QUERER, EXISTIR E AGIR! – Mostra O Efeito Queer Indígena

por Enzo Ruggeri

Quando damos nomes para determinados movimentos artísticos, assumimos que as obras pertencentes a eles possuem um fator em comum. No caso de um cinema dito como queer, são consideradas as representações ou narrativas que promovem uma ruptura com a normatividade nas questões de gênero e/ou sexualidade. Já em uma perspectiva cinematográfica classificada como indígena, está inclusa a assimilação e compreensão de uma expressão cultural, seja num resgate histórico em documentários, seja em ficções em que essas pessoas desempenham o protagonismo. E os dois juntos? Quais visões poderiam ser trabalhadas?

O desafio dessa sessão, na construção do Efeito Queer Indígena, foi criar uma seleção de filmes que conectam a memória e o existir dessas personagens dentro de ambos os contextos. Enquanto, na perspectiva cultural, essas pessoas lutam contra um processo de apagamento da sua própria identidade, no campo pessoal também precisam muitas vezes se manterem escondidas, pois existe uma conduta heteronormativa a ser seguida. Entretanto, essa visão separada é meramente analítica, afinal as personagens que protagonizam essas histórias não se dividem em dois: elas são indígenas e queers. Os pontos mais sensíveis, presentes em todas, são a busca e o orgulho da ancestralidade, que nas narrativas propostas funcionam como um mecanismo para florescer as sexualidades dos protagonistas.

Em geral, a proposta queer dentro do cinema está atrelada à estranheza como sensação para o espectador, devido ao seu caráter confrontador. Não se sente isso nesta sessão exatamente. Não digo, porém, que se ausenta de seu papel não-conformista, mas as representações de afetos estão normalmente cercadas pela própria expressão cultural, manifestada ora de forma simbólica como em Tuullik; ora físico, como o contraste entre a reserva e a cidade em Suave Noite; ou a moradia dos inuítes em Aviliaq: Entrelaçadas. Embora os filmes sejam disruptivos pela própria presença do existir e do manifestar, ainda assim há o trabalho do acolhimento, principalmente nas relações afetivas, tanto românticas quanto fraternais, contrastando muitas vezes com as parentais.

Os filmes abordam personagens que não estão passivas às suas condições, sendo o agir o combustível para o desencadeamento de todos os curtas. Jesse Jams, que leva em seu título o nome do seu protagonista, em sua montagem rítmica viciante, acompanha a jornada do músico trans indígena que está contemplando sua existência de maneira orgulhosa através da sua expressão musical do punk rock. De forma similar, Êmîcêtôcêt – Muitas Linhagens, o outro documentário da sessão, mostra o processo de um casal queer e interracial em seu processo de realizar a fertilização in vitro, e como é fundamental se atentar ao combate do apagamento indígena durante essa jornada. A cena do parto é uma das mais sensíveis da mostra, pois conecta a emancipação queer em dar a vida atrelada à manifestação da ancestralidade, com a criança representando o futuro da etnia.

Nas ficções, o conflito geracional é bem marcante. Em Tuullik, Tukummeq e Luna são levadas em uma bela representação não-narrativa que faz uma analogia da relação delas com o conto da lua e do corvo como um dispositivo discursivo para representar o nervosismo de ambas as partes ao conhecer a família uma da outra. Mostrando uma face mais violenta, em Fogo Selvagem, os jovens protagonistas literalmente fogem de seu pai opressivo, enquanto o mais velho acaba desenvolvendo uma relação sutil com outro menino, contemplados por planos que quase os fundem com a natureza, uma validação do próprio meio.

Já em Aviliaq: Entrelaçadas, se estabelece quase um paradoxo sobre a cultura inuíte, afinal as personagens buscam nela a justificativa para ficarem juntas, enquanto os pais de uma delas deliberadamente comandam a escolha de suas vidas também baseados nisso, operando como fator decisivo a heteronormatividade. Em Noite Suave, esse aspecto é colocado de forma dualista: a personagem pode explorar sua homossexualidade na reserva, colocada aqui como um lugar de refúgio, enquanto na cidade a normatividade a sufoca, mesmo que também haja uma troca com alguém indígena.

De forma geral, essas obras buscam emancipar a existência de suas personagens, em uma percepção singular do desdobrar de suas existências diversas. Assim, ilumina-se a vivência de pessoas LGBTQIA+ que são pertencentes à cultura dos povos originários, e que compartilham da luta contra a presença opressiva da normatividade. A mostra O Efeito Queer Indígena é um convite para provocar uma perspectiva diferente no espectador sobre o querer, existir e agir da dinâmica queer.

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