Dia branco: o mundo daqui, o mundo de lá

dia branco

João Gabriel Villar da Cruz –

Um filme pode ser de longa, média ou curta metragem e, nessa lógica, um curta nada mais é do que um filme mais curto – abaixo de quinze minutos –, e a sua única diferença em relação ao longa está na duração. Pensamento plausível e perfeitamente condizente com a nomenclatura. Por isso mesmo que devia haver outro nome: um curta não é só um longa curto. Curta-metragem que quer ser longa se perde em si próprio, um curta deve ser emancipado do imaginário de longas para poder respirar sozinho.

Não se trata de tom ou de ser ou não narrativo. Trata-se de uma consciência dos limites palpáveis – de tempo, de ambição – não como gesso mas como estímulo. Em vez de adaptar o que se quer dizer ao espaço do curta, simplesmente, dizer… um curta. Parece que – e isso não é a colocação de uma regra do bom curta, apenas uma constatação nascida da observação – um curta não quer dizer, simplesmente diz, é dito. Ao contrário do longa, onde a extensão dos acontecimentos que se desenvolvem e relatos que se entrelaçam tornam muito mais consciente o trabalho do autor – assim como a recepção do espectador –, um curta pode se permitir ser e acontecer. Talvez, tentando-se examinar o que mais se salta aos olhos dentro da produção de curta-metragem e colocando-a frente aos longas, possa-se encontrar nesse fator uma diferença essencial – mas não arbitrária – entre os dois formatos.

Em um dia frio e sem sol, três meninos estão em um pico, onde não tem sinal de 3G (“O bagulho que entra Facebook, Twitter, e-mail”). Demoramos para ver seus rostos, a princípio eles são apenas presenças, palavras soltas. O mundo ficou lá em baixo e dele aqui só existem as imagens armazenadas no celular – fotos de família e amigos, tiradas a esmo, que nos são apresentadas a princípio – e trivialidades sendo faladas. Ou ao menos assim parece: perdido entre as corriqueiras conversas dos meninos, está um amigo morto, cuja missa acontece lá em baixo, em uma igreja que mal se vê por entre a neblina, enquanto os três se isolam no espaço tão vazio quanto o dia parece ser lá em baixo.

Nesse meio delicado, a câmera, que correria o forte perigo de ser uma intrusa ali, resolve se esconder atrás da própria paz do dia: sua presença ali é tão natural quanto a da neblina, uma câmera tão tranquila quanto o dia – branco, sereno, calmo, melancólico –, que mapeia a ação com uma leveza quase imperceptível, e também escorrega dessa de volta para o céu e a nebulosa vista com a mesma naturalidade.

De intruso mesmo, só o grupo de turistas que aparece ao longe registrando, com um tablet, a presença naquele lugar – que não é deles –, mas que também some sem deixar marca que não seja um leve desvio no assunto dos meninos, assunto que vagava com tanta errância e calma quanto a própria câmera. Talvez até demais: O assunto desvia da morte sempre de raspão, e sempre marcado por uma forte indisposição e tristeza. O silêncio parece sempre preferível, quando suportável. Um dia marcado pelo peso de que eram pra ser quatro ali, sempre foram quatro, e agora a única evidência palpável do quarto que não voltou é uma fita amarrada na árvore – é sempre alguém diferente, entre os quatro, que escolhe onde ela vai ficar –, que permanece lá, ainda demarcando a corrida que os meninos ainda competem.

Ora o silêncio pesa, ora a palavra se perde. A verdade é que são todos tão opacos quanto o próprio dia, parabéns aqui aos atores, que se deixam existir na frente da câmera – façanha muito mais difícil do que se pensa – ao mesmo tempo que permitem que seus personagens se retraiam. Para atrás da neblina. Para dentro das fotos. Para dentro do conforto da fraterna crueldade do outro, emulação de uma convivência que persiste em se fingir banal como sempre, como o céu.

Dia Branco está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

A emergência do silêncio

vao livre

por Lucas Navarro –

Antes de tudo, claro, o impasse. A fala que tenta voltar après-coup ao gesto da irmã busca desfazer os lacres que encobrem o inefável que a sustenta. Esvaziada de significações compartilháveis, ela respira o fracasso da intenção comunicativa. Todo esforço está mobilizado para aprender a “dizer de outro jeito” aquilo que o maquinário da linguagem não consegue mais submeter em discurso assimilável (“podia ter dado certo no jornal”, lamenta a mãe) tendo que, para isso, adequar sua voz à violência da atmosfera. Aprender a dizer de outro jeito requer, porém, um trabalho rigoroso sobre corpos em cena para que, somente a partir dessa organização, a voz reconcilie o sentido original sobre o qual vacila, devolvendo a autenticidade da experiência narrada.

Dividido em datas que funcionam como uma espécie de antecâmara daquilo que ouvimos nos créditos, as cenas de Vão Livre mostram uma identificação progressiva da protagonista com a continuidade das lutas deixadas pela irmã. Contudo, essa luta é sempre prorrogada entre discussões e palpites sobre possíveis datas e possíveis pautas. Essa espera no interior dos tableaux é responsável por uma aparente passividade que, por sua vez, é antes efeito da intensificação da sensibilidade, de uma atenção excessiva, que aproxima a crítica do advento desejado. Uma variante dessa imagem está justamente na passividade produtiva da mulher que gera, em seu silêncio, o sentido da conversa. Se aquilo que conhecemos de sua irmã é pura ação, aquilo que vemos, do seu lado, é pura hesitação – detalhe que dá à personagem o peso de duas memórias conflitantes: a tranquilidade, tão cara à sua avó, e a coragem mobilizadora da irmã. Tradição e ímpeto, como soma de lembranças, são forças antagônicas que movem o filme de uma disposição não contaminada pela percepção entorpecedora do passado ao privilégio do instante como único possível de afirmar seu compromisso com o presente.

Concebido como projeto de conclusão de curso momentos antes à irrupção das manifestações de junho, a produção de Bruno Marra e Steffi Braucks atravessou o evento incorporando alguns elementos junto àqueles já existentes na ideia inicial. Isso para esclarecer que não incorro aqui afirmando a redução da obra como reação direta ao calor episódico do protesto, mas na tentativa de perceber a capacidade transitiva interiorizada no processo. Responde ao seu tempo histórico sem trai-lo ou ser seu escravo. Esse amálgama entre crítica e contexto fica ainda mais claro se notarmos as diferenças brutais entre esse filme e aqueles realizados in loco (Rio em Chamas, 20 Centavos, Junho), cuja força reside tão somente numa descrição irrefletida dos fatos acreditando, pela proximidade estabelecida, enxergá-los objetivamente. Quando revistos no momento atual suas imagens parecem esgotar um referente aflorado sob uma pressa vertiginosa pela qual experimentamos outrora o prazer de nos deixamos violentar as retinas. Vão Livre, por sua vez, evoca uma violência simbólica, e silenciosa, tão atual que poderia ter sido feito amanhã.

Se já acostumamos a ver na produção universitária uma conformidade estética (política, portanto) com tendências já consolidadas cujo preço se dá na abdicação da tradução ativa no curso da história, observo que, aqui, não é o caso. Vão Livre compõe solitariamente o panorama da mostra Cinema em Curso. Isso por que ele nos apresenta um conflito irredutível ao núcleo da família ou do indivíduo tomado como berço dos sentimentos e expressões, preferindo revelar um colapso que transborda os limites do espaço privado, dentro da qual era ainda possível reconhecer um princípio de causa. A emergência desse novo olhar está em perceber que a obra, antes de encerrar o assunto que a engendra, ascende, num movimento de luz, o impacto estético fundamentado naquilo que Rivette chamou de um “elo entre algo exterior e muito secreto, que um gesto imprevisto desvela sem explicar”.

Vão Livre está na mostra Cinema em Curso 4. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Em respeito à solidão

au revoir

O minucioso controle e planejamento dos gestos, palavras, enquadramentos e cortes parece procedimento minoritário no atual contexto do cinema de caráter mais “autoral”. Em meio à um mar de planos propositadamente esgarçados, gestos “espontaneamente” rarefeitos em seus sentidos e uma certa utilização da ambiguidade como fator pré-legitimador a filmes que se querem “sérios”, Au Revoir, de Milena Times, chega como uma necessária recordação da riqueza e pertinência que a construção cinematográfica econômica e precisa em suas escolhas, sem receio de fazer sentido, pode agregar a um filme.

O corpo da protagonista carrega em cada gesto uma objetividade narrativa que, ao contrário do engessamento que tal escolha dramática aparentemente suscitaria, acaba por pontuar ao longo do filme – aliada sempre à fala precisa e à uma minuciosa exploração espacial – os exatos humores e níveis de familiaridade vividos entre a brasileira e a senhora sua vizinha ao longo da delicada relação ali estabelecida.

O hall do edifício em que moram é a primeira fronteira entre suas intimidades. Encontrando-se através de seus respectivos exílios, as duas mulheres percorrem um caminho de incômodas minúcias. O apartamento vizinho, que a mais jovem, a princípio, adentrava com acanhamento e retidão, passa a ser um prolongamento de seu lar: um imóvel do qual partilha as chaves e a solidão inabitável.

Se a fronteira entre seus apartamentos é logo transposta, a total aproximação entre as duas personagens só esboça se dar por completa sob a íntima e solitária lógica da dor humana, na qual, em sua excruciante plenitude, só é possível permanecer sozinha(o). Quando a jovem esboça partilhar de seu sofrimento, a convalescente senhora necessita partir: Não existe calvário com lugar para dois.

Os últimos planos do filme são os do apartamento da falecida, vemos a brasileira sozinha no quarto de cama vazia e a sala sem seu gato: nem mesmo Hércules resistiu. Idos aqueles poucos próximos de si, restam à jovem a indiferença do espaço e um cilindro de oxigênio, condições típicas para todos nós, exilados.

Bruno Marra

Au Revoir está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013