Um boneco desanimado

edificio tatuape mahal

por Samuel Mariani –

A vida de um boneco de maquetes pode ser muito interessante, não somente por conta da originalidade das suas locações, mas também pela construção de um personagem “estrangeiro” neste mesmo mundo.

Acompanhando o boneco argentino Javier Juarez Garcia pelos stands de venda de apartamentos em São Paulo, é interessante imaginar o que está sendo vendido se não um personagem, um estilo de vida, uma história, um curta-metragem.

Bem assimilado dentro de um arco narrativo, Edifício Tatuapé Mahal se justifica pelo seu conceito, assim como cria um universo narrativo que está sempre se legitimando dentro do contexto do filme. Elementos de quadro e ângulos de câmera temáticos tratam elegantemente da “vida de merda” do boneco Javier dentro de um universo no qual o próprio processo de animação é muito meticuloso: ele estuda o tipo de movimento (ou ausência do mesmo) desses mesmos bonecos, compondo um ritmo bem específico.

A sincronia desses elementos, além de não deixar de trabalhar (e expandir) a narrativa no primeiro plano, trabalha seu tempo para que muitos dos payoffs do roteiro sejam resolvidos com humor.

No final das contas, o curta de Carolina Markowics e Fernanda Salloum dedica-se a uma história de bonecos com motivações bem humanas, e sua característica metafísica e justificativas bem ao estilo Starevich (Cameraman’s Revenge, 1912) geram uma animação brasileira de linguagem universal e bem sucedida.

Edifício Tatuapé Mahal está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Dos vazios da Pauliceia

E

por Thiago Zygband –

São Paulo movimenta-se em tédio. Mitose da compulsão e da rotina, carros, monocromia, prédios, gentrificação e a expansão irracional de certa lógica perversa. Diz-se que a cidade não pára, a cidade só cresce. Serão os deuses testemunhas? Se parece inelutável o destino, ao menos fazemos cinema.

E, dos diretores Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos, é uma interessante perspectiva sobre tais fatos. O documentário vai ao cerne da autorreplicação e do aparente nonsense da metrópole bandeirante ao analisar uma de suas mais gritantes manifestações: os estacionamentos. Crescem em vertigem esses espaços silenciosos, mas que não surgem do nada – os depoimentos colhidos nos lembram que aqueles lugares também têm história e afetos: um era (saudoso) cinema-de-bairro, outro a casa do papai, um terceiro a da vovó, um quarto, um quinto…

O documentário assume ares de ficção científica. São estranhas, as máquinas. Abstratas, têm apelo estético e parecem existir por si próprias – de fato, não há imagem humana nítida no filme. O movimento está restrito aos guindastes, carros, catracas e, nos prédios das classes abastadas, até aos próprios estacionamentos-elevadores. “Privacidade, exclusividade, […] morar bem”, depõe uma moradora. Podemos ver suas mãos que saem de dentro de um enorme carro: o único pedaço de carne do curta.

O proprietário de estacionamento nos confessa: “Investimento pequeno, rentabilidade pequena também […] não é um grande negócio”. Nesse caso, sua serventia é apenas a ocupação do espaço; logo erguerá um prédio, grande negócio, por suposto. Assim rumamos aos céus. Eram sete pequenas casas, logo serão a concretização de uma maquete pomposa em regalias contemporâneas – elevador de automóveis, parque privativo, vigilância 24 horas e outras liberdades do espaço privado, sonhos em metros quadrados que o dinheiro pode comprar.

E são através das fotografias de satélites retiradas do Google que recordamos como eram as tais falecidas casas. Note-se: especulação imobiliária nas ruas, informação-mercadoria no mundo virtual. Também são privadas as imagens do espaço público da cidade, e por ela só se flana enquanto potencial consumidor dos anúncios que pululam no canto da tela. Logo se atualizarão as fotografias, e aquilo será somente o eterno-presente da Internet.

Em Pequena História da Fotografia, Walter Benjamin, sobre o trabalho do fotógrafo Atget na Paris do século XIX, indica que aquelas imagens privadas de corpos humanos, nas quais captou construções solitárias e indiferentes típicas da vida moderna, parecem esconder a evidência de um crime. Da mesma forma, a São Paulo esvaziada de E é como casa que não encontrou moradores, uma cidade que parece prescindir o mundo dos humanos. Onírica, surreal, espetáculo da ausência e do vazio, infinitamente cinza e melancólica. E tão estranhamente suspeita…

E está no Panorama Paulista 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Roda mundo, roda gigante

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Ao se utilizar da Arqueologia para problematizar o despejo dos vários moradores das favelas brasileiras (e, porque não, mundiais) destruídas pela especulação imobiliária, A Máquina da Ruína (The Ruin Machine) procura realizar uma arqueologia do presente. Ao projetar um olhar que se quer deslocado temporalmente, o filme procura nos instigar a tomar agora atitudes que o fluxo ininterrupto do tempo não nos permitiria em nenhum outro momento histórico.

O curta-metragem de Bruno Vianna inicia-se com uma breve introdução a respeito da função da arqueologia, dizendo-nos que “o método arqueológico pode ser aplicado a qualquer coisa”, já que seu intuito é o de permitir compreender os modos de vida e de estar no mundo dos vários indivíduos sobre os quais se aplica.

Juntamente ao som das diversas falas e informações em off, nos são apresentadas imagens de indivíduos os quais deduzimos ser arqueólogos. Estas imagens nos chegam saturadas e truncadas em seu transcorrer inconstante, borrando seus contornos conforme se movem lentamente. Vemos ali estampados os traços deixados por aqueles homens e mulheres ao longo do tempo que habitaram a tela.

Toda esta construção fílmica parece caminhar rumo a uma evidente crítica à ação do capital escondido sob a égide do “progresso” e do “desenvolvimento”. Passamos a ver imagens documentais da bruta remoção e destruição de comunidades periféricas. Assistimos àquilo que o filme formula como um futuro sítio arqueológico, ouvimos um morador revoltado gritando aos tratores que aquilo ali destruído não são apenas casas, mas também vidas e histórias de seus moradores.

Temos então contrapostos dois momentos discursivos, um que pretende nos instigar a olhar para o passado e revirarmos suas ruínas à procura de uma maior compreensão histórico-social, e outro que nos coloca ao lado dos moradores expulsos, próximos de sua dor e revolta. Estes movimentos acabam por perigosamente aproximar e associar duas forças: uma delas inevitável à ação do tempo e das catástrofes naturais – como no momento em que um dos estudiosos nos lembra a erupção do Vesúvio que destruiu Pompeia – e outra inerente à expansão destruidora do capital, que se desenvolve às custas da obliteração daquilo que lhe impõe resistência.

O filme parece criticar o ataque sistemático às populações pobres através de uma delicada abordagem da ação destrutiva do “progresso” sob o olhar arqueológico: tanto a natureza quanto os homens destroem, cabe detectarmos a razão, a necessidade e a justiça de tais impulsos para que possamos tomar diante deles a mais correta atitude.

Para um filme que lida com arqueologia, talvez A Máquina da Ruína pudesse ir mais a fundo na problematização desta força que destrói favelas e gentrifica cidades mundo afora: somos apresentados aos efeitos e não às causas. Apesar de interessante este seu ímpeto por lançar um olhar histórico sobre um presente tão comumente desenraizado e alienado frente aos seus alicerces político-ideológicos, suas pesquisas como filme que intenta ir além do senso comum parecem se dar ainda muito superficial e timidamente. O que alimenta A Máquina da Ruína?

Bruno Marra

A Máquina da Ruína está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013