Latinos: sexualidades e gênero em discussão

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por Giovanni Rizzo –

Dos cinco filmes presentes no programa Latinos 1 da mostra latino-americana, três eram ou passavam de alguma maneira pela temática LGBT. Não apenas por uma representação do universo gay, mas com formas de discutir a sexualidade e romper com os tabus. Talvez o cinema e a liberdade do curta-metragem sejam uma saída para a comunidade latino-americana discutir assuntos que não estariam em pauta.

Dessa maneira, dois filmes chamaram atenção pela relevância dos temas dentro desse universo: o chileno Loucas Perdidas, vencedor do Queer Palm no Festival de Cannes deste ano (dado justamente a filmes com a temática LGBT), e o mexicano Glória. Ambos com produções primorosas e que parecem conter um mesmo assunto, mas que possuem particularidades muito grandes em relação às escolhas da direção e condução do curta, além de especificidades dentro do tema para serem considerados um só.

Loucas Perdidas acompanha a trajetória de Rodrigo logo após ser preso durante uma invasão policial no clube onde trabalha como drag queen, o que faz o garoto planejar sua fuga de casa com receio de que seus familiares, principalmente sua mãe, o vejam na televisão. Para isso ele tenta convencer seu namorado, um barbeiro amigo da família a levá-lo daquele lugar. O filme chileno é sensível e contém um ritmo delicado, estudado e cadenciado, apostando em planos estáticos com uma disposição de quadros milimetricamente planejados, no qual a posição das personagens conferem dramaticidade e um subtexto rico àquela trama. Assim, após sua primeira cena, a prisão do protagonista, a história toda se desenrola na casa do garoto, cercado pelas mulheres de sua vida, a mãe e as irmãs, além de seu companheiro, que parece sempre presente naquele mundo. Dessa maneira, Loucas Perdidas constrói um ar de opressão para Rodrigo, tanto nas suas relações familiares quanto naquela casa onde vive, na qual precisa escondido revelar sua própria identidade e a única maneira de se ver livre é através de um furo jornalístico. Só isso acarretaria na sua desejada fuga, ou melhor, sua liberdade.

Por outro lado, o curta Glória aborda a liberdade de gênero, mostrando a vida de um homem motorista durante o dia que ao anoitecer troca o volante pelos palcos de uma boate onde encena seu show como a drag queen Glória. E como o filme é perspicaz ao mostrar em pouquíssimos minutos a vida monótona e acelerada do protagonista, fato evidenciado pela montagem ágil, deixando claro elementos que provavelmente são cotidianos para aquele homem. No entanto, quando chega a noite o motorista deixa pra trás sua rotina e se transforma em Glória, guardando suas chaves e vestindo seu corpete azul.

E nesse clube noturno, onde o protagonista sente-se à vontade, Glória passa a dar importância para os mínimos detalhes daquela vida noturna. A câmera e a direção do mexicano Luiz Hernando de La Penã são fluídas e acompanham aquele personagem inserido naquele universo, o movimento é constante, ágil e ao mesmo tempo sutil, demonstrando toda efervescência do alter ego daquele homem e de seu lugar de trabalho.

Aquela nova roupagem serve justamente como um uniforme de um super-herói, pois o motorista transforma-se em um personagem que dá alegria ao seu público, consola sua companheira de palco que tem problemas com o companheiro que só quer seus seios e seu pênis, e dá show para si mesmo. E depois de tudo isso volta para seu mundo habitual, dá boa noite para suas filhas, sua esposa pergunta como foi o show e eles fecham a noite fazendo amor. Glória é sobre outras formas de sexualidade – impossível não lembrar de Almódovar, o show de drag queen é como o futebol jogado depois do trabalho, uma convenção para a maioria dos homens. O plano em que ele ajuda sua mulher a estender a roupa, ostentando seu corpete azul no varal do condomínio onde vive – e num simples movimento de câmera leva o homem às alturas, tirando-o das grades do prédio/sociedade e o deixando livre –, permite mostrar a total liberdade que aquele homem lida com suas escolhas. Glória é sobre a liberdade que Rodrigo quer um dia possuir, e os filmes são manifestos para que isso ocorra aqui na vida real. Tanto o curta mexicano quanto o chileno Loucas Perdidas são gritos para subverter uma lógica baseada no patriarcado heterossexual que ainda dita os padrões na América Latina.

Glória e Loucas Perdidas estão na Mostra Latino Americana 1. Clique aqui e veja a programação dos filmes no Festival de Curtas 2015

Aprendendo a crescer

confabula de uma menina dissecada

Uma das oportunidades mais interessantes que festivais como o Kinoforum oferecem aos cinéfilos, é a de assistir obras de países como o México, cuja a produção cinematográfica atual raramente chega ao circuito nacional. A terra que nos presenteou com diretores excelentes, como Alejandro Iñarritu, esse ano nos agracia com uma bela obra de fantasia. Contrafábula de Uma Menina Dissecada, de Alejandro Iglesias (xará de Iñarritu), é uma “coming of age story” com ares de conto de fadas macabro e uma impecável direção de arte, aos moldes da escola del Toro, que, vale lembrar, também é mexicano.

Gizella está fazendo 15 anos e sua família burguesa lhe prepara uma grande festa para apresentar a filha, que se tornou mulher, à sociedade. A mãe lhe diz como se portar, o pai lhe ordena o que dizer e a filha mal consegue respirar embaixo de tanta pressão. Sozinha em seu quarto, enquanto termina de se arrumar, a garota nota algo embaixo da cama. Aproxima-se e descobre o objeto: um unicórnio de brinquedo, que lhe faz sorrir pela primeira vez. Assim como a cena citada transparece, é sobre essa dificuldade de abandonar a infância que a obra trata, mas, como toda boa fábula, abusa de metáforas para tecer seus posicionamentos.

Nesse ponto, os mais exigentes podem torcer o nariz e argumentar que a escolha por essa figura de linguagem é pobre e tola, mas, se Milan Kundera afirma que uma simples metáfora é capaz de fazer nascer o amor, podemos supor que uma série delas são capazes de gerar no mínimo alguma reflexão. Aos que eu não consegui convencer na sentença anterior sobre o possível valor das simpáticas alegorias peço que interrompam a leitura por aqui: elas serão encontradas em abundância pelas próximas linhas.

Aos que continuam, peço desculpas por minha extensão digressão. Mas bem, voltemos a trama. Durante o jantar, em meio a figuras mais bizarras que qualquer ser mitológico, a menina nota algo dentro da boca e, incomodada, vai até o banheiro onde descobre que um galho está crescendo dentro de sua boca. O peculiar membro cresce cada vez mais ao decorrer da noite, enquanto Gizella luta para escondê-lo a todo custo. Existe algo na jovem que quer aflorar, rebeldemente, mas a mesma se censura, no desespero de cumprir o seu sacro dever de honrar pai e mãe.

E aí reside o conflito da nossa donzela indefesa. De um lado, o anseio por agradar a mãe, que lhe proíbe de sujar as sapatilhas alvas quando o genuíno desejo de moleca é o de afundar os pés descalços, sem qualquer receio, na lama macia; a obrigação de recepcionar banquetes enfadonhos quando sonhar com unicórnios é muito mais interessante. O medo de crescer quando esse processo significa abandonar todos os prazeres que você conhece até então. A jovem se encontra desarmada em meio à guerra que seus pais declararam contra a sua infância, sem nenhuma trincheira para a mocinha se esconder.

O destino de Gizella, que precisa escolher entre o indivíduo e a instituição familiar, tem cores de tragédia grega; ela, sabores de Antígona, heroína de Sófocles que teve que escolher entre sua família e seu governo; e o drama é familiar a quase todos nós. Como toda fábula indica, por definição, o filme se encerra com uma moral da história. Mas sem a promessa de um final feliz.

Henrique Rodrigues Marques

Contrafábula de uma menina dissecada está na Mostra Latino-americana 5. Clique aqui e confira a programação do filme no Festival de Curtas 2013