A Nau dos Loucos: o quinto Império
por João Pedone –
Eu, enquanto produtor do filme A Nau dos Loucos, sinto-me na obrigação de adverti-lo antes de começar a escrever. Não participei diretamente do processo criativo do filme nem tenho intenções propagandísticas, escrevo tão somente porque o filme me toca. Se alguém perceber aqui faltas para com a ética de crítico, peço-lhe desde já que me perdoe a falha indesejada [N.E.: A Nau dos Loucos foi produzido como um exercício de realização na ECA-USP e exibido no festival dentro do programa Cinema em Curso].
O filme abre com seus créditos iniciais em silêncio, e termina em silêncio sem créditos, de cara rompendo com a convenção estabelecida de experiência cinematográfica. Apresenta-se como um anti-filme. Esse silêncio sepulcral – artificial – atravessa toda a primeira sequência do filme: longa, não dramática. Há duas personagens, são músicos, mas o filme vai adiar sua apresentação.
Há uma ficção: as pessoas estão deixando São Paulo. É uma narração em voice over que, de maneira muito curiosa, se sobrepõe a imagens quotidianas do trânsito, e à figura também absolutamente quotidiana de um vendedor ambulante. O que continua a nos estranhar é o silêncio que toma conta da cidade de São Paulo.
Depois dessa exposição um tanto árida do cenário de um suposto êxodo coletivo, os músicos aparecem em primeiro plano para tocar sua música. Da mesma maneira que essas personagens se inserem (sua ação, suas roupas, sua fisicalidade) de maneira completamente destoante das outras personagens e do cenário, a montagem do filme as isola em um plano “à parte”: cenário sem profundidade e situação acronológica. Essa dupla está evidentemente destacada do filme, eles são o comentário dos realizadores sobre o próprio filme.
Felizmente, ao contrário de muitas obras autoindulgentes, a voz dos realizadores aqui se faz necessária para esclarecer a absoluta hermeticidade dos primeiros minutos de filme. Assim, quando eles cantam “vai embora, povo ingrato” e “esse silêncio que agora impera é o que sempre desejei”, completam o sentido do filme, mostrando-nos que a ficção que – à maneira de Othon, de Straub e Huillet – se desenrola sobre o pano de fundo da realidade é a ficção que os próprios diretores projetam sobre a cidade. O silêncio é o próprio desejo deles por silêncio que se impôs à representação. Há uma busca do filme por reencontrar paz, nem que seja fazendo tabula rasa da cidade.
Se o barco, ao final do filme, busca escapar, o plano de encerramento parece estático, margeando o rio sem jamais se desprender da visão da cidade. Há um evidente afeto pela cidade (“foi aqui que eu nasci, é aqui que morrerei”), que faz do filme um hino de amor a São Paulo – o que nada parece carregar de ironia. Um hino de amor e a projeção de um futuro melhor. Se essa projeção é romântica e idealista, isso não a desqualifica, porque essa parece ser a única saída possível. Já que a realidade material da cidade de São Paulo não oferece alternativas de transformação, o único caminho é o gesto desmedido, a negação da razão, a projeção de uma ficção subjetiva sobre uma realidade castradora, lembrando que a projeção, assim como o projeto, aponta para o futuro. Afinal, “nada deve parecer impossível de ser mudado”.