Algumas tendências do cinema universitário

noite perdida

No texto de apresentação da mostra Cinema em Curso (voltada a filmes realizados em cursos de graduação em audiovisual de escolas do estado de São Paulo), que consta no catálogo do 24º Festival Internacional de Curta-metragens de São Paulo, aponta-se para uma vontade, por parte da curadoria, de se estabelecer um debate acerca do ensino em audiovisual, bem como das características particulares de cada uma das escolas participantes. Partindo dos filmes presentes na mostra (que, vale frisar, foi constituída a partir de filmes indicados pelas próprias escolas), bem como por alguns também realizados dentro de faculdades, porém, espalhados por outras mostras (Brasil e Panorama Paulista), gostaria de contribuir para o debate proposto, a partir da identificação algumas tendências em comum apresentadas por esses filmes. Tendências estas que sugerem, a meu ver, uma problematização de como esses filmes olham para o mundo ao seu redor, e, portanto, como se portam perante a ele.

Filme sobre cinema

Um primeiro ponto que chama a atenção dentro da produção universitária é a constante presença de temáticas relativas ao fazer artístico e ao aparato cinematográfico, configurando, em alguns momentos, uma obsessão pela metalinguagem. Dois filmes do programa evidenciam essa questão: Estátuas vivas e Redoma.

No primeiro, um documentário, pretende-se um relato acerca da profissão informal exercida nas ruas da cidade e que cede seu nome ao filme. O grande problema reside justamente no olhar que o filme lança sobre o objeto tratado. Assim, reveste-se a profissão com uma aura de “poder da arte e do artista” que parece muito mais querer respaldar o fazer artístico supostamente presente no próprio filme. Elimina-se qualquer olhar que aponte para uma problemática acerca da condição de trabalho dessas “estátuas vivas” em prol de um olhar lírico, pré-fabricado, que encontra nas “estátuas vivas” somente um álibi para despejar seus conceitos acerca da beleza da arte, “salvadora do mundo”.

No segundo, também documentário, aborda-se a vida de três artistas que lidam com a timidez. Constrói-se um dispositivo para tentar traduzir o problema vivenciado pelos retratados: a timidez diante do aparato cinematográfico montado nas entrevistas. Aqui dois movimentos convergem. O primeiro é a predominância do deleite acerca do aparto cinematográfico: aproveitam-se momentos da entrevista, que tradicionalmente seriam descartados (os silêncios e hesitações diante da câmera), filma-se a situação de constrangimento sendo filmada – deleite puro do aparato. Isso contribui para um segundo movimento: sustentar o discurso de que tais artistas tímidos se libertam desse mal que os acomete quando atuam em seus respectivos campos artísticos. Novamente, a pregação do poder, da beleza e da liberdade conferida pela arte – novamente um discurso que pode muito bem servir ao próprio fazer do filme em questão. Mas afinal: que poder, que beleza e que liberdade se reivindica aqui?

Quando o crítico Jairo Ferreira falava em seu livro Cinema de Invenção que “faz-se filmes SOBRE cinema e não DE cinema”, sua justificativa estava calcada em um posicionamento político diante da impossibilidade de se fazer filmes inocentes e inofensivos dentro de uma condição de subdesenvolvimento – falar sobre o aparato era se posicionar agressivamente perante a hostil situação vivida pelo homem em seu processo histórico marcado pela falência.

O que se vê na metalinguagem, discurso sobre o aparato e discurso sobre o fazer cinematográfico empregado pelos filmes universitários acima citados é um discurso ensimesmado. Aborda-se o aparato numa chave quase fetichista, em uma tentativa de se legitimar. Falamos de cinema porque não sabemos falar de outra coisa, porque não olhamos para o mundo e seus problemas, somente para o universo particular de quem estuda cinema e por conseguinte de todas as “maravilhas”, “beleza”, “poder” e “liberdade” (num sentido extremamente vago e evasivo) que tal arte pode proporcionar.

Cinema de gênero

Outro ponto em comum entre alguns filmes universitários é a opção pelo cinema de gênero. Que existe uma classificação das obras em gêneros não é nenhuma novidade (Aristóteles já fazia isso). Que a indústria cinematográfica se utilizou disso como forma de codificar ao extremo e tornar palatáveis os produtos ao grande público também não. A novidade reside em como alguns filmes recentes lidam com a questão do cinema de gênero ao se defrontarem com um vasto imaginário, construído ao longo do século XX (principalmente pelo cinema industrial norte-americano), hoje imerso em um contexto de crise de representações, portanto, crise de modelos consagrados a serem perpetuados eternamente. Novamente, dois filmes universitários apontam para uma mesma tomada de posição perante essa problemática, são eles: Noite perdida e Preto ou branco.

No primeiro caso, ocorre uma opção pela comédia escrachada de cunho adolescente. Elimina-se qualquer traço anárquico potencialmente presente no gênero em prol de uma comédia calcada na sátira de eventos cotidianos da classe média que somente engrossa as fileiras das recentes comédias brasileiras sucessos de bilheteria.

No segundo caso, ocorre uma opção pelo gênero de ação. Dessa forma realiza-se uma revisão histórica do período da ditadura militar brasileira através da estilização gráfica. Reduz-se brutalmente toda a discussão de como o cinema olha para a história e problematiza esse processo histórico truncado do país a um mero desfile da técnica como forma de deslumbre visual. A última cena, inclusive, faz rememorar as observações de Jacques Rivette acerca do travelling de Kapò em sua crítica ao filme de Pontecorvo, intitulada Da abjeção. Assim como em Kapò ocorre uma estetização da morte (apontada por Rivette), em Preto ou branco tem-se uma plasticidade da tortura e do sofrimento contidas no movimento de câmera final.

Nesse contexto, observa-se a opção pelo cinema de gênero principalmente como forma de tentativa de inserção mercadológica e de isenção de responsabilidades nas escolhas do olhar: engrossa-se a fileira da mesmice representada pelas grosseiras comédias hegemônicas no cinema nacional atual e transforma-se um processo histórico traumático e truncado em índice de realidade capaz de corroborar uma estilização condizente com o gênero ação.

Afeto: idosos, crianças e circo

Nina, A nobre e breve história do beijo e Lembranças de Maura lidam com figuras em comum: idosos, crianças e o circo. O trato com essas figuras perpassa por duas formas de posicionamento perante uma pergunta muito frequente em escolas de cinema: por que fazer um filme?

Geralmente, no contexto escolar, em que tais filmes se inserem a resposta é: necessidade – seja de um exercício curricular, seja de um projeto de conclusão de curso. Contudo, a presença massiva de idosos, crianças e do circo no cinema universitário sugere outras respostas para essa pergunta: a possibilidade de falar de si e o afeto como elemento mediador.

A mediação realizada por essas figuras tendem a configurar um olhar estável e conciliador sobre o mundo. Cria-se o afeto, o sentimento, a abordagem do mundo através de uma experiência muito pessoal – o filme como um divã ou um livro de auto-ajuda. Nesse contexto, idosos, crianças e o circo surgem como elementos capazes de suscitar um sentimentalismo promotor desse afeto: carregam em si a inocência perdida e cristalizam a nostalgia como outro dado fundamental. Mais uma vez, ninguém é obrigado a se posicionar, afinal, tudo se justifica pela necessidade em causar uma breve e ligeira emoção, e todos podem sair felizes da sessão, como se nada tivesse acontecido.

Ato de resistência

Volto ao ponto inicial: o que essas características apresentadas pelos filmes tem a nos dizer ou a contribuir acerca de um possível debate sobre as escolas e os cursos de audiovisual, tal como proposto pelo texto de apresentação da mostra no catálogo?

Numa conferência realizada com alunos de cinema da FEMIS em 1987, Gilles Deleuze apontou a seguinte ideia: “Qual é a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a menor informação. Por outro lado, em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Tem algo a ver com a informação e a comunicação, a título de ato de resistência”.

Creio que as tendências apresentadas nos filmes apontam para uma crise da ideia do cinema (da arte) como um ato de resistência, tal como sugere Deleuze. As implicações disso é que cada vez mais se instaura um desligamento do mundo e das questões que o circundam – predomínio do discurso ensimesmado e das ideias inofensivas. Portanto, predomínio do sentimentalismo e falência do debate crítico.

Guilherme Maggi Savioli

Tensões internas no quadro

nina

É difícil “separar” o trabalho dos departamentos em um filme pronto, mas é nítido aqui um requinte e um domínio de técnicas de direção, amparadas por uma montagem sensível em termos de ritmo, que (me) surpreende no conjunto das mostras Cinema em Curso e no conjunto do festival. A escolha por longos planos gerais se sustenta na articulação de tensões internas ao quadro entre pontos de atenção central e periférica que criam um dinamismo interno ao quadro fixo. E o plano-sequência em que o rapaz desenha as flores é impressionante.

E estou me referindo, claro, a virtudes narrativas. Pessoalmente, não descarto a narrativa clássica como alternativa para o cinema contemporâneo. Neste caso, apontar a relevância de um domínio e de um correto emprego dos procedimentos não deixa de ser uma perspectiva neoclássica de “arte = técnica”. Mas, convenhamos, arte não se trata simplesmente de boas ideias. Não se trata, claro, de más ideias, mas o mundo não é binário, e fora da ficção não temos a alternativa melodramática de recorrer ao desengano.

Nina, por exemplo, me deixa com um gosto estranho na boca, a despeito de sua “leveza”. O ponto delicado é se tratar de um filme profundamente alegórico.

Vejo uma metáfora sobre a arte e o trabalho artístico: o artista como bufão, a arte como uma paixão. Essa paixão, no entanto, é artificialmente produzida a partir do zero – elemento que dialoga diretamente com, pelo menos, outros dois filmes da mostra, Pracinha de Odessa e O Tradutor em que prevalece o imaginário do tradutor. A criação responde a um desejo, a uma vontade íntima de que algo exista para mediar a relação com o mundo. Ou seja, a personagem feminina é produto do imaginário da personagem masculina, produzida justamente para dar conta de um desejo interno a ele. E ela torna-se a perspectiva de superação desse universo de solidão e a centralidade do desejo dos dois, pelo qual eles lutam.

Reiterando um lugar já muito explorado pela ficção industrial, a mulher está diretamente associada a “amor” e a “felicidade”, da mesma forma que o palhaço mau repete o vilão absoluto, com relação ao qual a mocinha pode apenas se desiludir. Mesmo num ambiente alegórico, se estabelece um caminho muito claro e direto para essa “resolução” dos eventos. A relação das personagens não evolui do estado inicial de deslumbramento em que se vê a personagem. A ideia de “relação” se vê destituída de toda sua complexidade e perde seu sentido de um processo interminável de troca.

Não apenas o filme reitera um entendimento profundamente idealizado (e assim frustrante) da criação artística e da relação afetiva, como desperdiça seu minucioso trabalho de narração para afirmar um sentimento profundamente romântico e ingênuo com relação à arte. Para meu supremo desgosto, o amor e a simplicidade não dão conta das complicações contemporâneas.

João Pedone

Nina está na Mostra Cinema em Curso 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013