Retrato de Carmen D.: jogar para a câmera

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por Valéria Tedesco –

O curta-metragem carioca que encerrou a sessão Mostra Brasil 5, na quarta-feira úmida do festival, foi claramente o auge da noite. Retrato de Carmem D., da diretora Isabel Joffily, se destaca pela intensidade de emoções e angústia que transmite através de seus personagens.

Tão complexo quanto a relação de mãe e filha que acompanhamos durante a narrativa seria tentar escrever sobre esse filme de maneira linear, na tentativa de criar argumentos que atingissem seu ápice no clímax da narrativa. O mundo em que a psiquiatra Carmem Dometto e sua filha Marcela vivem é, e aparenta sempre ter sido, marcado por picos e momentos de sossego que pouco fariam sentido em uma única linha temporal.

Vou começar pela piscina. O plano mostra uma mulher mexendo com as plantas cobertas de musgo que estão onde um dia foi (como nos narra a personagem) uma piscina limpa e em constante uso. Desde esse primeiro momento somos introduzidos a uma memória de infância cortada, modificada. Marcela se lembra rapidamente dos tempos em que a piscina ainda era utilizada, mas o assunto logo segue para o relacionamento difícil com a mãe.

Somos apresentados ao olhar de Carmem, e depois a ela. Sua primeira fala aborda os obituários como um de seus passatempos diários. A senhora, que passa de seus 70 anos, afirma que todos os dias olha o jornal para certificar-se de que está viva, e também para ver se algum de seus inimigos já morreu. Deseja, com calma e certeza, uma morte dolorida a todos eles, e que se lembrem dela no final, se possível.

Esse primeiro momento de Carmem é um dos mais fortes do filme, tanto narrativamente como com o reflexo do público. Os risos e descontração cessam de uma só vez quando vemos uma mulher de aparência frágil dizer aquelas palavras duras e frias. A partir desse momento, todo o filme será pautado na depressão e no cotidiano de mãe e filha, e as fortes consequências de um ato no passado.

A psiquiatra que agora atende seus pacientes na sala de sua casa, fora acusada pelo suicídio de um de seus pacientes, há década atrás. Nesse momento, cria-se a relação de sentido para a piscina vazia, o relacionamento distante e complexo que se criou entre as duas, o telefone que toca sem que Carmem se preocupe em atender.

E assim cria-se o ambiente de difícil convivência entre essas duas mulheres, com mágoas de infância, com cicatrizes de vida, com pequenos detalhes na casa que denomina o universo daquela senhora. Mas nada é tão forte até o momento em que a câmera torna-se o verdadeiro psiquiatra dessa relação e mostra em dose única e de maneira intensa todo o drama que envolve a vida de mãe e filha, ao menos nas últimas dezenas de anos.

O cenário é a cozinha. Toda a discussão começa com Carmem demonstrando seu primeiro ponto de fragilidade de forma escancarada, quando diz para a filha que ela deveria gostar de ter outra mãe. Poderia ser uma pequena discussão ou desabafo de qualquer relação materna, mas o diálogo a seguir cria um cenário de angústia, mágoas e de uma convivência extremamente dolorida ao mesmo tempo que amorosa entre as duas.

E então a câmera faz sua grande atuação. É para a câmera que mãe e filha jogam as cartas na mesa e assumem para o mundo um tratamento arisco que mantém, é para a câmera que elas afirmam estar enfim cansadas dos tratamentos baseados em insultos e discussões. É para a câmera que carinho e mágoa se unem em uma dança inseparável, pois finalmente desabafam uma para a outra suas loucuras e suas inseguranças, frente a frente, e na frente de todos nós, que outrora acompanhávamos com um leve riso a espontaneidade complexa dessa mulher, acabamos com nosso riso e nossas certezas junto com os musgos no fundo da piscina vazia.

Retrato de Carmem D. está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Fantástico documental

Leonardo Sette é daqueles realizadores que colocam em xeque o gênero cinematográfico ao questionar a relação entre ficção e documentário. Já em Ocidente (2008), seu primeiro filme, o diretor põe em crise essa dualidade ao nos apresentar um filme que não se define nem por ficção, nem por documentário, nos termos tradicionalmente conhecidos.

Em Porcos Raivosos (dirigido por Leonardo Sette em conjunto com Isabel Penoni), selecionado neste ano para a Quinzena dos Realizadores em Cannes, as mulheres da tribo Kuikuro encenam um mito indígena em que os homens se transformam em porcos raivosos. Tudo é filmado dentro de uma oca, exceto o plano final. E, dentro dessa oca, as mulheres da tribo se preparam para se defender dos homens, agora transformados em porcos raivosos.

A encenação do rito se torna a história do filme, ao mesmo tempo em que poderia ser considerada como um arquivo documental. Acredito que essa dualidade intencional existe não porque o diretor queira colocar em crise esses estatutos (crise já bastante explorada), mas sim porque não acredita nessa divisão. É muito interessante ver um rito indígena ser encenado em frente à câmera, para a câmera, e ao mesmo tempo servir como registro documental.

A interpretação das atrizes e seu empenho são surpreendentes, fruto de um bom trabalho na direção de atores. Em muitos filmes indígenas que vi (filmados por eles, ou com atores indígenas), é notável o desconforto que a câmera causa. Em Porcos Raivosos, as mulheres da tribo executam seu ritual com uma veracidade notável; ao apontar suas estacas em direção à câmera, parece que é o espectador que está sendo mirado.

É bom relatar que essas são as impressões de alguém que nunca presenciou um ritual indígena ao vivo. Posso estar redondamente enganado. Fiquei muito curioso para saber o que elas cantam durante o ritual.

O curta de Leonardo e Isabel encena um mito e o representa dentro do espaço de uma oca, que, ao final, se mostra incompleta. Apenas metade dela tem palha, possibilitando que seja utilizada luz natural para a gravação. É interessante que nunca vemos os porcos raivosos e o único homem da história é o índio que entra na oca para dar a notícia terrível.

Porcos Raivosos conta uma história fantástica (sobrenatural) sem utilizar nenhum recurso mirabolante, apenas uma oca, um grupo de mulheres, seu rito e a luz do Xingu. O curta de Leonardo e Isabel faz muito com pouco.

Renato Batata

Porcos Raivosos está na Mostra Brasil 4. Clique aqui para ver a programação do filme