Contos da Maré: a inocência e a sagacidade
Por Eleonora Del Bianchi –
Pessoalmente nunca entendo ironias e sempre acredito nas história mais bizarras. Quando questionada de como não desconfio, respondo: tudo é possível!
O curta Contos da Maré me encantou muito por tratar de temas bonitos que já renderam tantas outras produções boas também: a inocência e as histórias orais. Sempre me lembro da cena do filme O Contador de Histórias quando Marguerit e Roberto Carlos assistem a apresentação de rua de um vendedor de bugigangas. Ela compra o que ele diz ser a caneta que a princesa Isabel usou para assinar a Lei Áurea e Roberto fica bravo, pois o homem tinha várias outras, aquela com certeza não era a original: “Eu não estou comprando a caneta, estou comprando a história”, diz ela. É um filme incrível, real e inocente. Ela acredita no menino e ele aprende a ver coisas bonitas no mundo, que não pensava ser possível ver e acreditar e a passar isso adiante.
Também me lembrei do Mundo imaginário do Dr Parnassus falando do desmoronamento do mundo sem as histórias contadas, sem as leituras e o acreditar no faz de conta. Quando somos pequenos ouvimos histórias e tudo faz sentido, não desconfiamos de nossos narradores pois não sabemos muito sobre nada, não criamos padrões. Somente ouvimos e absorvemos as informações. E o mundo parece tão maior e infinito.
O curta mistura a história do Complexo da Maré, conglomerado de favelas na zona norte do Rio de Janeiro, com a da família do diretor e roteirista Douglas Soares, usados como os atores do curta, com a vida cotidiana no local e com as lendas urbanas que marcaram os moradores quando crianças, antes do smartphone e popularização da televisão nas conversas de fim de noite depois do jantar e que repassam hoje aos jovens boca a boca. “Toda a minha infância eu passei no Complexo da Maré, entre meus tios e avós maternos, que me contavam muitas histórias do passado daquele lugar. Queria trazer para a obra a mesma sensação íntima e afetiva que sentia quando meus familiares me recebiam, cuidavam e narravam histórias e lendas para mim, minha irmã e meus primos”, diz o diretor.
Os folclores que eles contam vão desde o inexplicável das noite escuras, sem eletricidade, com barulhos bizarros que relacionavam a lobisomens e usavam para manter os filhos em casa: “A noite é do bicho”; Ao bizarro, como o homem que teve um filho parecido com os porcos que vendia, e que teve de ir até à Polícia de tanta gente que queria ver. E às invenções de locais comuns, como a mulher que cozinhou uma sopa muito ruim que diziam ser cobra, e todo mundo que tomou morreu, só sobrou ela que virava cobra todo ano, começando a descamar na semana santa.
Cada narrador usa uma máscara de animal. Eles podem estar representando a história, mas nem por isso elas deixam de ser reais, de certa forma. Um dos tios diz: “Acho que as coisas hoje não existem mais porque as pessoas pararam de acreditar. As pessoas não conhecem mais, mas quando a gente conta eles ficam fascinados”.
Ao final o avô diz que não toca teclado, que fica no automático e ele toca nota aleatórias. A avó diz que não, que ele toca muito bem.
Ele ri e continua, dizendo que essas historias são mentira, que lobisomem não existe nada. E no fim o vemos tocando. Ele aperta as teclas sem medo, apesar de claramente não saber bem o que está fazendo. Ainda assim elas se harmonizam com o som contínuo do teclado e, apesar de que talvez seja verdade que ele não saiba tocar, ele está feliz tocando – sua esposa fica por perto e gosta de ouvi-lo e o resultado vale a pena escutar.
Contos da Maré está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014