POÉTICA DAS TRAVESSIAS – Terremoto, de Gabriel Martins
por Felipe Karnakis
A potência que a memória tem no redesenhar dos caminhos, na construção de novas possibilidades, é um dos eixos do documentário Terremoto. O filme é dirigido por Gabriel Martins da Filmes de Plástico, produtora mineira já reconhecida por dar à luz narrativas locais que historicamente não aparecem nas telas. O curta traz com muita sensibilidade o dia a dia da família Augustin em meio a pandemia de covid. Eles são do Haiti e tiveram que deixar o país devido ao intenso terremoto de 2010. O enredo parte de uma história essencialmente trágica. Contudo, a maneira como a costura é feita não bate apenas na tecla do sofrimento. Gabriel parece mais preocupado em dar voz às memórias.
São diversas as sequências em que essa preocupação atravessa a narrativa, mas em especial chama atenção o momento em que Nayla, a primeira filha da família, aparece pendurando fotografias antigas. Coladas na parede, estas formam uma grande tela que compõe uma linha do tempo. Vemos os rostos dessa família que já nos foram apresentados, só que jovens, em ambientes distintos, lugares distantes. Essa tela de memórias recorta o filme, aparecendo entre os relatos e enredando as informações. De alguma maneira, esse fio condutor ressalta a importância que o documentário dá em humanizar os personagens. O recorte não é sobre um fato isolado, uma tragédia, mas sim a história desses indivíduos e suas particularidades.
Nesse sentido, a película desconstrói uma narrativa muito reproduzida em filmes sobre desastres naturais, que sobressaltam sempre a visualidade da necropolítica. Na contramão da morte pela morte, o curta discorre sobre vida, educação e futuro. O símbolo do nascimento da nova filha na família, e a primeira cena em que os irmãos constroem o berço da pequena, marcam a essência de recomeço que o enredo carrega.
Essa investigação de construção a partir da autoimagem, de registros fotográficos e da autoestima de famílias pretas lembra tematicamente outro filme, Travessia (2017) de Safira Moreira. O curta aborda a busca pela memória fotográfica das famílias negras, estabelecendo um aspecto crítico quanto ao registro e o racismo estrutural. Em ambos os filmes, ao final vemos a produção de imagens afetivas dessas famílias. Há uma notabilização de que o registro é sinônimo de história, e que demarcar esse formato é um compromisso de criar repertório para as próximas gerações.
A maneira como o filme traz em imagens essa temática contribui para uma espécie de imersão poética. A fotografia do curta tem um tom onírico, as imagens parecem flutuar. O ambiente escuro e luzes direcionadas, contrastando com o tom terroso das paredes de tijolo, contribuem para sentirmos uma aura de flashback. Ainda que mantenha o norte nas recordações, o enredo também finca os pés na atualidade. É estabelecido um fluir desse caminho-rio das memórias e seu redesenhar no tempo, que desemboca no futuro. Esse aspecto fica evidente quando Niky, Nick e Neyla relatam sobre suas escolas e a importância da educação em suas vidas. Nesse trecho, fica evidente o impacto que a pandemia teve no ensino – por exemplo, na falta de estrutura para as aulas online de Niky ou Nayla, que têm apenas os irmãos para recorrer às dúvidas de suas tarefas. Ainda assim, o filme enaltece a esperança que essa juventude tem de construir e semear a mudança no futuro.