Breves anotações do do curta brasileiro contemporâneo

algum lugar no recreio

Ricardo Corsetti –

Ao assistir o máximo possível de curtas apresentados na Mostra Brasil, percebi uma tendência dominante nessa categoria: a do experimentalismo vazio tentando se passar por “cinema de autor”. Destaco nessa categoria, curtas como Salomão (2013), dirigido por Alexandre Wahrhaftig e Miguel Antunes Ramos, e Até o Céu Leva Mais ou Menos 15 Minutos (2013), dirigido por Camila Battistetti.

No primeiro caso, o que vemos não é nada além de uma montagem feita a partir de imagens de operários de construção trabalhando, intercaladas por reproduções gráficas do mitológico Templo de Salomão ao qual a bíblia cristã faz referências. Ora, acho relevante abordar por meio de um curta documental a polêmica construção do faraônico Templo de Salomão empreendida pela Igreja Universal do Reino de Deus, uma instituição marcada pela exploração da boa fé de seus fiéis e sempre associada a formas “nebulosas” de enriquecimento. No entanto, ao invés de uma pesquisa séria ilustrada por meio de entrevistas e fatos esclarecedores acerca do tema, o que vemos em Salomão, não é nada além de uma simples e breve montagem de imagens que, teoricamente, deveriam permitir a livre associação por parte dos espectadores em relação à construção do templo real, mas que, na minha modesta opinião, não ultrapassa a barreira que separa o experimentalismo consciente e verdadeiramente transgressor das normas impostas pela narrativa clássica, do mero exibicionismo estético disfarçado de autoralidade.

Já em Até o céu leva mais ou menos 15 minutos, vejo apenas um bom trabalho de montagem/edição que visa encurtar e, ao mesmo tempo, tornar interessante o fato registrado, por meio de uma câmera estática: crianças berrando e chorando durante um passeio de carro. Confesso não entender mesmo o motivo deste curta ter feito, aparentemente, tanto sucesso entre o público participante do festival. Talvez isso se deva a evidente exploração da “fofura” do objeto filmado; o que, na minha modesta opinião, é mesmo muito pouco para justificar o êxito deste trabalho em termos autorais.

Por outro lado, destaco entre os curtas brasileiros que vi (embora tenham sido exibidos na mostra Panorama Paulista), Algum Lugar no Recreio (2014) [foto], dirigido por Caroline Fioratti e O que Fica (2014), dirigido por Daniella Saba. No primeiro filme, a trama e a estrutura narrativa são, sim, convencionais. Porém, vemos um roteiro bem escrito, com diversas tramas paralelas bem amarradas e também um ótimo trabalho de direção, a começar pelo belíssimo plano-sequência utilizado logo no início do curta, visando permitir a condução da ação aos próprios personagens em cena. O universo aqui retratado (problemas da adolescência) pode até não apresentar novidades, mas é belamente apresentado em termos técnicos.

Já em O que Fica, sei que muitos questionarão o fato de o roteiro ter sido escrito em francês, o que gera a obtenção de um humor tipicamente europeu. No entanto, foi justamente a sutileza do humor obtido pela roteirista e diretora do filme o que me cativou ao assistí-lo. Aqui também a estrutura narrativa é convencional o que, porém, em nada prejudica o filme, devido ao ótimo trabalho de direção, caracterizado por perfeito domínio do ritmo e consequente desenvolvimento da trama.

Por fim, faço questão de dizer que na condição estudante de cinema e aspirante a diretor, sou absolutamente a favor do experimentalismo e do autoralismo no cinema. Sobretudo no universo dos curtas-metragens que sempre renderam campo fértil à realização de tais práticas. Apenas faço ressalvas quanto ao experimentalismo vazio em termos de conteúdo que, muitas vezes, ao ser tão frequentamente praticado, acaba criando a ilusão de que um filme (ou curta, no caso) não pode ser convencional e muito bom ao mesmo tempo.

O muro do arrebatamento

salomao

por Ivan Ribeiro –

Vivemos em uma época em que grupos religiosos, sejam eles ligados a qualquer crença, têm sido arquitetos de ações diversas e mudanças relevantes para a sociedade, ao redor do mundo, de um modo geral. Entenda “relevantes para a sociedade” por diversos aspectos. Proporcionando ajuda humanitária a populações necessitadas e devastadas pela miséria ou proporcionando guerras intermináveis. Propagando o amor ao próximo, a compreensão e, no mínimo, a tolerância ou disseminando preconceitos e ódio. Discutindo, junto à sociedade civil, temas de interesse público como o aborto, por exemplo, ou procurando impor seus preceitos e regras através de alianças e “cartadas” políticas.

No Brasil, onde a constituição declara que o Estado é laico (neutro ou imparcial no campo religioso, não apoiando ou discriminando nenhuma religião e não permitindo que nenhuma delas interfira em decisões sociopolíticas), temos visto, incoerentemente, o crescimento da influência cristã, sobretudo dos evangélicos, sobre as práticas políticas e ações do governo. Isso fica evidente em determinadas situações como, por exemplo, na inauguração do Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no bairro do Brás, na cidade de São Paulo, ocorrida oficialmente em 31 de julho de 2014, cerimônia à qual estiveram presentes diversos políticos brasileiros de alta cúpula, incluindo o prefeito da cidade, o governador do estado e a presidenta da nação. Presenças de importância estratégica no evento em ano de eleições.

Os líderes evangélicos e suas bancadas políticas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, têm cada vez mais demonstrado seu poder e influência em assuntos vitais de interesse comum da sociedade deste país. A construção do já citado Templo de Salomão, além de ser obra de intesse dos fieis da IURD por se tratar de mais um local de orações e prática religiosa diária, foi também vista pela mídia e diversos segmentos da sociedade como uma demonstração física e visual deste poder.

E é sobre o surgimento desse “colosso arquitetônico” em plena região central da maior cidade do país que trata o preciso, sucinto e, ao mesmo tempo, assustadoramente poético, Salomão, curta-metragem dos diretores Miguel Antunes Ramos e Alexandre Wahrhaftig, também responsáveis pelo roteiro, produção, fotografia e edição do filme.

É por meio de imagens dos tapumes que cercam as obras do imenso templo que os diretores nos apresentam a monumentalidade do que está para surgir. Os tapumes são decorados com plácidas ilustrações do prédio que terá suas instalações erigidas no local. Gigantescas colunas, paredes imponentes de pedra impenetrável, paisagismo e arquitetura de deixar qualquer crente ou ateu sem fôlego e de pêlos eriçados, por onde, nas mesmas imagens, passeiam pessoas felizes, sorrindo, casais de mãos dadas com seus filhos, fieis tão pequenos perplexos diante da grandeza da obra de Deus (e dos homens), ofuscados não pelo sol que os acolhe, mas pelo matiz dourado do templo que acolhe e ofusca ainda mais.

Contrastando com os paineis que protegem a construção e a enchem de mistério e promessas de dádivas sem fim estão os transeuntes que passam pelo bairro, em frente aos tapumes. Pessoas comuns. Gente que vai de lá para cá atrás de seus afazeres diários, de seus empregos, preocupações cotidianas, vidas que seguem enquanto aguardam (ou não) a conclusão das obras atrás do muro. Gente que continua existindo e sobrevivendo independentemente do que é erguido no local.

Da construção do templo só ouvimos os sons de máquinas, tratores, escavadeiras, martelos, serras, ferramentas tão humanas que darão forma a obra tão divina. A brilhante direção de som do filme deixa no imaginário do espectador a relidade por trás daquelas tapadeiras que exibem o que foi idealizado por seus engenheiros e arquitetos. Mesclada ao som dos trabalhadores, começa a crescer, em off, a voz de um pastor que prega maravilhas. O pastor, possivelmente repleto da inspiração do Espírito Santo, se empolga cada vez mais, num ritmo e intensidade crescentes, exaltando-se e exaltando o poder (de sua fé) de Deus:

“Depois da tempestade vem a bonança”. “É preciso existir guerra para que haja vitória”.

Os tapumes já não existem mais. Andaimes imensos, intrínsecas teias enormes de barras de ferro, emaranhados de madeira, pregos e metal santos surgem na tela diante dos olhos extasiados ou indignados do espectador da sala de cinema.

O Templo de Salomão vai surgir, o templo está de pé, Aleluia!

Enquanto isso, as pessoas na rua apenas passam. E param. E seguem.

E Salomão, sem fazer qualquer crítica contrária nem apologia à construção do Templo ou à IURD e seus representantes, deixa para o espectador a responsabilidade da reflexão. O que é necessidade real e o que é dispensável? O que é fundamentalismo e o que é fé? O que é realidade e o que é utopia? O que está à vista o que se faz oculto? O que é caridade e o que é ostentação? O que é divino e o que é humano?

Mas uma certeza fica. Este deus tem uma nova casa na Torre de Babel que é esta cidade sulamericana com nome de santo. Paraíso para uns, inferno para outros tantos.

Hosana nas alturas!!!!!

Salomão está na mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014