Brasil, o país das mulheres que são… mulheres!

no devagar depressa dos tempos

por Mariana Moura –

O curta-metragem No devagar depressa dos tempos nos mostra uma visão sensível, contrastada e colorida da cidade de Guaribas, no Piauí, cidade-símbolo do lançamento do programa Fome Zero. Estima-se que lá cerca de 85% da população da cidade receba o benefício Bolsa Família, citado no filme.

E pelas ruas de terra da cidade sabemos que há uma mulher e uma câmera. Na frente desta vemos outras mulheres, olhando pra nós, meros espectadores, sentados no conforto de uma poltrona e privilegiando uma sessão de cinema. Há miséria, descaso e muita, mas muita esperança na vida. É dessa esperança que o filme trata.

Conhecemos as mulheres que são mulheres, simples e complexo, não?! “O que é ser mulher?”, a voz feminina pergunta, e é nesse momento que eu me sinto no calor de Guaribas, me vejo sentada naquela cadeira, ao lado dessas mulheres e tento, em vão, responder a essa pergunta, que é no mínimo ousada para aquela realidade.

Aquele rosto, maltratado pela vida e com um filho no colo, nos responde sorrindo e depois chorando, porque ser mulher é isso, um exercício diário de resistência e de persistência.

Ser mulher é achar que tem que aturar o marido bêbado a estuprando nas noites; não ter como alimentar seu filho, que quer um biscoito de R$ 2; aceitar calada todos os insultos que a família lança em sua mente, todos os dias; aprender que outra mulher não é irmã, é rival; aceitar calada ganhar 30% a menos que um homem que ocupa o mesmo cargo; não poder andar na rua de roupa curta, porque ela mesma pode provocar um estupro. É isso e tantas outras violências que as mulheres sofrem constantemente e que muitas delas aceitam.

Guaribas é São Paulo, Sorocaba, Mauá, Franco da Rocha, Jundiaí, Belo Horizonte, Mairiporã, São José dos Campos, Itajubá, Penápolis, Piracicaba… Guaribas é o Brasil, com um zoom enorme em todas as suas injustiças.

Com a câmera parada nas mulheres ou em movimento, seguindo o “Chefe”, eu me movimento por essa realidade, cruel como muitas, mas que é retratada com uma belíssima fotografia, um contraste que dói dentro da gente, um realce nos rostos, dos objetos da casa, das paredes rachadas e cada detalhe da vida daquelas pessoas. Em alguns momentos, enquanto as mulheres narram, vemos close de algumas imagens do cotidiano das mulheres, algumas cenas compostas por fotografias das pessoas e seus cotidianos, e também planos abertos da natureza de Guaribas, enfatizando a seca do lugar.

Também conheço as crianças Guaribenses, em especial, as meninas, que são pobres, mas falam de seus sonhos e que por enquanto desconstroem todo o machismo que há por trás das falas de suas mães. Uma quer ser doutora, cortar bucho, a outra quer ser e elas também querem ser mulheres, independentes e apropriadas, donas de suas próprias vidas. Parece que aquela cruel realidade já ensinou que se não estudarem, continuarão nesse legado da miséria.

Que venham mais trabalhos tão significativos como esse, que vem para ressignificar realidades, desconstruir preconceitos e fazer com que vejamos outras realidades e saiba que ainda estamos muito longe da igualdade nesse país.

No Devagar Depressa dos Tempos está na Mostra Brasil 6. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

A mulher no cinema e o cinema das mulheres

muta

por Amanda Martinez –

O cinema tem, desde sua origem, difícil relação com as mulheres. Apesar de, no âmbito dos espectadores, elas serem parte bastante representativa, isso não se reproduz nas telas. São poucas as protagonistas femininas e, quando existentes, são frequentemente submissas ao personagem masculino ou encarnam algum tipo de estereótipo machista. O fenômeno, na realidade, não é tão surpreendente: por trás dos filmes, também é mínima a presença de diretoras, não passando de 20% na grande maioria dos países nos últimos anos. Vem crescendo ultimamente, entretanto, ao menos o debate sobre a situação, e alguns projetos e editais visam fortalecer uma maior participação feminina no audiovisual. Ironicamente, uma dessas iniciativas partiu de talvez um dos segmentos menos feministas possíveis: a moda de alta costura da Miu Miu, pupila da gigante francesa Prada.

A proposta da marca é o “Contos de Mulheres”, projeto que vem patrocinando desde 2013 uma série de curtas-metragens dirigidos por mulheres. Até então nove, os filmes são disponibilizados via internet e foram exibidos juntos em algumas sessões do Festival Internacional de Curtas deste ano. Muito além do marketing, as modelos e atrizes vestem Miu Miu e encenam histórias que mergulham livremente no universo feminino, trazendo debates interessantes no palco da indústria opressora da moda.

Ao contrário de previsíveis questionamentos sobre machismo, os enredos criados por talentosas cineastas se debruçam na cultura puramente feminina. Através de roteiros soltos e em geral subjetivos, são abordados em profundidade assuntos que englobam desde roupas, vaidade e raça até algo mais emocional, sobre o papel da familia e das amizades. Como faísca para os debates, um certo jogo de opostos é identificado na maioria dos curtas, como no Muta, de Lucrecia Martel, em que o glamour e elegância de modelos esguias se mistura com seu comportamento primitivo, quase grotesco. Há também uma forte oposição estética entre a riqueza do vestuário e a pele natural e crua das personagens, como no trabalho de Giada Colagrande, O Vestido da Mulher, onde a confecção de peças de desejo se origina da nudez e do sangue. Há uma certa atemporalidade nos curtas, que por vezes tem um ar retrô, parecem pertencer a países distantes ou até são falados em línguas e sons inexistentes, algo que colabora positivamente para a criação de momentos e universos imaginários capazes de colocar de forma objetiva a indagação que cada temática trás.

Entre críticas e homenagens às questões femininas, a principal conquista dos contos é a de não invalidar e refutar tais pontos considerados em geral fúteis, como a própria moda tende a ser. As personagens são, sim, vaidosas e, sim, emotivas e, por que não, até mais objetificadas que seus vestidos-vivos, como no curta de Alice Rohrwacher. E é no ato de anti-fuga dessas abordagens que os filmes tem um efeito transformador sobre assuntos tão triviais na feminilidade, tornando-os algo artístico, enriquecedor e relevante, o rompimento da ideia de superficialidade do universo feminino em relação ao masculino.

Clique aqui e saiba mais sobre o programa Miu Miu: Contos de Mulheres

No fundo, com coração

sem coracao

por Beatriz Modenese –

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS

Um menino chamado Léo sai de sua casa na cidade em direção a uma vila de pescadores, para passar as férias na casa de seu primo, Vitinho. A rotina dos dois, que têm provavelmente entre 10 e 13 anos, reduz-se a brincar na praia, em barcos, na areia, juntamente com outros meninos. Já no início do curta, somos apresentados à personagem que o nomeia: Sem Coração. Através de uma fotografia cheia de cores e imagens submersas, vemos a menina capturando um polvo, para depois matá-lo a pancadas – logo começamos a entender o porquê do apelido.

Em dado momento, Vitinho e seus amigos encontram Sem Coração na praia, e a chamam. Somos então remetidos a um outro cenário: uma grande piscina vazia e abandonada, em frente ao mar. A narrativa, que até então seguia uma linha leve e de temas inocentes, transforma-se. Léo, Vitinho e os amigos sentam-se na borda da piscina, enquanto a menina dirige-se ao fundo dela, encostando-se numa das paredes. Um dos meninos agora desce e vai ao encontro de Sem Coração. Abre o zíper da bermuda e a menina levanta a saia; ele introduz-se nela. A inocência prévia de toda narrativa parece agora se perder. Os amigos assistem aos dois, sem qualquer aparente emoção. Léo demonstra um certo incômodo, mas que logo vemos dispersar. Sem Coração e o menino terminam. A menina, ainda sem expressão aparente no rosto, ajeita um pouco a saia. Outro amigo de Vitinho desce ao fundo da piscina, para fazer o mesmo com ela, enquanto os outros, em silêncio, continuam assistindo.

A cena desta vez dá-se em outro cenário. Resgatando o inicial perfil inocente das personagens, vemos estes brincando no mar. No meio do jogo, Léo beija rapidamente Sem Coração – o tipo de beijo que esperamos de duas pessoas na faixa de idade deles. À noite, Vitinho conversa com o primo, buscando descobrir se ele sentia-se atraído por alguma menina – novamente, o tipo de conversa que esperamos deles.

Agora, voltamos à cena da piscina: desta vez, Léo é pressionado por seu primo e os outros garotos a se encontrar com Sem Coração. Com alguma relutância, o menino desce. Inicia o ato sexual, e fala discretamente no ouvido da menina: “Queria te beijar”. Depois, ainda com a mesma discrição – com medo de ser julgado pelos que assistiam – coloca algo, que não conseguimos ver, na mão de Sem Coração. O curta encerra-se com Sem Coração olhando-se no espelho, com planos bem fechados da cicatriz que tem próxima ao coração – resultado da implantação de um marca passo. Léo encontra-se no carro, voltando para sua casa.

Sem Coração é uma grande crítica à sociedade de hoje, à vida sexual que inicia-se cada vez mais cedo, aliciando também muitas crianças ao tráfico sexual. Questionamos a maturidade da menina apelidada de Sem Coração, que consente os atos, nos perguntando se há idade ideal para o início de uma vida sexual. Se não há maturidade, podemos considerar então o coito entre a menina e os amigos de Vitinho, assim como Léo, um certo tipo de estupro?

Os meninos ao importar-se apenas com seu próprio prazer, e não com de Sem Coração, desencadeiam desta forma ações totalmente machistas. A vergonha de Léo de assumir seus sentimentos pela garota para os amigos é outro reflexo da mentalidade machista ali – e na sociedade contemporânea – contida. O fato dos meninos acreditarem (ou pelo menos, fingirem que acreditam) que tais ações não causam sentimento algum em Sem Coração, é mais um fator que contribuiu para a criação de seu apelido. Assim, somos remetidos também ao conceito muito popular nos dias atuais de “sexo descompromissado”. Até que ponto os sentimentos de um e de outro são respeitados? Ou são inexistentes, além do prazer físico?

O curta-metragem dos diretores Nara Normande e Tião, é o tipo de obra que nos faz sair da sala de cinema com um sentimento incerto: um misto de adoração, compaixão e raiva. O certo, no entanto, é a sensibilidade maestral com a qual assuntos tão sérios são lidados.

Sem Coração está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014