Lentes de adulto, olhos de criança

olho magico

É muito difícil tecer um parecer de um curta ou de qualquer outro trabalho voltado para o público infantil, porque parto do princípio, extremamente óbvio, de que conteúdo infantil foi feito para as crianças e tanto eu como quem produz conteúdo para crianças somos adultos. Crianças enxergam o mundo de maneira diferente. Não apenas pela altura, que já lhes garantem um ponto de vista deslocado da maioria dos adultos, como pela curiosidade instintiva e investigativa de querer descobrir o mundo e dotá-lo de significados.

Muitas vezes aquilo que um realizador acha que estará passando em um filme infantil não chegará nem perto da interpretação que este ganhará ao ser assistido pelo seu público alvo. Pode ser por isto que o curta de André Sampaio, Olho mágico, desperte a atenção: por ressaltar essa diferença de desconstrução/construção de um olhar.

Um olho mágico, objeto geralmente de alcance apenas dos adultos, desperta curiosidade e interesse dos mais novos. Através dele, podemos ver o que ou quem está do outro lado da porta. Ou, mais do que isto, como nos mostra o curta. Longe do seu lugar usual, nas mãos das crianças – e constantemente na visão do espectador que embarca junto na brincadeira – ele se torna um objeto capaz de instigar a imaginação, deformar o que está presente e até mesmo mostrar outros lugares que nem ao menos estão fisicamente por perto.

Somos transportados pela música, pelas imagens deturpadas e pelas brincadeiras constantes, que nem sempre nos permitem criar um significado concreto para o que foi visto. Talvez, apenas aquelas crianças brincando o possam fazer. E, provavelmente, muitas outras crianças serão instigadas a brincar e dar vida de outra forma à outros objetos, depois de Olho mágico.

Esta ideia da desconstrução aparece também em outro curta apresentado na mesma sessão, do diretor, ilustrador e animador Graciliano Camargo, One Man. Aqui, temos uma aposta no simples e pontual. Um curta-metragem que faz jus ao cronômetro, cria uma história de fácil interação e chamativa para o público infantil. Gosto de lembrar que esta é uma tarefa às vezes esquecida pelos realizadores, pensar naquilo que as crianças, seu público alvo, entendam e se reconheçam de certa forma no que veem. E mecanismos primários funcionam muito bem com o público infantil.

Através do uso da construção mais clássica e clichê possível, um herói que tenta salvar a mocinha presa nos trilhos de um trem que se aproxima (à melhor maneira montagem paralela de Griffith), os espectadores são entretidos pelas “super ações” do super herói galã para parar o trem. Quando a missão se completa, a cena enfim é aberta e vemos um plano geral revelador: na verdade, existiam três linhas de trem e o herói parou o trem errado. Pobre da mocinha. Risos de todo o público.

Uma história aparentemente simples que desperta o riso por este mecanismo desconstrutor do esperado. Quem, principalmente as crianças, iria esperar uma animação (infantil) que deixa a mocinha do filme ser atropelada no final? O uso da quebra e do inesperado construído em meios de identificação e captura da atenção do espectador, mais o uso de imagens e músicas que dispensam qualquer texto e enredos simples e bem construídos, garantem as risadas do público infantil.

De maneira quase oposta a essa, no sentido de imagens que guiam e conduzem as crianças de maneira limpa, é exibido na mesma sessão Apocalipse de verão, de Carolina Durão.

Em pleno verão carioca, o menino Daniel se depara e fantasia com as algas surgidas pela poluição na praia frequentada por ele com a avó. Daniel escuta constantemente informações da TV e do rádio, e até pesquisa mais no seu Ipad, sobre a poluição e possíveis destruições do planeta Terra.

A grande questão aqui é a mistura entre real e imaginário. Ou, mais do que isso, o imaginário que é construído através de dados e notícias advindas do mundo real. Se pararmos para pensar, qual a quantidade de informação que as crianças (e não apenas elas) são bombardeadas voluntaria ou involuntariamente nos dias de hoje? E, destas, quantas são explicadas ou submetidas a qualquer tipo de diálogo e contextualização?

Nesse sentido, apocalipse não parece uma palavra forte ou descabida para o imaginário de um garoto de oito anos e suas interpretações de mundo…

Dessa maneira, o que conta e encanta no curta são as belas e encantadoras imagens da imaginação de Daniel (vale aqui um adendo para a ótima fotografia e excelente arte), principalmente as debaixo da água com luzes negra e neon. Mais uma vez, temos a tentativa de lentes controladas por adultos de captar o olhar e a mente de uma criança. Mundo adulto versus mundo infantil, onde tudo pode acontecer.

Raquel Arriola

Olho Mágico, One Man e Apocalipse de Verão estão na Mostra Infantil 1. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2013

Alumbramento em Super-8

gato capoeira

Transgressão, liberdade, voz, expressão, calor, erotismo, crítica, contracultura, tesão. É por este caminho que vai a intrigante seleção Cinema do Desbunde, com curadoria de Marcelo Caetano e Hilton Lacerda.

A programação faz uma retrospectiva de filmes rodados em Super-8 especialmente na década de 1970, período de rica produção nesta bitola no Brasil. Entre os selecionados, os maravilhosos Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, e Céu sobre água, de José Agripino de Paula, representativos de um movimento, ou melhor, de uma geração baiana. Filmes produzidos em um contexto ditatorial e que representam, cada um à sua maneira, um retorno ao domínio dos corpos, que dançam um baile de liberdade de expressão, seja no ar ou na água. Corpos estes que representam tantos corpos reprimidos e escondidos, violentados física e moralmente por um regime de exceção.

Em Gato/Capoeira, a figura do homem negro, em uma das mais conhecida formas de expressão de uma cultura em combate. Em Céu sobre água, a força da mulher, do poder da criação. Em ambos, a beleza dos músculos, das curvas, da gestação, da infância, tudo em uma relação orgânica com a natureza e eternizado na granulação superoitista.

Ao mesmo tempo, a programação da Tomada Única (a partir da proposta do Festival Internacional de Cinema Super8 de Curitiba) oferece aos realizadores contemporâneos a oportunidade de produzir estes outros desbundes, de olhar o passado – com um pouco de nostalgia sim, e porque não? –, mas com um caráter de transformação, a fim de refletir um outro contexto com o frescor dos novos olhares. O resultado são imagens de crítica social e política, que abordam a nossa relação com a tecnologia, a especulação imobiliária, a religiosidade e a sua resinificação e, claro, com o corpo. A proposta é um belo convite ao desbunde, para além dos limites da programação do Festival Kinoforum.

Camila Fink

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