Mauro em Caiena (Leonardo Mouramateus, 2012) é como uma carta-cinema. Não uma carta filmada, ou um filme sobre uma carta, mas as duas coisas dentro de uma só, palavra e imagem, indissociáveis. A leitura sutilmente saudosa, ficcional, divagante traz a qualidade de memória para as imagens em preto e branco. Expande-se o universo das duas dimensões justapostas, que se fazem como camadas para a leitura una do curta-metragem.
A carta é endereçada a um tio, Mauro, que está na Guiana Francesa, e saiu há um tempo considerável de Caiena, esta cidadezinha de interior de descampados e montes de terra de construção. O sobrinho lhe fala com amor, saudade, e talvez, um certo rancor por um tio que se foi e não volta, que deixa a avó sempre na esperança da volta. Talvez, também, com um pouco de inveja por ele ter ido embora deste pequeno cerco. Lembra-me o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, só que sob a visão do irmão que fica, vendo o outro que se foi, desgarrou-se e deixou mágoas na família. O irmão que, talvez, também quisesse ter ido.
Enquanto as palavras, informais como devem ser as cartas, correm, as imagens as confirmam, distanciam, embolam-se com elas. O menino que imita um cachorro e depois sobe em árvores deve lembrar o tio criança, diz a carta. Aqui, o que se fala é quase o que se vê – o menino não é um personagem construído, está ali como ilustração, é uma imagem reflexiva do lugar, das crianças que subiam e ainda sobem em árvores. O primo pequeno e o tio que se foi há tanto tempo são os mesmos, condensados nessa imagem – e assume-se o caráter de imagem, de reprodução, de ilustração.
A carta, talvez para convencer o tio a voltar, diz que o lugar continua o mesmo de sempre. O que vemos na imagem são os montes de terra de construção, são os guindastes, imagens de um lugar em constante transformação. Caiena nunca mais será a mesma da infância de Mauro, mas o modo como o realizador resgata as memórias do seu tio e as insere nas imagens atuais, faz lembrá-lo de que Caiena ainda é Caiena. Daqui falo da dimensão dolorosa da memória da imagem: um lugar nunca é o mesmo, mas o permanece nas nossas memórias, e os nossos olhos por vezes procuram na paisagem, ansiosos, aonde é que as imagens da nossa memória permaneceram. E eles permanecem, de algum jeito. Também nas imagens de um filme visto na televisão, como as cenas de Godzilla, em que as imagens ficcionais de um outrem tornam-se carregadas de memórias nossas, particulares. Memórias que são conjuntas, mas que por estarem desligadas de qualquer lastro de realidade, podem ser tomadas como nossas, de um momento que pertence a todos.
Algumas imagens atestam a triste derrocada da memória do lugar. Quando o realizador filma a árvore da infância de Mauro sendo derrubada, esta árvore que não é de seu afeto – já que ele diz que estava de ressaca e pouco interessado na árvore que ia ser cortada – não deixa a tomada toda em filme: é triste mostrar o decapitamento total desta memória. Mas está lá, como atestado dessas mudanças irrevogáveis.
A permanência parece estar na figura da avó, figura comum entre os dois, sempre citada pelo narrador da carta, com certo pesar, contando ao tio o modo como a avó o abraça achando, por vezes, que ele é Mauro. Engraçada colocação, que justifica a fixação num tio que já se foi há tanto tempo. Escrever-lhe é quase um pedido de troca de lugar; e uma carta (ou um filme) é quase sempre uma vontade de troca, estar por uns momentos em outro lugar, junto de um outro. Mas é essa avó, a verdadeira árvore no quintal, que fincada com suas raízes no mesmo lugar, está em tela e em vida como uma presença divina, matrona da infância de todos os meninos, recipiente das saudades, das memórias. É o elo da ligação, não de um lugar, passível de transformação, mas de gente comum, que aparece em tela picando legumes para pular ali um gato e comer os restos.
E nessas indas e vindas dolorosas sobre a memória, a saudade, os lugares que já não podem ser os mesmos (se o tio voltasse ele reconheceria Caiena como o narrador da carta parece tanto insistir?), o realizador termina o filme voltando a si mesmo. É preciso deixar Guiana Francesa e a vontade de ser Mauro, de estar longe, é preciso deixar de filmar aquilo que deve ter sido a infância de Mauro – resgatado pelas memórias da avó – para constituir-se, também, como alguém; e não mero observador desse processo. E dessa forma, não poderia ser tão emocionante a longa tomada de uma menina em uma balada, um universo exclusivo ao realizador. A menina é filmada com carinho e a narração que já se calou. É preciso voltar a vida, e a vida do que há por vir. A imagem da menina olhando para a câmera não é, como outras, a ilustração de um passado, a reconstituição de uma memória, mas sim atestado do presente.
Mariana Vieira
Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013