Da posição do espectador

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Se um filme é uma obra que só se completa no momento de sua exibição para uma audiência, o maior feito de Assassinato em Junín (Asesinato en Junín), curta argentino do diretor Andrew Sala, é fazer o espectador tomar parte na realização desse processo, de forma consciente.

Numa única tomada, o espectador presencia a morte de uma moça por dois rapazes, em meio a um descampado. Nada se sabe sobre os personagens em cena, nem tampouco suas motivações. Entendemos apenas que a menina assassinada estava a espera de um terceiro homem, com quem planejava fugir.

Aqui, Sala opta por um quadro fixo numa paisagem estática e vazia, o que permite que toda a nossa atenção se volte para a movimentação dos personagens em cena. Desse modo, o diretor obriga seu espectador a se reconhecer como tal. Quando todo nosso interesse é voltado para um único foco de ação, sem distrações, ou cortes para outros planos, a experiência que se tem é a mesma de observar a vida de outras pessoas através de uma janela. Sendo assim, o espectador se torna um invasor, alguém cuja curiosidade mórbida o obriga a assistir a vida alheia, em seu evento mais trágico.

Até então, não há nada de inovador, uma vez que já nos vimos nessa posição antes. Basta lembrar de James Stewart em Janela Indiscreta, cujo personagem de um fotógrafo interessado na vida de seus vizinhos personificava em tela a posição do espectador. A diferença é que se na produção de Hitchcock o espectador se via representado numa terceira pessoa, através do personagem de Stewart, aqui esse autorreconhecimento vem em primeira pessoa, quando assumimos a perspectiva da câmera e, dessa perspectiva, nos inserimos na ação.

O que, de fato, dá forças ao filme e o torna primoroso é o respeito do cineasta pelo tempo da ação. Ao abrir mão de artifícios de montagem, como elipses temporais e dramáticas, ou, até mesmo, de cortes para planos mais fechados, Sala assume uma proposta muito honesta de realização que, para além de seu efeito estético, se mostra preocupada em estabelecer uma relação entre o espectador e os eventos presentes em cena. A mágica do cinema não está presente aqui. Todos os truques são suprimidos e dão lugar a um discurso sobre a autenticidade do papel desempenhado pelo espectador que, acostumado a se deixar enganar e fazer-se omisso em sua observação, é, agora, obrigado a se assumir e tomar parte no processo. Até mesmo o travelling, que ocorre nos momentos finais do filme, assume-se dentro da mise-en-scène, partindo de dentro de um carro em movimento.

Com esse trabalho, Andrew Sala monta um inteligente discurso sobre o papel do público na realização de uma obra cinematográfica sem que, com isso, se torne enfadonho ou cansativo. Muito pelo contrário, ele sadicamente entretém sua audiência, despertando uma curiosidade que se revela condenável.

Matheus Rego

Assassinato em Junín está na Mostra Latino-americana 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

O sujeito e a indiferença

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Adolfo, cinquentão, robusto e mal acabado. A filha sofre doente na casa da mãe e ele está impedido de vê-la. Precisa pagar a pensão atrasada da menina, mas o curto salário que ganha como operário só chega no início do mês seguinte. A senhoria lhe cobra o aluguel de um quarto precário no centro da cidade. Ela ameaça expulsá-lo.

Eis que nos aproximamos do sujeito que, diariamente, dá com a cara no cimento. Um sofrido retrato do operário civil – um homem ordinário e desgraçado, cujo ambiente moderno deu conta de transformá-lo em adereço de sua paisagem. Não mais um indivíduo, apenas uma fonte de força e capacidade de trabalho.

Não à toa, De Cara no Cimento (De Cara al Cemento), título dessa produção chilena do estreante Ignácio Pavéz, remete ao tema de uma obra de Charles Baudelaire, intitulada A Perda da Auréola.

Em Baudelaire temos o poeta que vê sua aura artística, fundada na individualidade, se perder em meio a um lamaçal de macadame – símbolo máximo do progresso e da modernização do espaço urbano. No curta de Pavéz o macadame dá lugar ao cimento das construções onde Adolfo trabalha. É ali que nosso protagonista vê sua individualidade desaparecer dia após dia, dando lugar a prédios e muros de concreto.

A perda da individualidade aqui, porém, não passa de subtexto – algo implícito à narrativa. É o tema do curta, por outro lado, que dá conta de narrar um homem inserido num espaço urbano kafkiano, repleto de burocracias e teias sociais que o impedem de levar uma vida digna e plena. Tal fato é bem ilustrado na sequência em que Adolfo acaba de receber seu pagamento, mas uma série de eventos impede que o dinheiro chegue aos cuidados de sua filha.

De Cara no Cimento se destaca em meio a alguns de seus pares latinos principalmente pela dedicação de seu realizador no que concerne ao desenvolvimento da narrativa. Ao longo de seus 24 minutos o curta se preocupa em aproximar o espectador de seu protagonista através de cenas que refletem um sujeito desgastado pela indiferença do universo à sua volta. Tanto mais, a atuação do ótimo Daniel Antivilo fortalece essa relação de empatia gerada no público.

De grande valor social ao sugerir o cenário urbano como um espaço de descaso e indiferença, e tocante ao retratar um homem incapacitado de cuidar da própria filha, De Cara no Cimento representa uma ótima estreia de Ignácio Pávez à frente de um curta-metragem.

Matheus Rego

De Cara no Cimento está na Mostra Latino-americana 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013