POR UM FUTURO AOS INVISÍVEIS – Mostra Brasil 4: Que Futuro É Esse?

por Gabriela Boni Zanatta

Se foi feito um cinema a ser exibido em 2022, é ele produto de uma necessidade absoluta: o transbordamento de um grito sufocado, uma pulsão que age contra todas as sórdidas, nefastas estratégias de um desgoverno ainda vigente. Mas os ares de agora trazem a sugestão de mudança. Os olhares se voltam ao futuro, e, quando se olha ao futuro, não se pode deixar de se indagar: que amanhã pode gerar um hoje como este?

No cinema da Mostra Brasil 4, “Que futuro é esse?”, a ficção científica é uma ferramenta narrativa ressignificada para se amalgamar à realidade política atual, tornando-se indissociáveis. No universo compartilhado por este conjunto de filmes, predomina uma visão de Brasil que se utiliza da fantasia para escancarar o absurdo concreto da realidade comum: a exclusão absoluta, a carência de direitos e de afetos.

O exercício estereotipado da ficção científica ensina a tratar do futuro como algo distante. Não é essa uma noção presente aqui; este futuro é um que já chegou. É um mundo inóspito, devastado, de um tal abandono que pode levar a crer que a tragédia que lhe acometeu se tornou já um acontecimento longínquo, algo pontual e passado ao qual algo da vida sobreviveu. Em Anantara, percebe-se que não: a aniquilação do mundo não é um evento breve, não é algo que ficou no passado e tampouco é total. Uma vez que é o homem que cria a aniquilação do mundo, ela segue seus moldes e torna-se enviesada e injusta. Em Anantara, campos de força protegem as cidades intactas da toxicidade e do perigo das regiões suburbanas, onde a devastação é a norma. Campos esses que são impenetráveis, mas transparentes, permitindo a vista do outro lado. Mesmo assim, os corpos descartados à sorte da devastação não são vistos.

Esses corpos, portanto, estão em perigo, como sugere o título de Eles não vêm em paz. Aqui, a violência extrema policial e a política de morte são tamanhas que não há perspectiva de um futuro além deste presente; são tamanhas que, muitas vezes, são suportáveis apenas se relatadas por meio de uma metáfora fantasiosa.

A luta até o momento é clara: é a da sobrevivência. Uma vez conquistada a vida, parte-se então para outros embates no movimento pela visibilidade. Lua, Mar, cujo título carrega os dois polos da loucura de Ismália, carrega também dois contrapontos dentro de uma mais complexa luta por afirmação: de um lado, a conquista dos direitos dentro da lógica do opressor; do outro, a negação absoluta da sua práxis. É válida a luta para ser visto de acordo com os padrões e as determinações regidas pelos olhos daquele que não vê? A protagonista advoga que sim. Afinal, o mais enfraquecedor ao movimento de resistência é a desintegração coletiva.

Já não há uma desintegração do grupo em foco em Fantasma Neon. Ao que parece, a luta da invisibilidade sempre volta à sobrevivência. Para contar a história de trabalhadores contemporâneos num regime análogo à escravidão, não se usa uma metáfora, mas um conjunto de peças performáticas. A realidade (das comidas por aplicativo) é indigesta. O protesto é realizado em música e em dança. Fantasma Neon é um transbordamento audiovisual, uma efetividade do devir da arte que entra em cena quando as palavras já não dão conta. Não dão conta da fome, da morte, da invisibilidade pintada de neon. Aqui, não existe futuro. O fim do filme é um canto interrompido por um silêncio oco, bruto e estúpido. Irresoluto, enquanto a realidade também o for.

A invisibilidade está nas ruas, nas favelas, nas peles, nas distopias – enfim, todas as histórias aqui são de distopias. O movimento final da mostra transporta a percepção das ruas para o ambiente doméstico, onde todas as mazelas sociais se traduzem nos íntimos detalhes. A invisibilidade está também no gênero e na vida comum.

O futuro aqui é uma esfera sutil: existe o futuro de ficção científica, o foguete, por certo. Mas o maior dos futuros é aquele com o qual a personagem de Sideral sonha. O peso da rotina doméstica, as atribuições arbitrárias mas obrigatórias de gênero provocam o sonho de um outro mundo. Em um ímpeto fora de quadro, a personagem se permite a indagação (com a retórica da indignação) que atravessa todos estes cinemas: “que futuro é esse?”. E ainda: “para quem é esse futuro?”. Porque, se o presente não pertence aos invisíveis, qual tempo pertencerá? E que tempo melhor que o de agora para reivindicar esse pertencimento?

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *