Dos vazios da Pauliceia

E

por Thiago Zygband –

São Paulo movimenta-se em tédio. Mitose da compulsão e da rotina, carros, monocromia, prédios, gentrificação e a expansão irracional de certa lógica perversa. Diz-se que a cidade não pára, a cidade só cresce. Serão os deuses testemunhas? Se parece inelutável o destino, ao menos fazemos cinema.

E, dos diretores Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos, é uma interessante perspectiva sobre tais fatos. O documentário vai ao cerne da autorreplicação e do aparente nonsense da metrópole bandeirante ao analisar uma de suas mais gritantes manifestações: os estacionamentos. Crescem em vertigem esses espaços silenciosos, mas que não surgem do nada – os depoimentos colhidos nos lembram que aqueles lugares também têm história e afetos: um era (saudoso) cinema-de-bairro, outro a casa do papai, um terceiro a da vovó, um quarto, um quinto…

O documentário assume ares de ficção científica. São estranhas, as máquinas. Abstratas, têm apelo estético e parecem existir por si próprias – de fato, não há imagem humana nítida no filme. O movimento está restrito aos guindastes, carros, catracas e, nos prédios das classes abastadas, até aos próprios estacionamentos-elevadores. “Privacidade, exclusividade, […] morar bem”, depõe uma moradora. Podemos ver suas mãos que saem de dentro de um enorme carro: o único pedaço de carne do curta.

O proprietário de estacionamento nos confessa: “Investimento pequeno, rentabilidade pequena também […] não é um grande negócio”. Nesse caso, sua serventia é apenas a ocupação do espaço; logo erguerá um prédio, grande negócio, por suposto. Assim rumamos aos céus. Eram sete pequenas casas, logo serão a concretização de uma maquete pomposa em regalias contemporâneas – elevador de automóveis, parque privativo, vigilância 24 horas e outras liberdades do espaço privado, sonhos em metros quadrados que o dinheiro pode comprar.

E são através das fotografias de satélites retiradas do Google que recordamos como eram as tais falecidas casas. Note-se: especulação imobiliária nas ruas, informação-mercadoria no mundo virtual. Também são privadas as imagens do espaço público da cidade, e por ela só se flana enquanto potencial consumidor dos anúncios que pululam no canto da tela. Logo se atualizarão as fotografias, e aquilo será somente o eterno-presente da Internet.

Em Pequena História da Fotografia, Walter Benjamin, sobre o trabalho do fotógrafo Atget na Paris do século XIX, indica que aquelas imagens privadas de corpos humanos, nas quais captou construções solitárias e indiferentes típicas da vida moderna, parecem esconder a evidência de um crime. Da mesma forma, a São Paulo esvaziada de E é como casa que não encontrou moradores, uma cidade que parece prescindir o mundo dos humanos. Onírica, surreal, espetáculo da ausência e do vazio, infinitamente cinza e melancólica. E tão estranhamente suspeita…

E está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

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