Estranhamente interessante

dia estranho

por Letícia Fudissaku –

Quando um recurso simples é bem explorado, fica clara a habilidade de seus realizadores. Em seus primeiros minutos, Dia Estranho já me chamou a atenção pelo uso acertado do voice over, geralmente usado em demasia – ou, citando informações que funcionariam melhor em imagem. A locução que inicia o curta, por outro lado, é mais convidativa que explicativa, estabelecendo um vínculo protagonista-espectador.

O jeito informal e meio desleixado do personagem falar me lembrou um pouco o começo do icônico Clube da Luta e logo me despertou interesse na história – que, por si só, já é bem atrativa. A premissa de um entregador de mercadorias “misteriosas” abre um leque de possibilidades – poderia até, quem sabe, originar uma série. Mas, dados os acontecimentos que se seguem – alguns até um pouco fantasiosos, mas ainda assim intrigantes –, a escolha do formato de curta-metragem foi mais um acerto.

Os aspectos estéticos também acrescem ao enredo, em especial os visuais: a fotografia meio sépia e contrastada evidenciam uma atmosfera de submundo e a montagem acelerada e os jump cuts condizem com a instabilidade emocional em que se encontra o personagem. As sequências repetitivas aumentam a sensação de agonia e o anseio para saber o que acontece a seguir. Depois desse redemoinho, a história se encerra em um final arrebatador.

Sem muitas abstrações, a narrativa de Dia Estranho é instigante e muito bem construída, com momentos de tensão de tirar o fôlego. O próprio título é uma bela síntese do curta, que contém ainda uma impactante trilha na sequência de créditos (iniciais e finais). É um dos poucos curtas em que consegui analisar seus diferentes aspectos individualmente, sem me perder ou perder o interesse na história em si. Estranho ou não, me diverti assistindo!

Dia Estranho está na mostra Panorama Paulista 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Muito além do estranhamento

os invasores

Um jornalista entrevista um médico acerca de uma pesquisa inovadora no campo do sono. Num primeiro momento um olhar enrijecido sobre a cena, aliado a uma intensificação do estranhamento oriunda de uma encenação demarcada, podem sugerir duas dinâmicas contidas em Os invasores: um falso documentário e/ou a tentativa de construção de uma atmosfera de intenso estranhamento que irá ditar as regras (ou ausência delas) que regem o mundo observado no filme.

Num segundo momento nesta mesma cena o golpe decisivo que desconstrói as duas hipóteses levantadas acima e instaura de fato a mecânica do olhar proposto pelo filme: mantendo o mesmo olhar rígido sobre a cena, o médico responde com aspereza e ironia a pergunta do jornalista acerca de uma possível desumanização com a eliminação do sono e consequentemente dos sonhos na vida das pessoas – sonhos vistos como férias ou terapia. Ataque e desconstrução acerca das duas hipóteses levantadas logo de cara. Instauração de um humor irônico que contrasta com as expectativas primeiras criadas a partir da construção formal do olhar lançado sobre a cena. Os invasores lida justamente com isso: ataque e desconstrução de um discurso e de uma forma de olhar para o mundo. Mas a que e em que consiste esse ataque exatamente?

Seguimos. Mais uma cena no hospital: novamente dentro de uma dinâmica de um olhar rígido, observa-se um exame de tomografia na qual a situação foge do controle – estranhamento e incômodo se instauram novamente. O elo que possivelmente confere unidade ao suposto regime de estranhamento imposto pelo olhar proposto surge na figura dos “invasores” extraterrenos. Seria possível esboçar algumas teorias acerca do porquê esses “invasores” surgem. Nada disso é necessário ou sequer possível – mais uma vez uma provável justificativa para esse regime de estranhamento reside no discurso e no olhar depositado nas situações: arbitrariedade.

O surgimento da figura dos “invasores” como uma explicação arbitrária no universo do filme aflora como um ataque frontal a um tipo muito específico (e muito em voga) de olhar: aquele que busca a construção de uma atmosfera de estranhamento na realidade observada pelo simples efeito que tal estranheza carrega – espécie de olhar que se configura tanto como um registro de um incômodo no qual o cineasta não precisa se posicionar quanto como uma mera constatação: baliza-se o filme somente pelo valor de diferenciação que tal estranheza carrega – arbitrariedade ironizada e problematizada em Os invasores – portanto, uma vaidade pura misturada ao conforto da omissão perante o mundo.

Nesse contexto a desconstrução irônica do olhar proposta por Os invasores surge não apenas como uma sátira estéril e sim como uma tomada de posição: combate-se um tipo de olhar (e portanto de cinema) que se alija cada vez mais em relação a um debate crítico acerca do mundo que observa, e ao qual atribui como origem desse pretenso sentimento de estranheza – que ao justificar-se por seu valor de diferenciação e constatação não obriga o questionamento acerca de suas origens nem de possíveis conflitos e problemáticas existentes na realidade observada.

Filme sobre cinema: não como deleite em relação ao aparato nem fetiche metalinguístico (como muito se observa na produção universitária, da qual Os invasores faz parte). Filme sobre cinema no sentido de se recuperar a ideia de responsabilidade para com o olhar lançado sobre o mundo. Responsabilidade muito esquecida em prol de um sentimento de estranheza que transforma o mundo observado em um museu. Assim, filme sobre cinema como ato de resistência a simplificação brutal do olhar.

Guilherme Maggi Savioli

Os Invasores está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013