Raros sonhos flutuantes

memoria da memoria

Na sessão do Cinema de Desbunde 2, em meio a vídeos contestadores e cheios de ferocidade, “Memória da Memória” de Paula Gaitán acaba roubando a cena, não apenas por ser um trabalho recente, mas por ser extremamente pessoal.

O curta é uma colagem – tanto de imagens quanto de materiais, que vão do Super-8 ao digital – feita a partir do acervo da própria diretora, que possui um vasto material coletado desde a juventude. Aqui, as ingênuas filmagens em Super-8 vão além do caráter experimental visto nas outras obras exibidas na mesma sessão. Elas resgatam também a aura dos vídeos caseiros da época, outro fator intrínseco a esse formato.

A jovem Paula explora, experimenta, observa e articula não apenas o mundo que a cerca, mas seus próprios movimentos. Aqui, como explica a cineasta, a câmera é uma extensão do corpo e o processo, portanto, é muito mais visceral e intuitivo do que racional. Eventos familiares, lugares e até mesmo o próprio corpo são registrados com olhar de um curioso estrangeiro que não consegue esconder o seu fascínio por cada detalhe daquele universo tão novo.

Em alguns momentos, a delicadeza e espontaneidade das imagens nos remete ao cinema de Naomi Kawase, que mesmo documental consegue ser onírico. A escolha da trilha sonora é impecável e atinge o seu auge ao colocar um clássico esquecido da banda Sonic Youth para acompanhar esse desfile de lembranças. Por vezes, a música dá lugar a comentários dos amigos de Gaitán que, de forma descontraída, aumentam ainda mais a sensação de intimidade que se estabelece entre público e obra.

Paula confessa que fez o filme com o único objetivo de se divertir, uma espécie de terapia para se libertar das pressões que seus projetos atuais estavam lhe causando e fazer esse cinema mais natural, mais inerente, que o cineasta faz o tempo todo. “Nós estamos sempre registrando”, diz a diretora. Esse frescor no modo de se fazer cinema acaba sendo terapêutico também para o espectador, que embarca na narrativa difusa e sentimental para no fim da jornada encontrar reflexões muito acuradas. Nas memórias de Paula existem lugares comuns à memória de cada um de nós, que, cúmplices passivos, passamos a completar as lacunas com nossas próprias lembranças. A memória da memória.

Assistir ao curta de Gaitán é como revisitar um sonho belo que você não lembrava de ter tido. É ao mesmo tempo surpreendente e familiar, como a relação que aquela adolescente tinha com sua câmera Super-8. O filme se encerra com a imagem de Paula atualmente, na sua plácida maturidade, observando o horizonte, como que estabelecendo um diálogo com a jovem Paula, do outro lado, mas ainda parte dela. E naquele frame reside a sensação de que as duas finalizam um projeto secreto, mesmo que inconsciente, que se iniciou tempos atrás e se concluiu no momento perfeito.

Henrique Rodrigues Marques

Memória da Memória está na Mostra Cinema do Desbunde 2. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

Uma quase morte

memento mori

Memento Mori, avisa o título. “Lembre-se da morte”, é o que quer dizer. A expressão latina, uma das divisas da literatura barroca, ecoa nessa animação coproduzida entre Bolívia e Bélgica, mantendo algumas conexões com o momento histórico em que a arte primou por lidar com fenômenos contraditórios.

Quem esperaria flertar com a própria extinção por meio da dança? Intercalar situações monocromáticas com banhos lisérgicos da cor? Sim, estamos diante de uma caixa de surpresas. Poderia predominar o tom sombrio, de escritores românticos ou expressionistas, que de fato existe aqui. Mas nos vemos diante de uma forma de expressão mais mística do que necessariamente fantasmagórica.

A menina (que guarda em si uma imagem infantil de certa forma localizada entre o século XIX e a primeira metade do XX, imagem que tem como maior exemplo, talvez, a Alice de Lewis Carroll) que executa a passagem “transcendental’ em que pode-se, em um momento acreditar estar num sonho, em outro vendo um funeral é recepcionada por uma entidade mágica, com uma aparência exótica, “étnica”, algo africana. Uma dança, em que se libertam corpos e almas.

Coreografia de movimentos que se interrompem e sobrepõem, num fluxo capaz de evocar sim algo muito caro ao imaginário cultural latino-americano: os rituais xamânicos do(s) mundo(s) possivelmente existente(s) no limiar entre matéria e abstração.

Bad trip? Vez por outra é evocada, mas não permanece. Experiência de quase morte, que eventualmente se conclui? Hipótese a se considerar, mas também reducionista. Algo que chama a morte pra exercitar a ideia de ressurreição. Lembrar da morte para viver algo de onírico. Afinal, Memento Mori.

Rafael Marcelino

Memento Mori está na Mostra Latino-americana 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Terreno onírico

o castelo

O Castelo, do premiado diretor Rodrigo Grota, com certeza será um dos curtas mais comentados do festival pela qualidade e consistência do trabalho.

O curta flerta com o universo fantástico e de terror. Cinco amigos vão passar o dia em uma floresta, em tempo e local não definidos. O mais tímido da turma, o deslocado Rafael, ao sair de um mergulho na cachoeira se vê sozinho no local e situações estranhas começam a acontecer quando ele encontra uma casa (na verdade, um castelo) abandonado.

Em um primeiro momento pode parecer uma aproximação com A Bruxa de Blair pelos mistérios de um local inóspito. Entretanto o curta flerta mesmo é com o universo fantástico e simbólico de Lars von Trier como em Anticristo, ao apresentar elementos como a natureza como força primordial, mística, cheia de segredos que não devem ser desvendados – tal como Rafael diz em sua única fala do filme, “é um segredo”.

E principalmente com O Iluminado, de Stanley Kubrick. A cena inicial em um plano aberto com pinheiros muito altos em fileira tendo o personagem posicionado ao centro remete ao longa do diretor norte-americano pela cor do céu, pela sensação de solidão e pelo silêncio imposto. A casa/castelo assemelha-se ao hotel de Jack Torrence no estilo arquitetônico de montanhas. Em duas cenas, Rafael mira a imensa fotografia daquele espaço em preto e branco. Um tempo congelado, como a própria casa, abandonada de vida terrena, mas com uma força estranha como em O Iluminado. Os cortes secos na imagem como acontece no longa, blackouts do personagem em sonho, transição para situações de terror. Em uma das cenas, o personagem vê seu amigo morto no chão de um dos cômodos, uma cena filmada em vermelho intenso, um sangue que remete ao sangue que inunda o corredor do hotel de Kubrick.

O personagem Rafael, quieto, é um ótimo observador e ouvinte, está a toda hora com seu gravador vintage e sua câmera fotográfica. Não para menos, os trabalhos de Rodrigo Grota possuem notadamente uma preocupação com a fotografia e o som, fazendo deles quase personagens de suas histórias. Nesse curta o som tem destaque preponderante ao dar o tom da história, ao revelar sons não cotidianos, dar voz ao mistério. A fotografia também impressiona com cores vibrantes lavadas, o que cria uma atmosfera de falsa leveza, onírica.

Esteticamente belo e perturbadoramente inquietante, O Castelo é um excelente trabalho de experimentação narrativa e visual.

Malu Andrade

O Castelo está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013