De Castigo: sobre se relacionar

de castigo

por Valéria Tedesco –

A sessão estava lotada para a exibição dos filmes do Panorama Paulista 1. Entre curiosos, admiradores, familiares e amigos, a jovem diretora Helena Ungaretti fez mais uma apresentação de seu curta-metragem De Castigo. Interessante observar como os espectadores fizeram parte da composição do clima apresentado pelo filme.

Lilian Blanc vive o papel de Guta, uma tia avó que vive sob o olhar vigilante da família, mas para sua sorte, essa família é apresentada na narrativa através de seu sobrinho Felipe, um tímido e tranquilo adolescente que vai passar um tempo em sua casa por estar, a princípio, de castigo.

Guta é apresentada em um cotidiano que escapa as convenções de uma senhora na terceira idade que mora sozinha. Ela bebe, fuma e vai muito bem, obrigada. Felipe, por outro lado, é um garoto quieto que claramente gostaria de estar em qualquer outro lugar. De maneiras distintas, cada um vive em seu universo particular.

A relação dos dois personagens começa de fato a se consolidar quando tia Guta, ao tomar banho, leva um tombo e chama Felipe para ajudá-la a levantar. A situação constrangedora se transforma em um importante marco para os dois que, a partir desse momento de intimidade e respeito, passam a mais do que simplesmente se dar bem, mas a tentar entender as motivações e limitações da vida do outro.

A estética bem construída é um grande elemento para que a narrativa mantenha seu ritmo e continuidade. O universo de Guta e Felipe prende a atenção com a bela composição da fotografia, juntamente com a direção de arte e cria ambientes que destacam as personalidades bem definidas para o espaço daquela historia e daquelas pessoas. Os objetos cuidadosamente posicionados e os móveis clássicos que compõem a casa de Guta criam uma duplicidade que também refletem na personagem.

De uma maneira leve, a história é um debate sobre personagens, e sobre personalidades. Tia e sobrinho são dois desajustados que levam a vida em seu próprio ritmo, e no final das contas encontram um no outro a maneira de manter sua identidades e encontrar novos caminhos.

De Castigo está na mostra Panorama Paulista 1 e na Infanto-juvenil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Vailamideus: risos e incertezas

vailamideus

por Beatriz Couto –

Uma senhora, em sua cadeira de rodas, olha fixamente para frente. Ao seu redor, o caos de uma festa familiar. Convocados por uma animada mulher ao microfone, filhos e netos se posicionam para fotos com a avó, em uma procissão infinita de sorrisos para a câmera. A situação é incômoda, e a narração da mulher é tão absurda que dá ao documentário ar de ficção. Vailamideus, de Ticiana Augusto Lima, é um filme muito simples, mas capaz de levar a reações diversas.

São apenas dois planos. O primeiro, com a sequência de famílias tirando fotos, se coloca no lugar da câmera fotográfica. O afastamento causado pela burocratização do processo é acentuado pela expressão neutra da avó. Enquanto as pessoas mudam ao seu redor, ela continua ali parada. Um corte mostra ao público o rosto da senhora, e suas reações se tornam visíveis. Enquanto a mulher ao microfone canta e conduz a festa, ela sorri e se emociona.

Grande parte do estranhamento do filme é causado pela narração. Ter um microfone em uma festa familiar denuncia seu tamanho sem mostrar mais do que uma parede na cena. A mulher, animada, convoca os parentes para as fotografias; um tio é provocado por ainda estar comendo, outro é citado por estar cuidando de uma menina com febre – é perceptível a descontração e intimidade do evento.

O público na sessão ri. Ri da mulher ao microfone, de desconforto com a situação e das peculiaridades da família, mas não é um filme de humor. Toda a situação ao redor da matriarca tem cara de despedida, de aproveitar essa chance por não saber se haverá outra, talvez aquela seja a última festa e a última foto. Há uma tristeza nas entrelinhas de tanta comemoração.

Ticiana, a diretora do filme, é uma das meninas na última família. Ela é a 57ª neta, filha de um dos doze filhos da avó. A senhora, Myrthes, tinha 94 anos no documentário e hoje tem 96. Saber um pouco mais sobre aquelas pessoas torna reais as figuras na tela. Festas, como a retratada, acontecem duas vezes por ano, no aniversário da avó e no dia das mães, e a diretora não sabe o que acontecerá quando a avó morrer. É impossível o espectador não se envolver, caso já tenha passado por situação semelhante.

Vailamideus não é um dos maiores filmes do festival, mas é um dos mais íntimos. Ticiana fez escolhas certeiras de montagem e com certeza irá marcar quem o assistir.

Vailamideus está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A memória, a infância e o Godzilla

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Mauro em Caiena (Leonardo Mouramateus, 2012) é como uma carta-cinema. Não uma carta filmada, ou um filme sobre uma carta, mas as duas coisas dentro de uma só, palavra e imagem, indissociáveis. A leitura sutilmente saudosa, ficcional, divagante traz a qualidade de memória para as imagens em preto e branco. Expande-se o universo das duas dimensões justapostas, que se fazem como camadas para a leitura una do curta-metragem.

A carta é endereçada a um tio, Mauro, que está na Guiana Francesa, e saiu há um tempo considerável de Caiena, esta cidadezinha de interior de descampados e montes de terra de construção. O sobrinho lhe fala com amor, saudade, e talvez, um certo rancor por um tio que se foi e não volta, que deixa a avó sempre na esperança da volta. Talvez, também, com um pouco de inveja por ele ter ido embora deste pequeno cerco. Lembra-me o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, só que sob a visão do irmão que fica, vendo o outro que se foi, desgarrou-se e deixou mágoas na família. O irmão que, talvez, também quisesse ter ido.

Enquanto as palavras, informais como devem ser as cartas, correm, as imagens as confirmam, distanciam, embolam-se com elas. O menino que imita um cachorro e depois sobe em árvores deve lembrar o tio criança, diz a carta. Aqui, o que se fala é quase o que se vê – o menino não é um personagem construído, está ali como ilustração, é uma imagem reflexiva do lugar, das crianças que subiam e ainda sobem em árvores. O primo pequeno e o tio que se foi há tanto tempo são os mesmos, condensados nessa imagem – e assume-se o caráter de imagem, de reprodução, de ilustração.

A carta, talvez para convencer o tio a voltar, diz que o lugar continua o mesmo de sempre. O que vemos na imagem são os montes de terra de construção, são os guindastes, imagens de um lugar em constante transformação. Caiena nunca mais será a mesma da infância de Mauro, mas o modo como o realizador resgata as memórias do seu tio e as insere nas imagens atuais, faz lembrá-lo de que Caiena ainda é Caiena. Daqui falo da dimensão dolorosa da memória da imagem: um lugar nunca é o mesmo, mas o permanece nas nossas memórias, e os nossos olhos por vezes procuram na paisagem, ansiosos, aonde é que as imagens da nossa memória permaneceram. E eles permanecem, de algum jeito. Também nas imagens de um filme visto na televisão, como as cenas de Godzilla, em que as imagens ficcionais de um outrem tornam-se carregadas de memórias nossas, particulares. Memórias que são conjuntas, mas que por estarem desligadas de qualquer lastro de realidade, podem ser tomadas como nossas, de um momento que pertence a todos.

Algumas imagens atestam a triste derrocada da memória do lugar. Quando o realizador filma a árvore da infância de Mauro sendo derrubada, esta árvore que não é de seu afeto – já que ele diz que estava de ressaca e pouco interessado na árvore que ia ser cortada – não deixa a tomada toda em filme: é triste mostrar o decapitamento total desta memória. Mas está lá, como atestado dessas mudanças irrevogáveis.

A permanência parece estar na figura da avó, figura comum entre os dois, sempre citada pelo narrador da carta, com certo pesar, contando ao tio o modo como a avó o abraça achando, por vezes, que ele é Mauro. Engraçada colocação, que justifica a fixação num tio que já se foi há tanto tempo. Escrever-lhe é quase um pedido de troca de lugar; e uma carta (ou um filme) é quase sempre uma vontade de troca, estar por uns momentos em outro lugar, junto de um outro. Mas é essa avó, a verdadeira árvore no quintal, que fincada com suas raízes no mesmo lugar, está em tela e em vida como uma presença divina, matrona da infância de todos os meninos, recipiente das saudades, das memórias. É o elo da ligação, não de um lugar, passível de transformação, mas de gente comum, que aparece em tela picando legumes para pular ali um gato e comer os restos.

E nessas indas e vindas dolorosas sobre a memória, a saudade, os lugares que já não podem ser os mesmos (se o tio voltasse ele reconheceria Caiena como o narrador da carta parece tanto insistir?), o realizador termina o filme voltando a si mesmo. É preciso deixar Guiana Francesa e a vontade de ser Mauro, de estar longe, é preciso deixar de filmar aquilo que deve ter sido a infância de Mauro – resgatado pelas memórias da avó – para constituir-se, também, como alguém; e não mero observador desse processo. E dessa forma, não poderia ser tão emocionante a longa tomada de uma menina em uma balada, um universo exclusivo ao realizador. A menina é filmada com carinho e a narração que já se calou. É preciso voltar a vida, e a vida do que há por vir. A imagem da menina olhando para a câmera não é, como outras, a ilustração de um passado, a reconstituição de uma memória, mas sim atestado do presente.

Mariana Vieira

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013