humano em todos eles.

No primeiro curta Jiboia, sua atuação é o único ponto de destaque da produção. Sem muito esforço, apenas com sutis rostos e expressões, Nomacce leva ao espectador os sentimentos e conflitos da principal. Absorvendo as dores e os problemas desta personagem, a atriz consegue com maestria se transpor ao perigoso e complicado mundo dos ciúmes e da vaidade. Um monstro, uma maníaca, um ser humano, uma personagem trágica. Mesmo sendo um ser desprezível, sua atuação é tão real e convincente que nos deparamos com uma pessoa conflituosa, com dificuldades e precisando de ajuda.

O poder de Gilda de se afundar na personagem também é demonstrado em seu outro extremo de sua atuação. Atuando como Sérgio Silva em Minha Única Terra é a Lua, a atriz mostra como ela absorve as características do seu papel. Eu não era familiarizado com Sérgio Silva e muito menos com sua obra, entretanto Gilda soube tão bem agir como ele, ser e respirar como ele, que quando Sérgio aparece pela primeira vez não tive dúvida que eram a mesma pessoa.

Uma atriz com o talento de Gilda é algo atraente, não é sem motivo que a mesma foi descrita como uma musa para uma geração de cineastas. Seus dons e habilidades fazem com que o diretor reze para trabalhar com ela, seu domínio, esforço e técnica são tantos que nós nos apegamos e somos puxados até ela. Uma figura inspiradora, tanto para trabalhos feitos pensando nela como também inspiração para produzir curtas, filmes e críticas.

 

Filmes da sessão

Jiboia, dirigido por Rafael Lessa

Nua por Dentro do Couro, dirigido por Lucas Sá

Minha Única Terra é a Lua, dirigido por Sérgio Silva

This is not Dancing Days, dirigido por Julia Khatarine

Romance, dirigido por Karine Telles

Uma comédia de personagem sobre Martingale, dirigido por Marthe Verdet

por André Quental Sanchez

 

O maior destaque do curta Martingale é a simplicidade com a qual a comédia é construída em torno de sua protagonista. O filme conta a história de Océane, uma mulher
responsável por limpar a piscina de uma mansão. Após um tempo ela percebe que o reflexo da piscina atrai homens que participam em uma competição de parapente, assim, começa a usar isto para encontrar seu par ideal.

A diretora Marthe Verdet retrata com cuidado sua personagem principal, demonstra suas falhas, ambições e desejos de um modo rápido e didático, seja retratando-a empurrando
uma bicicleta e quebrando sem querer ordens dos proprietários, ou quando recebe a foto de um pênis e faz uma cara de desprezo do mesmo modo que parte da plateia, este espelho criado entre a audiência e sua protagonista é a cereja do bolo da produção e permite um olhar empático do espectador.

Christine Gautier vai do sutil ao caótico em sua atuação, representando o clássico personagem cômico que deve agir de modo inusitado à situações exageradas e absurdas,
assim, por conta da comédia surgir na quebra de expectativas ou no cumprimento das mesmas, o curta nos faz rir por conta da imprevisibilidade de Océane que consegue nos trazer surpresas, algo presente inclusive em todo o curta.

Um exemplo desta surpresa ocorre com um needle drop de um cover da música “It’s raining men”, entramos na mente de Oceáne e assistimos uma espécie de videoclipe com
diversos homens brincando e saindo da piscina sorrindo para a protagonista do mesmo modo que para a audiência, nos levando ao riso.

Em sua essência a comédia satiriza uma sociedade e seus costumes focando em uma situação ou em um personagem, no caso de Martingale, a comicidade se resume em Oceáne e suas ações questionáveis para alcançar algo natural: amar e ser amada de volta. Podemos concordar ou não com seus atos, mas, o mais importante é passar empatia e isso ocorre com
facilidade.

 

Transparecer Não é Sobre Tentar Ser Claro a Todo Tempo sobre Mãri Hi – A Árvore do Sonho, dirigido por Morzaniel Ɨramari

por Guto Escobar

 

A sala de cinema estava vazia. De 120 lugares possíveis, deviam ter uns 20 espaçadamente ocupados. A sessão era gratuita. “Mãri Hi” ou “A Árvore dos Sonhos” faz um gesto de abertura e vulnerabilidade muito corajoso, ao se propor a mostrar e contar sobre os pensamentos mais importantes da cosmologia Yanomami para nós, os Brancos, que roubamos e destruímos tanto e não devolvemos nada. Mesmo assim, o filme respeita a inteligência e o coração do público à que se dirige e conta sobre os sonhos e os relacionamentos ritualísticos com a natureza, os Xapiri pë, e entre eles, sobre as conexões possíveis de se fazer ao se abrir para o mundo e se deixar levar por sensações.

Diferente de uma documentação dos rituais e uma narração explicativa, o filme tenta revelar a sensibilidade de tudo aquilo. Ao filmar sem tentar explicar tanto, confiando na nossa experiência de relação com o próprio filme, O narrador começa a descrever sobre a prática de sonhar e as diferentes maneiras e sensibilidades de alcançar esse estado, sobrepondo as imagens captadas e as músicas de uma festa que acontece dentro de suas casas. Assim como a variabilidade da narração, vemos na festa as diferentes maneiras de se participar dela, desde mais distante, até cantando e dançando junto. É incrível como em meio a tanto que lhes foi tirado por nós, o gesto de se abrir venha de maneira tão respeitosa, sem afronta, tentando transparecer, mas não de maneira transparente para tentar ser o mais detalhado e explicativo, e sim em uma linguagem bem mais comum ao falar sobre o que é sonhar, deixando espaços para a interpretação do que aquilo possa significar para cada um, uma opacidade de possibilidades para adentrar e descobrir, mas principalmente sentir. 

E para os que acham chato que no fim de todos estes curtas, seja necessário colocar sempre a mesma mensagem, sobre quem eles são e o que estão passando, que precisam de ajuda, eu tenho certeza que eles também acham isso bem chato, e talvez essa mensagem seja para você.

 

A Coragem de Questionar uma Relação Já Afirmada sobre Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando, dirigido por Edmar Tokorino Yanomami, Roseane Yariana Yanomami e Aida Harika Yanomami

por Guto Escobar

 

Em uma sala que tinha 20 pessoas, agora chegando no fim da sessão de curtas, ficam 18. Não sei o motivo das duas pessoas terem saído da sessão, talvez elas precisassem. Depois de dois filmes sobre práticas e relações Yanomami, que tinham um aspecto um pouco mais “expositivo”, apesar de ainda sensorial e subjetivo, “Thuë Pihi Kuuwi” ou “Uma Mulher Pensando” muda tudo. Em uma confiança extrema de que nós vamos entender, o filme dá mais um passo adentro, dessa vez deixando a explicação de lado, entendendo que nós já sabemos do que se trata, e apenas nos colocando em um fluxo de pensamento e de questionamento sobre o funcionamento da vida. Quando a mulher fala sobre o preparo da yãkoana, um pó ritualístico, enquanto vemos o xamã à preparando, fica claro que a relação que cada um tem com ela é bem diferente. Nesse caso eu nem falo sobre os efeitos, pois como vemos no filme, apenas os xamãs podem usar a yãkoana, mas digo num sentido de entender sua força e sua espiritualidade e efetividade em fazer o que dizem que ela faz. 

Mesmo ao apresentar para o nosso mundo a sua cosmologia e a sua vida, esse filme faz o esforço de ainda questionar suas próprias intuições sobre o seu mundo, trazendo sob outra forma essa relação mais sensível e menos exata de entender as coisas. Posso estar errado, mas esse parece mais um filme feio para eles do que para nós. Mas mesmo assim ele nos serve. Digo isso, pois esse filme me parece mais pessoal, buscando um diálogo com pessoas mais próximas. Mas pensando melhor, “Uma Mulher Pensando” é uma mulher pensando, e eles já sabem disso, eles falam sobre isso todos os dias. Nós é que, inexplicavelmente, ainda não sabemos.

Acho importante pontuar que após todos os filmes Yanomami da sessão terem sido passados, foi colocado um vídeo de agradecimento dos diretores, falando em português, agradecendo a nossa presença e querendo (não esperando) que tenhamos gostado dos filmes.

 

A estética como forma de renovação sobre Último Domingo, dirigido por Renan Barbosa Brandão e Joana Claude

por André Quental Sanchez

 

“Último Domingo” faz uma releitura do episódio bíblico da gravidez de Maria por meio de uma inovação estética e um retrato único da história bíblica, trazendo um ode à personalidades e comunidade negra, fazendo relações com o Candomblé e nos aproximando da história por causa de nossa ancestralidade africana, ganhando um destaque entre outras produções que abordaram esta mesma história.

 O curta de Renan Barbosa e Joana Claude tem como foco Maria (Jéssica Ellen) e seu destino após a gravidez. Considerando que a maioria do público já conhece a história, os diretores alteram o cenário desta história e fazem uma releitura por meio de personagens únicos como o anjo, um novo cenário que é o sertão nordestino, uma estética em preto e branco que auxilia na construção de uma atmosfera realista e mística do curta, tendo elementos inclusive do realismo fantástico como a terra brilhando.

 A maior ressignificação do projeto é o espelho entre o episódio bíblico e a cultura negra, enfatizado com a música “Filhas de Iemanjá”, aproximando o público brasileiro da produção por conta de nossas raízes africanas. Não enxergamos Maria e José como miseráveis no oriente distante, mas, enxergamos Maria e José como miseráveis em um contexto que nos é familiar, o sertão nordestino, e que nos faz refletir sobre a nossa própria identidade como povo brasileiro, refletindo inclusive sobre o destino de seus personagens após o curta terminar.

Quando se adapta um episódio consagrado, deve-se ter cuidado com a retratação, ao mesmo tempo que não pode destoar muito do material original, a produção deve encontrar um modo inusitado de retratar a história para se destacar entre outras produções do mesmo tema, seja a mudança de um ponto de vista como na minissérie “Capitu” transmitida pela Rede Globo ou, como exemplificado no curta, fazendo uma renovação de uma história secular, mantendo a base e ao mesmo tempo buscando uma visão original para este retrato.

 

Gestos de guardar o sol sobre Aqui onde tudo acaba, dirigido por Cláudia Cárdenas e Juce Filho

por Barbara Bello   

 

Quando se caminha embaixo de árvores e o sol pisca na retina, a luz pode ressoar no corpo inteiro. Com a sensibilidade desses olhos, Aqui onde tudo acaba carrega as marcas do sol na película como lampejos n’água. Resultado de uma vivência com os Laklãnõ/Xokleng da Aldeia Bugio em 2022, o curta entrelaça suas histórias e saberes com o próprio gesto de filmar. Relacionando-se com as singularidades do 16mm, as imagens da terra se multiplicam por entre feixes luminosos.                                                                                                          

Segundo os mais velhos, diante do medo, o chefe dos Vãjeky – aqueles que saíram da água – inventa a onça como forma de proteção e diz “minha criação agora grita do jeito que quiser”. Esses dizeres sucedem imagens dos Laklãnõ com a câmera em mãos, convocando uma atenção ao gesto, à criação. A vivacidade que envolve seus registros fervilha no corpo do filme. Deixando rastros entre si, cada imagem carrega um pouco da outra. Entre os galhos em muitas direções, as folhas que curam e as águas fluindo reluz a memória inscrita nessa terra. A presença do olhar dos Laklãnõ se faz mais intensa conforme essas imagens, os cantos e palavras da história se embrenham. Como sua terra, a película é atravessada por muitas vidas e temporalidades. Assim, é possível que se encontrem numa mesma imagem a história que os avós contaram e a festa das crianças de agora.   

A coloração alaranjada da película e os brilhos que incidem por entre as imagens lembram que é dia e faz calor. A textura ruidosa, a fricção entre os registros e os cantos em festa fazem acumular essa quentura. Fazer imagem é como guardar um pouco do sol. Assim, pode seguir ressoando. Quando se fala na possibilidade de o sol apagar, as vozes e memórias dos Laklãnõ cintilam ainda mais fortes e prolongam seu tempo no olhar.   

Opacidade Média sobre Fantasma Neon, dirigido por Leonardo Martinelli

Por Felipe Rodrigues da Costa 

 

Fantasma Neon evidencia uma dura realidade, a dos entregadores de aplicativo. Leonardo Martinelli expõe grupos sociais marginalizados de uma forma doce, mas os reduz a apenas sofredores habituais. 

O filme mostra João e seu desejo de comprar uma motocicleta para trabalhar, enquanto enfrenta clientes mal-educados e a precariedade do trabalho. Apesar de grande importância, Martinelli trata todos os males expostos no filme de forma superficial e conformista. Nada é desenvolvido, não sabemos sobre os amores, vidas, ideias e nem nada além de sofrimentos e lamentos dos personagens. As interações entre João e os clientes denunciam sim um maltrato, mas deixam totalmente plásticas e superficiais essas ofensas. Tudo parece maniqueísta. 

Esse fenômeno com âmbito maniqueísta se faz presente no cinema brasileiro contemporâneo. Diversas produções trazem esse embate entre bem e mal, focado nos malefícios e desmoralizando lutas importantes. E há uma grande coincidência nessa questão (ou não). Filmes denúncia são largamente produzidos pela elite que ocupa a retomada do cinema nacional. A classe burguesa sente a necessidade de mostrar e criticar algo, mas como sempre, reduz tudo ao conformismo e sofrimento passivo. O caso de Martinelli não é diferente. 

O filme conta com grandes atuações de Dennis Pinheiro e Silvero Pereira, com o segundo ganhando um grande destaque. Porém, são vagas e pouco desenvolvidas, acabando focadas apenas nos números musicais. 

O conjunto da obra se transforma em um musical com músicas alarmistas e um roteiro desperdiçado. O curta vem como um projeto de urgência, discutindo um tema muito observado no cotidiano, mas reduz tudo a uma crítica pouco desenvolvida e com certo imediatismo. Tudo fica em um tom médio, deixando o invisível pouco visto. 

 

A percepção e a quebra de expectativas sobre III, dirigido por Salomé Villeneuve

por André Quental Sanchez

 

O curta “III” de Salomé Villeneuve lembra o livro “O Senhor das Moscas”, de William Golding, em ambas as produções temos o retrato de uma violência ocasionada por medo e raiva de crianças. Tanto Golding quanto Salomé distorcem a percepção do público sobre a imagem de uma criança, inserindo comportamentos que destoam do senso comum como comportamentos animalescos, assim, o espectador fica em choque com a quebra de expectativas e é gerado uma tensão.

O curta apresenta uma direção de atores eficaz em um retrato de três irmãos que entram em um conflito violento após um conflito de interesses. Com somente 3 atores e poucos diálogos, a força do projeto se dá por gestos, respirações e olhares, na medida que as crianças mal se comunicam entre si e agem como animais.

Elliot Desjardins Gauthier como Saul é o que apresenta maior destaque por conta de suas expressões, em um momento presenciamos suas escápulas subindo e descendo de raiva e seu olhar de raiva após bater em uma árvore, assim, sentimos pena e ao mesmo tempo um estranhamento.

A floresta amedrontadora, a fotografia com tons escuros, a imensidão do mundo criado, o isolamento de seus personagens e a direção de arte auxiliam na criação de um estranhamento e um enriquecimento do projeto. Um exemplo é a constatação que a irmã mais velha é a única totalmente vestida, o que a coloca na posição de mãe do mesmo modo que Wendy em “Peter Pan” de J.M.Barrie.

No momento que Saul persegue sua irmã para matá-la, o público coloca em xeque a construção social sobre o que uma criança deve ser, fazer, etc. O retrato violento e visceral presente no curta quebra todas as expectativas e abre lugar ao medo e o desconforto.

Golding em seu livro usa um paralelo semelhante, ao contrastar uma imagem do senso comum e enraizada em seu público, o projeto ganha força e atrai a atenção por conta da quebra de expectativas, fazendo o público refletir sobre as percepções que temos do mundo.

 

Bora, Big! sobre Big Bang, dirigido por Carlos Segundo

por Boni Zanatta  

Para os corpos marginalizados, o não-percebimento é sentido na pele. É uma tensão, um ruído metálico grave que cresce até não se aguentar e estourar – como é a trilha sonora de  Big Bang, cujo protagonista Chico (Giovanni Venturini) trabalha consertando fornos. Para  tanto, entra de corpo inteiro em suas entranhas de metal. Chico vivencia uma exclusão social por conta de seu nanismo. Segundo ele mesmo, ele ganha a vida estragando tudo que pode caber dentro; e não é bem pago por isso. 

A direção do curta, de Carlos Segundo, trabalha a ideia de perspectiva e ponto de vista. Onde começa e termina cada imagem, cada som, é ditado por Chico e por sua percepção do mundo. Os personagens com quem interage no começo do curta têm suas cabeças fora de quadro, enquanto Chico está inteiro: isso, não só pelo distanciamento das alturas, mas pelo fato de que eles não estão, de fato, inseridos ou interessados na vida do protagonista. A despeito deles, a câmera toma Chico como seu ponto de partida, e o registra na altura do olho. Como se dissesse: estamos em momento de contar esta história. 

A ânsia de Chico para se libertar da realidade em que está trancado remonta a Sideral, o curta anterior do diretor – sendo Big Bang o segundo desta chamada Trilogia do Espaço, sobre as explosões infinitas que fazem morada na ponta do nariz. E que ressoam com as explosões de quem recebe estes filmes; Na mostra dos Favoritos da Crítica do Curta  

Kinoforum, ‘Big Bang’, o último da sessão, demorou a começar. Houve burburinho na sala. A princípios de começar o filme, uma mulher grita: “bora, Big!”, chamando o filme como se  fosse um conhecido, a fim de prosear. E na tela, gigantesca, assistiu-se à explosão

extasiada que encerra o filme. Que é o big bang de Chico. É a revogação do direito de ser visto, de mandar tudo à merda, e de explodir: apesar da brutalidade dos dias, em que tudo arde e comprime, feito uma fornalha. Como a música final: This is life. It’s not rock ‘n roll (but I like it).

 

Acima de nós, só Deus e a roda da frente sobre Ramal, dirigido por Higor Gomes

Por Felipe Rodrigues da Costa 

 

Em um vale, numa tarde ensolarada e mágica, jovens empinam suas motocicletas como se o tempo não andasse. Em “Ramal”, Higor Gomes utiliza uma forma naturalista para mostrar a magia e a sacralidade do “grau”, o ato de empinar suas motocicletas. Com garotos ocupando e transformando um viaduto periférico no interior de Minas Gerais, o tendo como um santuário. 

Com uma fotografia expansiva e grandiosa, Higor Gomes constrói uma relação de comunidade. A fotografia começa com planos individuais, como por exemplo, as primeiras cenas que focam em apenas um personagem no enquadramento e depois, focam em planos conjuntos, enquadrando o grupo de forma majoritária. Planos de estabelecimento também são comuns, mostrando a importância da localidade. 

O filme traz uma grande relação de um mundo real e uma realidade alternativa, invocada por aqueles que trabalham o dobro. Os motoqueiros abrem um portal para congelar o tempo e desfrutar uma pequena fração do presente. O grupo vive um momento hedonista.

Através dos diálogos e trilhas sonora, percebe-se uma realidade crua e sensível, que ganha um grande ar poético com os elementos oníricos abordados, desde objetos, como uma “luva mágica” usada por um dos motoqueiros, quanto um portal aberto pelo grupo, com a ideia de parar o tempo. O ideal de ocupar e realizar um “ritual” para o tempo congelar e poder desfrutar de um lazer de interesse mútuo, traz um grande senso de comunidade e abre novos caminhos para um sonho coletivo, a visibilidade em meio a grandes montanhas.

As motocicletas deixam de ser apenas um meio de transporte e são tidas como verdadeiras parceiras de cada um dos motociclistas, às tendo como um objeto sacro e vivo, além de algo provedor de lazer, oportunidades e pertencimento. 

Em um mundo onde dois trabalhos ocupam todo o repouso, realizar uma manobra e chegar o mais alto possível com o pneu, é o que importa em uma realidade de presente infinito.