Ignorância instintiva

deserto-ed

por Letícia Fudissaku –

Na Mostra Internacional 4, vemos cinco situações em que as personagens tem de lidar com elementos contrastantes em seu universo. Se em O Barulho e Reunião de Condomínio o conflito tem como base a moradia dos personagens, em Deserto e Cólera temos condições um tanto diferentes – mas que, ainda assim, aproximam-se em seu subtexto.

Em Deserto, acompanhamos a trajetória de uma soldado que perdeu seu rifle e recorre à ajuda de um beduíno. Se o espectador espera uma aproximação entre essas personagens, em contraponto à inimizade dos grupos a que pertencem – a exemplo de O Menino de Pijama Listrado ou filmes infantis como O Cão e a Raposa, muito se engana: no clímax da narrativa, a protagonista não hesita ao tomar uma atitude em benefício próprio, que leva também à morte do homem momentos depois.

Vale lembrar que a soldado possuía uma conduta exemplar, até cometer o deslize de perder sua arma às vésperas de sua “formatura”. Ainda assim, suas atitudes passam longe do bom senso: ela engana o beduíno para obter sua ajuda e descarta-o friamente assim que encontra seu rifle. Ele, mesmo ao perceber que foi enganado, diz que a ajudaria do mesmo jeito se ela tivesse dito a verdade. Logo, fica claro que os dois personagens não passam por mudança alguma de valores. Mais do que isso, evidencia-se a percepção da soldado de certo e errado, priorizando o dever e ignorando a humanidade os possíveis inimigos.

Já no sagaz e intenso Cólera, temos a mesma postura impiedosa e fria dos soldados aplicada aos membros de um vilarejo, que querem acabar com o “monstro” que passou a viver nos arredores. Em ambos os casos, a força se sobrepõe à empatia, transformando quem poderia ser visto como um semelhante numa mera presa. Mas, ao final, Cólera se mostra mais espirituoso: a aberração – que é na verdade um rapaz com um estágio avançado de cólera – é alvejada e cai na represa que fornece água ao vilarejo. Num brilhante uso do karma, é justamente a investida contra o doente que disseminará a doença entre eles.

Em seus poucos minutos, Cólera transmite seu recado de forma poderosa, condenando o pensamento extremista e violento daqueles que não praticam a empatia ao contato com aqueles que são, de alguma forma, diferentes. E, se em Cólera vemos os danos da ignorância coletiva, a trama de Deserto complementa a mensagem, evidenciando o comportamento egoísta de uma personagem aparentemente íntegra, quando afasta dos seus iguais.

Deserto e Cólera estão na Mostra Internacional 4. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2014

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *