DEMÔNIOS DE VIRGÍNIA

Os vermes da alma

Baseado na obra de Augusto dos Anjos e imageticamente impregnado por esse autor, a produção gaúcha “Demônios de Virgínia”, dirigida por Gabriela Richter Lamas e exibida na Mostra Brasil 6, é antes de tudo visceral.

Como na obra do autor, estamos falando de uma protagonista Virgínia (interpretada por Martha Grill) que se encontra no limite da existência. Atriz, transita entre a superficialidade e o vazio dos anúncios publicitários, onde o sorriso é mais um prenúncio de venda, e de uma sociedade calçada no vazio de um consumo fácil, e de seus sonhos como artista.

O sorriso de propaganda de óculos revela mais do que suspeita: nos mostra uma existência em que nada dialoga com a nossa realidade interna, estampa de nosso desespero. Para mergulhar em sua essência, a protagonista se refugia no teatro, onde faz espetáculos que tem pouca ou nenhuma empatia e compreensão do público.

Nessa falta de diálogo entre “o que eu verdadeiramente sou” e o “como vocês me enxergam”, “Demônios de Virgínia” caminha por vias carregadas de solidão e de desilusões. Como na obra de Augusto dos Anjos, exemplificada pelo poema “O Lázaro da Pátria”, é o corpo da atriz-personagem que sangra as chagas de um renascer para um destino desconhecido, e a dor que disso oriunda é só nossa, indiferente à plateia/mundo que nos circunda.

“Filho podre de antigos Goitacases,

Em qualquer parte onde a cabeça ponha,

Deixa circunferências de peçonha,

Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes

Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,

Sente no tórax a pressão medonha

Do bruto embate férreo das tenazes

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos

A hedionda elefantíase dos dedos…

Há um cansaço no Cosmos… Anoitece.

Riem as meretrizes no Cassino,

E o Lázaro caminha em seu destino

Para um fim que ele mesmo desconhece!”

O corpo da atriz é devassado por uma câmera que escolhe planos incômodos, invasivos. As angulações causam estranhamento. O inesperado também está presente na ação, por vezes lembrando a imprevisibilidade de um documentário.

De maneira análoga ao poeta Augusto dos Anjos em sua obra “Psicologia de um Vencido”, a câmera busca dissecar a persona/personagem e mostrar os “vermes da alma”, o feio, o anti-herói, fazendo um registro da ruína da alma da protagonista.

É um filme excelente, mas que explode em potência pela força da atriz Martha Grill. Em um importante bate-papo, após a sessão, a diretora revelou que ela está em um concurso de baristas, e que havia desistido da profissão de atriz.

Lembro-me da atriz Renée Jeanne Falconetti, intérprete de Joana D’arc no impactante “A Paixão de Joana D’arc”, de Carl Theodor Dreyer. A atriz impressionou a equipe técnica de tal maneira que era chamada pelo nome da personagem o tempo todo no set. Após o filme, contudo, a atriz desistiu de atuar. Torço para que Martha Grill, mesmo lançada na fogueira que toda carreira artística nos coloca, possa ressurgir das chamas em estado de graça.

(Adriana Gaeta Braga)

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