A arte de reproduzir

A mostra Cinema em Curso não rolou na última edição do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, mas volta, reestruturada, para a 23ª edição. Curtas de diversos cursos de audiovisual de universidades paulistas vão rolar durante a semana, e quem acaba chamando a atenção são os produzidos na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

O curso de audiovisual da ECA é famoso por muitos motivos. Um deles são os vídeos que começaram a rolar na internet mostrando um tipo de exercício realizado por todos alunos de primeiro ano. Os vídeos consistem em  reproduções de cenas escolhidas de filmes da preferência dos grupos. Em muitos deles, é espantosa a qualidade da reprodução, e é exatamente essa habilidade em reproduzir filmes marcantes que chama a atenção em O Fim do Filme, de André Dib.

A cena inicial mostra o que seria o final de um típico western, em que os enquadramentos são uma reprodução muito fiel de Era uma Vez no Oeste (1968), clássico do diretor italiano Sergio Leone. No momento climático, embalados por uma música dramática e um tiro, somos levados até onde realmente a história vai se passar. Em uma videolocadora.

João Lucas, personagem principal, é um dos funcionários dessa videolocadora e tem a infeliz mania de revelar o fim dos filmes para os clientes da loja. Isso lhe causa muitos problemas, até ele encontrar uma garota que gosta disso, pois ela sempre aluga o mesmo filme em busca do significado aparentemente inexistente do final. Temos aí a dica para um romance que pede por um final feliz.

Eu também já estou contando o final do filme para vocês; é um final feliz. Mas, como diz a personagem da atriz Gabriela Cerqueira, a mocinha, às vezes o mais importante é o processo. No caso, é realmente isso. A história se passa de uma maneira que não difere em nada de tantos outros romances que vemos por aí, mas, por ser bem feita, é gostosa de ver.

Como estudantes de cinema, os realizadores estão de parabéns por mostrarem um trabalho muito bem finalizado, profissional. Como realizadores, mostraram que são cinéfilos, agregando elementos de outros filmes para compor o deles. Histórias como essas já deram muito certo; é esperar para ver.

Gabriel Ribeiro

O Fim do Filme está no Cinema em Curso 2 e também no Panorama Paulista. Clique aqui e veja a programação do filme

Aqui, o jornal da edição 2011

critica curta 2011

Na edição de 2011, os participantes da oficina Crítica Curta foram convidados a redigir textos críticos sobre os filmes apresentados no Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. O resultado foi a publicação de um tabloide, distribuído ao final do evento. Para baixar o tabloide clique aqui.

Ao todo 23 alunos de universidades, faculdades e escolas livres de audiovisual do estado de São Paulo escreveram sobre os curtas exibidos na Mostra Brasil, Panorama Paulista, Mostra Latino-americana, Oficinas Kinoforum e Mostra KinoOikos. Para baixar o tabloide, clique aqui.

As páginas seguintes trazem 51 textos (editados a partir de um total de 112) sobre 51 filmes exibidos pelo Curta Kinoforum. Seus autores, como a leitura mais atenta revela, têm ideias muito distintas em relação ao cinema e, de maneira mais ampla, ao audiovisual contemporâneo. Essa diversidade ajuda a compreender as principais tendências de pensamento hoje em circulação nas escolas paulistas de audiovisual e, talvez, alguns dos valores políticos e estéticos mais caros à geração que chega neste momento ao cenário da produção.

Boa leitura!

(Sergio Rizzo)

Armando o jogo

Primeiras imagens. Um homem no banheiro. Cocaína. Uma arma na mão. Olhar e gestos tensos. Cortes rápidos. Um senhor calvo compra uma passagem na rodoviária. Três mulheres na plataforma da rodoviária, duas adolescentes e uma mais madura. O homem do banheiro as olha de longe. A câmera toma a subjetiva e passeia longamente pelo corpo das mulheres. O olhar do homem mostra raiva e desejo. O homem calvo chega, cumprimenta-as. São sua família. Ele entra no ônibus. Porta do ônibus fechando, preparando-se para partir, mas é impedida pelo homem do banheiro, que entra apressado e senta ao lado do homem calvo.

Esses passos iniciais parecem o prenúncio de uma tragédia, e assim o diretor Marcos Fábio Katudjian habilmente conduz sua narrativa. Tomando como base a refilmagem de “Cabo do Medo” por Martin Scorsese (1991), a progressão do embate entre o ex-detento Jonas e o promotor Dr. Mascarenhas, que o mandou para a cadeia, chega a um nível quase insuportável, ancorado na força dos diálogos e atuações precisas dos atores.

Quando tudo parece que vai para o desfecho trágico ou que iremos mais fundo no poço, a percepção de Jonas se volta para alguém entrando no ônibus (seria a polícia?). Sua expressão denota surpresa e aí vemos quem está entrando… Só nesse momento lembra-se o nome do curta: “Rivellino”. E é ele mesmo que surge. Os personagens, antes envoltos no clima de tensão, esquecem-se de tudo e mostram-se mais do que fãs, pessoas que tiveram suas vidas marcadas pelas suas atuações. Outro clima instala-se no curta; toda aquela tensão some como mágica e assume tons cômicos e sentimentais de homenagens ao jogador.

É um pequeno milagre conduzir duas partes tão díspares de forma tão completa e com uma transição sem traumas entre elas, mantendo a coerência e a facilidade de comunicação com o público, sem deixar de surpreendê-lo. Se isso é difícil num longa-metragem, imagine condensado em 16 minutos. Um filme completo em sua proposta e com potencial para atingir em cheio as pessoas, muito além dos amantes de futebol. (Carlos Alberto Farias)

“Rivellino” está no Panorama Paulista 4.

O campo da imaginação, sem medo

“Fábula das 3 Avós” explora, basicamente, o mundo da imaginação. Uma menina de 10 anos acaba de perder sua avó e recebe a visita de um “fado”, que pretende levá-la a uma visita pelo norte, pelo sul e pelo oeste, fazendo com que a menina conheça suas 3 avós imaginárias. Começando pelo elenco, a menina e o fado estão muito bem no filme. O texto parece se encaixar na boca dos atores e a química entre eles é única.

Outro ponto marcante é a exploração desse campo imaginário. A partir do momento em que o filme assume esse lado fantástico, ele vai até o fim, não retornando ao real, apenas mesclando cenários e figurinos reais e não reais. A direção de arte e a fotografia constroem esse ambiente colorido e instigante da imaginação da menina, que sofre com a aparição e o desaparecimento repentino do “fado”, agora denominado Ora Ora Ora.

A narrativa, incluída em uma trilha sonora simplista e também minimalista, segue uma linha linear com a menina conhecendo as estranhas avós. Acredito que o grande mérito do filme é explorar esse lado não-real em um curta-metragem, e principalmente não deixar a narrativa “em cima do muro”, quando a história não caminha nem cá, nem lá e se recusa a tomar um partido.

Feito para todas as idades, o filme, sem rodeios, nos leva a uma viagem extraordinária dentro da cabeça de uma jovem, com muitos sonhos e muitos medos. Palmas para o cinema do não-real. (Renan Lima)

“Fábula das 3 Avós” está no Panorama Paulista 3.

Sonhos de liberdade

A primeira coisa a levar-se em conta sobre “Aguasala”, dirigido por Cristiane Arenas, é a circunstância como ele foi captado. Filmado dentro da Fundação Casa em cinco dias, com tensão crescente e irritabilidade das internas conforme os dias passavam e sua rotina era modificada pela equipe de filmagem. Como disse a diretora na conversa após a exibição, “fomos expelidos de lá”. Isso com certeza contribuiu para alguns desacertos, mas as qualidades narrativas sobressaem.

O filme conta a história de Ana, menor presa que descobre sua gravidez dentro da instituição. Os planos de corredores, salas de aula e grades salientam a semelhança do local com o ambiente encontrado em escolas públicas (os uniformes das meninas também). Essa semelhança possibilita um trabalho com essa ambiguidade e gradativamente descobrimos onde ela realmente está. A presença constante do namorado também embaralha as coisas.

Nessa perspectiva, a cena mais problemática é a da discussão entre Ana e o rapaz. A ação entrecortada de planos diferentes com cortes secos, mantendo a linearidade, parece solução para problemas do material (talvez de atuação, interferência externa ou captação), tirando a força de um momento central. Infelizmente, pois justamente a edição sobressai-se no restante do curta, seja a cena inicial na qual o tempo e nitidez são alterados ou no corte para a cena idílica final que, junto com a música da banda colombiana Bomba Estéreo, produz um belo efeito e desfecho.

Um filme com arestas, mas que possui qualidades suficientes para causar empatia e interesse pela história e seus personagens. (Carlos Alberto Farias)

“Aguasala” está no Panorama  Paulista 2.

 

Sutileza narrativa do cotidiano

Um retrato do cotidiano e da espera: esse seria um ótimo resumo para “Carol”, de Francisco Guarnieri. O filme, baseado em personagens reais, conta a história de Lucas, um menino de 13 anos que aguarda a chegada de Carol, sua irmã mais velha. A narrativa, completamente minimalista, mostra a espera de Lucas, enquanto seu pai dorme até tarde. Ele se ocupa de atividades comuns a uma criança de sua idade: joga videogame, atende o telefone e anota recados, vai ao supermercado e compra mantimentos para casa. Sozinho, ele se ocupa enquanto espera a chegada da irmã.

O filme é econômico no número de planos e torna a espera ainda mais longa. A se destacar, o plano fixo sem correção, em que Lucas joga tênis no videogame. Sua movimentação dentro do quadro é muito semelhante ao do próprio jogador de tênis e por isso, muitas vezes, ele fica fora de quadro, por manter a liberdade do jogo. Além disso, a relação que se estabelece entre Lucas e seu pai durante a espera por Carol é muito rica; eles se mostram muito próximos e também demonstram enorme carinho pela irmã/filha, mencionada e lembrada o tempo todo. O filme tem esse poder de estender o tempo e deixar o espectador ansioso pela chegada da menina. E quando ela finalmente chega, o filme termina, ou seja, o fim da espera é também o fim da narrativa. Nada mais precisa ser dito. (Renan Lima)

“Carol” está no Panorama Paulista 3.