Mwany: a poesia do outro

mwany

por Beatriz Couto –

Capulana, em Moçambique, é um tecido utilizado de muitas maneiras. Ao mesmo tempo que uma capulana pode ser roupa, ela é toalha, é cortina, é tapete. As estampas coloridas e geométricas são marcas culturais de seu povo, e a diversidade de funções é reflexo de suas mulheres. Mwany, de Nivaldo Vasconcelos, nos apresenta Sónia e, com ela, toda a poesia da cultura moçambicana.

A geometria das capulanas é vista antes mesmo dos tecidos serem apresentados. A fotografia do documentário, com seus ângulos frontais e trabalho com linhas das construções, transforma o simples prédio em um reflexo do que está por vir. O elemento vazado da fachada se torna estampa, as escadas são listras e a protagonista marca seu lugar como parte da composição.

Sónia André veio ao Brasil estudar música e, com sua filha de seis meses na época, se mudou para Maceió. Ela saiu de Moçambique, mas Moçambique nunca saiu de Sónia. Ela canta, estende suas capulanas e ensina o idioma kimwani à filha. Na narração, conhecemos sua história por suas próprias palavras, e isso é o que torna Mwany tão especial.

Chimamanda Adichie, escritora nigeriana, em sua palestra no TED em 2009, conta como sua colega de quarto na faculdade nos Estados Unidos se surpreendeu por ela falar inglês – na Nigéria, o inglês é o idioma oficial. Em seguida, Adichie passa a explicar o “perigo da história única”: a formação de estereótipos baseados no ponto de vista ocidental do resto do mundo. Segundo ela, a África é vista como uma coisa só, com catástrofes, pobreza e ignorância.

Nivaldo Vasconcelos não conta a sua visão de Sónia, mas sim ela mesma que apresenta ao público o que é ser uma mulher moçambicana. E não se surpreenda com seu português fluente, ele também é seu idioma oficial. Sónia nos afasta de uma visão única sobre Moçambique enquanto cobre o rosto de mussiro, pasta branca que vai além da beleza estética. Para ela, é com o rosto pintado que reafirma suas origens e se diferencia dos brasileiros. Com as músicas em kimwani, o idioma de sua região, o público é transportado para o outro lado do oceano, com uma poesia única do cinema.
As mulheres moçambicanas são como as capulanas, explica Sónia. A improvisação, a diversidade, o colorido, a beleza. E enfim, com nostalgia, ela diz que voltará para Moçambique, por mais que goste do Brasil. Lá estão suas raízes, suas tradições. Lá ela é mwani.

Mwany está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Alumbramento em Super-8

gato capoeira

Transgressão, liberdade, voz, expressão, calor, erotismo, crítica, contracultura, tesão. É por este caminho que vai a intrigante seleção Cinema do Desbunde, com curadoria de Marcelo Caetano e Hilton Lacerda.

A programação faz uma retrospectiva de filmes rodados em Super-8 especialmente na década de 1970, período de rica produção nesta bitola no Brasil. Entre os selecionados, os maravilhosos Gato/Capoeira, de Mario Cravo Neto, e Céu sobre água, de José Agripino de Paula, representativos de um movimento, ou melhor, de uma geração baiana. Filmes produzidos em um contexto ditatorial e que representam, cada um à sua maneira, um retorno ao domínio dos corpos, que dançam um baile de liberdade de expressão, seja no ar ou na água. Corpos estes que representam tantos corpos reprimidos e escondidos, violentados física e moralmente por um regime de exceção.

Em Gato/Capoeira, a figura do homem negro, em uma das mais conhecida formas de expressão de uma cultura em combate. Em Céu sobre água, a força da mulher, do poder da criação. Em ambos, a beleza dos músculos, das curvas, da gestação, da infância, tudo em uma relação orgânica com a natureza e eternizado na granulação superoitista.

Ao mesmo tempo, a programação da Tomada Única (a partir da proposta do Festival Internacional de Cinema Super8 de Curitiba) oferece aos realizadores contemporâneos a oportunidade de produzir estes outros desbundes, de olhar o passado – com um pouco de nostalgia sim, e porque não? –, mas com um caráter de transformação, a fim de refletir um outro contexto com o frescor dos novos olhares. O resultado são imagens de crítica social e política, que abordam a nossa relação com a tecnologia, a especulação imobiliária, a religiosidade e a sua resinificação e, claro, com o corpo. A proposta é um belo convite ao desbunde, para além dos limites da programação do Festival Kinoforum.

Camila Fink

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Uma pérola multicolorida

O sertão nordestino faz, de alguma forma, parte de nós. Do morador que ali vive sob o sol ardente ao mais urbanoide dos brasileiros, nos sentimos um pouco parte daquela realidade. Talvez pelas diversas apropriações já feitas, seja pelas pinceladas dos Retirantes, com os Miguilins das letras, com as imagens de um sertão que vira mar e um mar que vira sertão, ou com as melodias das asas brancas.

Dia Estrelado, pérola de estreia de Nara Normande, reúne essas e outras referências em um corpo único e original. Não por seu enredo, mas pela tradução estética do tema em uma belíssima animação stop motion. O roteiro é simples: uma família em busca da sobrevivência em um lugar pobre e árido. Tão seco que uma gota d’água vira pedra. Contrastam com essa “não-vida” as cores fortes e a textura do expressionismo de Van Gogh. O céu do cenário foi inspirado na obra Noite Estrelada e reproduz as grossas e largas pinceladas do artista.

Feita com massa de modelar, bonecos de arame articulados e muita paciência — quatro anos de trabalho –, a animação dialoga com todas as artes, e leva para o cinema esse drama sem um tom piegas. A realizadora pernambucana acerta a mão na poesia e no realismo, presente no piscar de olhos dos personagens, nos detalhes dos cabelos e na única flor que ainda tenta sobreviver. Uma metáfora do sertanejo, “antes de tudo, um forte”.

A perfeição técnica dos movimentos e da fotografia, trabalhada em conjunto com as mudanças de tonalidades da massinha, produz um efeito naturalista. No entanto, a diretora também deixa espaço para o humor e o lúdico, preenchendo essas vidas secas com uma graciosidade e uma paleta de cores infinitas.

Camila Fink

Dia Estrelado está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme