Sophia: o mundo dela

sophia

por Letícia Fudissaku –

Antes mesmo de começar, as palavras do diretor Kennel Rogis sobre o curta-metragem Sophia já me chamaram a atenção: um sensível retrato da relação entre mãe e filha. Tenho um interesse especial por enredos que tem como tema central os relacionamentos. No início, como a aspirante a roteirista que sou, me incomodei com a falta de diálogos – mal sabia eu o quanto isso acresce à história… Extremamente sensível, o diretor definiu bem.

Gosto particularmente do aspecto cíclico da narrativa: todas as pequenas cenas abstratas que pareciam unicamente satisfazer às preferências estilísticas do diretor fazem todo o sentido ao final da trama, e o filme inteiro é “rebobinado” na cabeça do espectador. A descoberta da surdez da filha, na perspectiva do espectador, dá novos significados a diversas cenas, tornando-as até mais poéticas – como quando a filha traz o rádio para que a mãe dance com ela. O silêncio no ambiente familiar, que de início parecia indicar um distanciamento – ou até uma falta de afinidade – entre mãe e filha é, afinal, uma mera circunstância.

A representação em cores distintas para as duas personagens – amarelo e laranja para a mãe e azul para a filha – e o cuidado especial com os diferentes sons da rotina destas foram os elementos técnicos que mais me chamaram a atenção. Exemplo disso é a cena em que a mãe nada em um rio, afundando a cabeça e voltando à superfície. Debaixo d’água, os sons são amenizados ou até eliminados. Mergulhando nas águas azuis, é como se a mãe tentasse reproduzir a percepção de mundo da filha, que não escuta. Essa tentativa da mãe também pode ser notada em outras cenas, nas quais ela usa protetores de ouvido fora do ambiente de trabalho barulhento.

Pelos motivos indicados acima, creio que a experiência de assistir Sophia seja por si só bastante sensorial, com uma trilha que ambienta o espectador de maneira intensa. Justamente por isso, é uma surpresa que, mais ao final, uma música cantada faça parte da trilha – a delicada Meu Amor É Teu, de Marcelo Camelo. Sua melodia combina perfeitamente com as cenas de companheirismo e afeto entre mãe e filha que encerram o curta. Sophia foi o destaque da Mostra Brasil 9 e reafirma a máxima de que existem inúmeras formas de demonstrar amor.

Sophia está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A identidade no outro

menino peixe

Em Menino Peixe a diretora Eva Randolph retoma alguns pontos já trabalhados em seu curta Dez Elefantes (2008): família comandada pela figura matriarcal, relação de cumplicidade e embate entre irmãos.

No novo curta as figuras femininas são centrais, nos papéis da mãe grávida e da filha pequena. O homem está sempre por vir, seja o bebê que a mãe espera e o pai trabalhador em uma plataforma em algum lugar do oceano. A aguá, aliás, possui importância capital na narrativa como aquela que acolhe as figuras masculinas e as mantém longe do convívio familiar – o filho dentro da barriga, o homem no trabalho rodeado pelo mar.

No início do curta, a mãe conta para a filha que no princípio todos éramos peixe, até que se tornaram como são hoje em dia, o bebê em seu ventre é um peixe que nada em seu líquido. É o bastante para que a menina comece a divagar sobre a identidade do novo membro da família, o rosto daquele que vem dividir com ela as atenções da figura protetora e que pela proximidade do parto recebe cada vez mais atenção.

Novamente o mar aparece como figura preponderante. Em seus sonhos a menina se imagina na praia à noite, no breu, com o mar revolto, e seu irmão, da mesma idade que ela, se revela um menino-peixe, cheio de escamas. A relação a princípio é tão tensa quanto o mar, não se entendem, brigam. A diretora, como em seu primeiro curta, se vale de maneira muito feliz do artifício do esconde-esconde, brincadeira favorita infantil, para revelar o jogo de achar no outro sua identidade, de encontrar eco. A brincadeira no escuro, no espaço violento de ondas quebrando vai se tornando mais intensa ao longo da narrativa, conforme o parto vai se aproximando cada vez mais, assim como o ciúmes da menina em relação à mãe.

Eva consegue de maneira satisfatória criar um paralelo simbólico entre vida e a água, através do mar, bravio, misterioso, forte, imenso, como potência de criação e nascimento e através das cenas nas quais a filha aparece nadando na água represada e calma das piscinas, recurso artificial que não possui a mesma força do oceano, um simulacro apenas, como desejo da menina em retornar ao útero materno.

A cena final amarra de maneira muito interessante este jogo de procurar a si mesmo, a construção de identidade no outro. Após a ida da mãe abruptamente para o hospital e a chegada atrasada do pai para o parto corta para a mãe dormindo calmamente numa cama na praia onde os irmãos se encontram à noite, o mar furioso, mas a figura materna está lá calma e adormecida, os dois sempre no breu, sempre apenas contornos. Possuem lanternas, o garoto aponta sua lanterna para o rosto da irmã, ela se ilumina e aparece finalmente na escuridão. Ela sorri.

Malu Andrade

Menino Peixe está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013