Prever o futuro, lembrar o passado

mauro em caiena

Há um cinema muito particular vindo de Pernambuco, Fortaleza e Recife, nos últimos anos, e que é de rico conteúdo. Mais interessante ainda, uma boa parte dele tem se concentrado, organizadamente, no curta-metragem. A primeira vez que percebi isso foi quando vi o curta Muro (2008), de Tião, que me deixou com uma forte impressão, um turbilhão de ideias e uma inquietação grande de saber de onde tinha vindo – quem eram esses “novos” realizadores?

Fui descobrindo que havia muito mais no cinema do Nordeste do que eu conhecia; o timing para a descoberta foi ótimo porque, desde então, não é difícil encontrar ótimos filmes em festivais que tenham surgido dali – Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus, é um deles.

Como muito dos filmes que tem surgido de realizadores dessas cidades, Mauro em Caiena é um filme que sabe muito bem como observar seu redor, ou seja, entender criticamente a experiência do tempo e lugar no qual se vive, além de, no caso, saber se projetar no passado, presente e futuro desse lugar – o cineasta se entende como parte de um processo, que inclui sua família e seus vizinhos: enquanto a cidade no entorno se altera, mudam também seus sonhos, sua maneira de agir e olhar.

O primo moleque de Leonardo gosta de se fazer de dinossauro e o curta abre com uma colagem de filmes antigos do Godzilla e a performance do garoto para a câmera. Cômica e de criatividade infantil, o filme, narrado como uma carta de Leonardo ao seu tio, consegue apreender outras camadas dessa relação, criando metáforas, como a do Godzilla, que estimulam interpretações abertas a seu público – no caso, achei tanto cômica quanto angustiante a citação do monstro nuclear nesse meio (o filme se mantém no preto-e-branco das colagens), a comparação do sentimento do fortalezense frente a urbanização com a paranóia masoquista do Toquiano pós-guerra. Há uma certa depressão contida nesses filmes, que se comunica através da mais aguda consciência social, unida de formas fílmicas interessantes, densas.

Depois dessa introdução, o filme continua como uma colagem de retratos, paisagens e registros poéticos dos arredores do cineasta, através do diálogo imagem-texto; descobrimos que a carta, ou a vídeo-carta, se dirige para o tio de Leonardo, Mauro, que se exilou na Guiana Francesa, um “lugar para o qual ninguém foge”. Filma-se na impossibilidade de encontrar esse tio, de apreender e conhecer completamente a história de uma família e de conseguir prever seu futuro. Resta filmar, registrar, e projetar-se nessas memórias, nesses indivíduos e nessas trajetórias, para projetá-las numa sala de cinema e com isso, talvez, comunicar esse sentimento fugaz da simpatia. Paralelismo de coração, que se tem com a trajetória de sua família, indistinta de suas memórias, potencias e da materialidade de onde se vive, em constante transformação, lugar de inquietude, separação e transição da infância a uma vida adulta que trás novos horizontes – mas quais?

Comecei falando que, quando primeiro me deparei com um curta nordestino recente, fiquei me perguntando “como chegaram nesse resultado?” (ou seja, que trajetória cinematográfica percorreram para criar aquela obra), até descobrir que muitas dessas obras são exatamente sobre esses deslocamentos, de cidade, biografia e olhar.

Rodrigo Faustini

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

Caminhando por sensações

o inverno de zeljka

Panorama bem interessante da produção nacional atual, vou destacar alguns pontos de cada filme da Mostra Brasil 5 sem traçar nenhuma semelhança explicita entre eles. Foco aqui nas particularidades de cada um as semelhanças são consequência.

Os filmes selecionados são de vários locais do Brasil. Alias, não só do Brasil: temos o curta O Inverno de Zeljka, de Gustavo Beck (o quinto filme do diretor), que se passa entre Croácia, Dinamarca e Brasil; Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus (sétimo filme do jovem e experiente diretor), que se passa no Ceará; Não Estamos Sonhando, de Luiz Pretti (nono filme do diretor), de Minas Gerais; Cajamar, de Bruno Risas (belíssima estréia do diretor), se passa em São Paulo; e Nascemos Hoje, Quando o Céu estava Carregado de Ferro e Veneno, de Marco Dutra e Juliana Rojas (nono filmes dos diretores), que se passa em algum lugar da via láctea, talvez?

Começamos com O Inverno de Zeljka, curta que foi pensado num projeto de um longa com dois episódios. Nesse filme em preto e branco o que mais me chamou a atenção foi a parte sonora, ou não sonora, pois ele é completamente sem som, nem uma palavra nem um ruído, nem uma musiquinha de fundo, o que me fez imergir totalmente nas imagens, e estas eram bem lentas, frias e silenciosas, contavam em forma de documento a lenda do Inverno de Zeljka, com uma narrativa com ares de primeiro cinema. Simples, só que diferente e inovadora, tanto que a principio nem eu entendi o que estava vendo ali. Diria que é um filme difícil de digerir até cair a ficha.

Do silêncio absoluto fomos para a risada do menino sapeca, criativo e divertidíssimo Mauro em Caiena, meu curta preferido dessa sessão. Projeto bem pessoal do diretor Leonardo Mouramateus – que também participou da sessão especial Desbunde Tomada Única com Lagoa Remix, onde usou fragmentos de seu filme Europa. O documentário é sobre seu tio Mauro (como citou o diretor na apresentação de seu curta) e da saudade que ele deixou em toda família, em especial na avó e no narrador/personagem após partir para a Guiana Francesa.

Mouramateus nos conduz através da história com uma narrativa em forma de carta e poesia, as imagens são independentes da narração e ao mesmo tempo amarradas a ela. É traçado um paralelo entre as personagens do menino, de Mauro e do narrador. Em alguns momentos dos filmes as personagens se fundem, o menino brinca, sobe em arvore, pula muros, assim como Mauro que tem a “capacidade de se transformar em dinossauro ou lembranças”, assim como o narrador que quando a vó via chegar e de longe achava que era Mauro chegando, pois eles tem o caminhar parecido. Depois desses deliciosos 19 minutos até eu fiquei com saudade de Mauro e desejando que ele volte a Caiena para que eu possa ver mais histórias como essa.

O terceiro filme dessa mostra tem três pontos que eu quero destacar. Começo pela fotografia: o uso magnífico da cor branca na primeira cena de Não Estamos Sonhando dá um ar de paz e tranquilidade ao curta, que é também característica da personagem, como se de fato fosse um sonho, o que ao longo do filme vai ser totalmente desconstruído. Outro ponto que vale a pena ser destacado é a direção de arte que cumpriu seu papel majestosamente, dando muitas pistas sobre o personagem, que podemos observar ser organizado, calmo, centrado – todo o cenário reflete o personagem. E o terceiro, o som, que é também personagem dentro do curta. O som é o que interage com o outro personagem, o som é o que faz o personagem e a trama se movimentar e se modificar. “Filme sobre o que acontece perto de onde o diretor mora” disse a produtora na apresentação da sessão. Filme que consegue abordar a evolução da cidade traduzida em prédios e o impacto dessa evolução no indivíduo que tem o seu espaço invadido, nesse caso pelo barulho.

Depois de todos os ruidos do filme anterior ainda com zunidos no ouvido vamos a Cajamar e passamos da perturbação física para a perturbação mental. Diferente dos outros três filmes esse ja é bem mais colorido. A personagem sente uma dor de estômago que se manifesta externamente tanto nela quanto em quem ela encontra em sua jornada diária. A partir do momento em que é questionada “quem é você?” essa dor vai ficando cada vez mais forte e além das pessoas essas marcas começam a aparecer nos lugares e o filme começa a tomar rumos estranhos, tudo fica onírico e existencialista.

Embalados por esse clima mais lúdico terminamos com essa experiência. Além de outros estados, outros países, vamos para outro mundo! Entramos num buraco de minhoca e expandimos nossa mente para receber Nascemos Hoje, Quando o Céu Estava Carregado de Ferro e Veneno, fragmento do longa de episódios Desassossego (Filme das maravilhas), cuja proposta é uma carta-manifesto baseada em um bilhete encontrado no armário de uma adolescente. Cineastas de vários lugares responderam a carta com um fragmento de filme que compõe o longa.

O que é mais interessante no curta é a proposta estética, inspirada nos filmes em VHS o que nos remete automaticamente ao final dos anos 80 começo de 90. O filme tem cara de sátira com tons de homenagem aos musicais da época, principalmente os da Disney, e de forma bem humorada nos leva nessa viagem com os dois personagens desiludidos na Terra, a moça com sua profissão e o rapaz com o relacionamento, para lugares jamais antes habitados.

Danielly Ferreira

A memória, a infância e o Godzilla

mauro em caiena - godzilla-ed

Mauro em Caiena (Leonardo Mouramateus, 2012) é como uma carta-cinema. Não uma carta filmada, ou um filme sobre uma carta, mas as duas coisas dentro de uma só, palavra e imagem, indissociáveis. A leitura sutilmente saudosa, ficcional, divagante traz a qualidade de memória para as imagens em preto e branco. Expande-se o universo das duas dimensões justapostas, que se fazem como camadas para a leitura una do curta-metragem.

A carta é endereçada a um tio, Mauro, que está na Guiana Francesa, e saiu há um tempo considerável de Caiena, esta cidadezinha de interior de descampados e montes de terra de construção. O sobrinho lhe fala com amor, saudade, e talvez, um certo rancor por um tio que se foi e não volta, que deixa a avó sempre na esperança da volta. Talvez, também, com um pouco de inveja por ele ter ido embora deste pequeno cerco. Lembra-me o livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, só que sob a visão do irmão que fica, vendo o outro que se foi, desgarrou-se e deixou mágoas na família. O irmão que, talvez, também quisesse ter ido.

Enquanto as palavras, informais como devem ser as cartas, correm, as imagens as confirmam, distanciam, embolam-se com elas. O menino que imita um cachorro e depois sobe em árvores deve lembrar o tio criança, diz a carta. Aqui, o que se fala é quase o que se vê – o menino não é um personagem construído, está ali como ilustração, é uma imagem reflexiva do lugar, das crianças que subiam e ainda sobem em árvores. O primo pequeno e o tio que se foi há tanto tempo são os mesmos, condensados nessa imagem – e assume-se o caráter de imagem, de reprodução, de ilustração.

A carta, talvez para convencer o tio a voltar, diz que o lugar continua o mesmo de sempre. O que vemos na imagem são os montes de terra de construção, são os guindastes, imagens de um lugar em constante transformação. Caiena nunca mais será a mesma da infância de Mauro, mas o modo como o realizador resgata as memórias do seu tio e as insere nas imagens atuais, faz lembrá-lo de que Caiena ainda é Caiena. Daqui falo da dimensão dolorosa da memória da imagem: um lugar nunca é o mesmo, mas o permanece nas nossas memórias, e os nossos olhos por vezes procuram na paisagem, ansiosos, aonde é que as imagens da nossa memória permaneceram. E eles permanecem, de algum jeito. Também nas imagens de um filme visto na televisão, como as cenas de Godzilla, em que as imagens ficcionais de um outrem tornam-se carregadas de memórias nossas, particulares. Memórias que são conjuntas, mas que por estarem desligadas de qualquer lastro de realidade, podem ser tomadas como nossas, de um momento que pertence a todos.

Algumas imagens atestam a triste derrocada da memória do lugar. Quando o realizador filma a árvore da infância de Mauro sendo derrubada, esta árvore que não é de seu afeto – já que ele diz que estava de ressaca e pouco interessado na árvore que ia ser cortada – não deixa a tomada toda em filme: é triste mostrar o decapitamento total desta memória. Mas está lá, como atestado dessas mudanças irrevogáveis.

A permanência parece estar na figura da avó, figura comum entre os dois, sempre citada pelo narrador da carta, com certo pesar, contando ao tio o modo como a avó o abraça achando, por vezes, que ele é Mauro. Engraçada colocação, que justifica a fixação num tio que já se foi há tanto tempo. Escrever-lhe é quase um pedido de troca de lugar; e uma carta (ou um filme) é quase sempre uma vontade de troca, estar por uns momentos em outro lugar, junto de um outro. Mas é essa avó, a verdadeira árvore no quintal, que fincada com suas raízes no mesmo lugar, está em tela e em vida como uma presença divina, matrona da infância de todos os meninos, recipiente das saudades, das memórias. É o elo da ligação, não de um lugar, passível de transformação, mas de gente comum, que aparece em tela picando legumes para pular ali um gato e comer os restos.

E nessas indas e vindas dolorosas sobre a memória, a saudade, os lugares que já não podem ser os mesmos (se o tio voltasse ele reconheceria Caiena como o narrador da carta parece tanto insistir?), o realizador termina o filme voltando a si mesmo. É preciso deixar Guiana Francesa e a vontade de ser Mauro, de estar longe, é preciso deixar de filmar aquilo que deve ter sido a infância de Mauro – resgatado pelas memórias da avó – para constituir-se, também, como alguém; e não mero observador desse processo. E dessa forma, não poderia ser tão emocionante a longa tomada de uma menina em uma balada, um universo exclusivo ao realizador. A menina é filmada com carinho e a narração que já se calou. É preciso voltar a vida, e a vida do que há por vir. A imagem da menina olhando para a câmera não é, como outras, a ilustração de um passado, a reconstituição de uma memória, mas sim atestado do presente.

Mariana Vieira

Mauro em Caiena está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013