USP 7% e Mater Dolorosa, filmes necessários

mater dolorosa

por Armando Manoel –

USP 7%, de Daniel Mello e Bruno Bocchini, e Mater Dolorosa, de Daniel Caetano e Tamur Aimara, apresentados respectivamente no Panorama Paulista e na Mostra Brasil deste 26º Festival de Curtas Metragens de São Paulo, chegam em boa em hora aos circuitos nacionais de curtas-metragens em tela grande. Afinal, 2015 está ai e o Brasil ainda assiste dia após dia casos de racismo e preconceito de classe explícitos, mas até certo ponto inapontáveis (ou quando, discutidos em canais menores) em certas instituições sociais. USP 7% apresenta depoimentos sobre a implementação de cotas raciais na maior universidade da América Latina e Mater Dolorosa acompanha a mãe do dançarino DG, nos momentos que seguiram sua morte na comunidade Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro.

A Universidade de São Paulo, casa maior no que se refere a produção intelectual do país, ainda se vê imersa em vícios conservadores que a impedem de avançar na questão racial. Do universo de estudantes que ingressam anualmente em seus quadros, cerca de 7% são negros (dados de 2012). O curta parte justamente desta informação para abordar um debate até então pouco exercitado no ambiente universitário: cotas raciais.

USP 7% apresenta uma série de narrativas de pessoas que vivenciam plenamente a questão das cotas. Acompanhamos, por exemplo, a jovem Fernanda Moreira durante o processo de vestibular da Fuvest. Em seus depoimentos, a estudante, trabalhadora e militante do Núcleo de Consciência Negra da própria universidade aponta para a diferença entre a preparação de vestibulandos que vêm de camadas privilegiadas em relação a outros concorrentes, como ela mesmo, negra e oriunda de camadas populares. A emoção e o conhecimento de causa nas falas, bem como o nervosismo da jovem nos levam a uma visão muito próxima da questão – uma pena os diretores não terem dado mais tempo à produção do filme e nos revelado o desfecho da narrativa de Fernanda e o vestibular.

Afinal, por que a USP, uma das primeiras universidades a debater a questão racial, reluta tanto em aplicar artifícios que visam corrigir o racismo institucional em seus quadros? Se a USP é a maior em pesquisa, maior em numero de alunos, enfim, a maior em diversos aspectos, o racismo no campus também tem de ser maior? A força deste curta esta justamente em formular e apresentar, quase que na forma de denúncia, estes e outros questionamentos.

Mater Dolorosa é um filme intenso. Já de início nos vemos perdidos em meio a uma manifestação no Rio de Janeiro, tudo muito rápido, como o samba que preenche ao fundo as imagens. Maria de Fátima da Silva puxa uma manifestação tocando incessantemente um surdão pelas ruas até chegar às regiões centrais da cidade. Seu filho Douglas Silva, o dançarino DG, acabara de ser assassinado numa ação policial no Pavão-Pavãozinho.

Em meio a trechos de poemas de Eurípedes sobre crianças que são lançadas em um mundo em guerras (contexto da guerra entre Grécia e Esparta nos quais foram escritos), Mater Dolorosa nos leva a uma reflexão sobre a realidade de extrema violência que acompanha o cotidiano de diversas regiões do Rio de Janeiro. Muita gente segue o bonde que presta sua última homenagem a DG, as imagens de manifestação pelas ruas, mas principalmente de seu funeral, poderiam enganosamente sugerir uma festa de rua, se descontextualizadas. Mas a energia ali canalizada é clara e direta: os morros, as quebradas, as favelas não aguentam mais a violência instalada. Não aguentam mais inclusive ser vítimas do Estado e da sociedade que pelas mãos da polícia que cada dia mata mais nessas comunidades. Os principais alvos: jovens, negros e pobres, como DG. Justiça! Justiça! Justiça! Grita o povo na rua.

USP 7% e Mater Dolorosa, trabalham com a linguagem do documentário. Ambos fazem refletir sobre a questão do negro no Brasil. Trazem para as telas pontos nevrálgicos da questão do racismo, mostrando como este se manifesta na Educação em São Paulo e na Segurança Púbica no Rio. Os dois curtas são bastante diferentes em seus ritmos e cadências: USP 7% é capoeira Angola, resistência e luta; Mater Dolorosa é samba, combate direto, o morro descendo pro asfalto. Ambos sobre a condição do povo negro em duas das maiores cidades do Brasil em plena década de 10 dos anos 2000. E acima de tudo, filmes necessários, se quisermos mesmo acreditar numa sociedade mais justa e democrática para todos.

USP 7% está no Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015
Mater Dolorosa está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Contos da Maré: a inocência e a sagacidade

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Por Eleonora Del Bianchi –

Pessoalmente nunca entendo ironias e sempre acredito nas história mais bizarras. Quando  questionada de como não desconfio, respondo: tudo é possível!

O curta Contos da Maré me encantou muito por tratar de temas bonitos que já renderam tantas outras produções boas também: a inocência e as histórias orais. Sempre me lembro da cena do filme O Contador de Histórias quando Marguerit e Roberto Carlos assistem a apresentação de rua de um vendedor de bugigangas. Ela compra o que ele  diz ser a caneta que a princesa Isabel usou para assinar a Lei Áurea e Roberto fica bravo, pois o homem tinha várias outras, aquela com certeza não era a original: “Eu não estou comprando a caneta, estou comprando a história”, diz ela. É um filme incrível, real e inocente. Ela acredita  no menino e ele aprende a ver coisas bonitas no mundo, que não pensava ser possível ver e  acreditar e a passar isso adiante.

Também me lembrei do Mundo imaginário do Dr Parnassus falando do desmoronamento do  mundo sem as histórias contadas, sem as leituras e o acreditar no faz de conta. Quando somos pequenos ouvimos histórias e tudo faz sentido, não desconfiamos de nossos narradores pois não sabemos muito sobre nada, não criamos padrões. Somente ouvimos e absorvemos as informações. E o mundo parece tão maior e infinito.

O curta mistura a história do Complexo da Maré, conglomerado de favelas na zona norte do Rio de Janeiro, com a da família do diretor e roteirista Douglas Soares, usados como os atores do  curta, com a vida cotidiana no local e com as lendas urbanas que marcaram os moradores quando crianças, antes do smartphone e popularização da televisão nas conversas de fim de noite depois do jantar e que repassam hoje aos jovens boca a boca. “Toda a minha infância eu passei no Complexo da Maré, entre meus tios e avós maternos, que me contavam muitas histórias do passado daquele lugar. Queria trazer para a obra a mesma sensação íntima e afetiva que sentia quando meus familiares me recebiam, cuidavam e narravam histórias e lendas para mim, minha irmã e meus primos”, diz o diretor.

Os folclores que eles contam vão desde o inexplicável das noite escuras, sem eletricidade, com  barulhos bizarros que relacionavam a lobisomens e usavam para manter os filhos em casa: “A  noite é do bicho”; Ao bizarro, como o homem que teve um filho parecido com os porcos que vendia, e que teve de ir até à Polícia de tanta gente que queria ver. E às invenções de locais comuns, como a mulher que cozinhou uma sopa muito ruim que diziam ser cobra, e todo  mundo que tomou morreu, só sobrou ela que virava cobra todo ano, começando a descamar na semana santa.

Cada narrador usa uma máscara de animal. Eles podem estar representando a história, mas nem por isso elas deixam de ser reais, de certa forma. Um dos tios diz: “Acho que as coisas hoje não existem mais porque as pessoas pararam de acreditar. As pessoas não conhecem mais, mas quando a gente conta eles ficam fascinados”.

Ao final o avô diz que não toca teclado, que fica no automático e ele toca nota aleatórias. A avó diz que não, que ele toca muito bem.

Ele ri e continua, dizendo que essas historias são mentira, que lobisomem não existe nada. E no fim o vemos tocando. Ele aperta as teclas sem medo, apesar de claramente não saber bem o que está fazendo. Ainda assim elas se harmonizam com o som contínuo do teclado e, apesar de que talvez seja verdade que ele não saiba tocar, ele está feliz tocando – sua esposa fica por perto e gosta de ouvi­-lo e o resultado vale a pena escutar.

Contos da Maré está na Mostra Brasil 10. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Os Contos da Maré: folclore é documento

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por Amanda Martinez –

Apesar de classificado como documentário, o curta Contos da Maré (2013), de Douglas Soares, conta mais ficções do que dados estatísticos sobre o surgimento do Complexo da Maré, bairro de baixa renda no Rio de Janeiro. Remetendo aos primeiros moradores da comunidade, o filme escolhe junto de seus entrevistados uma maneira diferente e ao mesmo tempo tradicional de documentar a história de um lugar: contando suas histórias.

Inseridas em um formato documental convencional, com enquadramentos estáticos e abertos dos entrevistados, histórias de família são contadas informalmente à câmera-diretor. Divididas em capítulos, como em um livro, são mitos muito semelhantes ao folclore brasileiro, mesclando animais e pessoas em um só ser através de situações que se repetem – a diária transformação em lobo, a troca de pele da cobra, etc. A ficção se torna cada vez mais presente através de takes noturnos e mais soltos acompanhados de uma forte construção sonora, gerando uma dualidade de gênero que coloca em dúvida a veracidade dos depoimentos dados com convicção pelos moradores da Maré.

Como nas lendas, a resposta a essa indagação nunca é completa, se apoiando mais na relação de confiança entre narrador e ouvinte do que no conteúdo em si. As máscaras vestidas pelos entrevistados colocam-se em meio a isso, dando-lhes o caráter de personagens ao fazer uma analogia entre eles e os animais dos contos. São personagens do filme Contos da Maré que narram histórias mirabolantes e, simultaneamente, personagens (ou animais) de suas próprias histórias, algo que lhes confere uma espécie de credibilidade, mostrando ao espectador a possibilidade de aquilo ter sido realmente presenciado por alguém.

Entretanto, antes que seja possível depositar alguma confiança no que é dito, as próprias testemunhas põe em jogo a realidade de seus contos, desconstruindo a esperada função das histórias de transmitir acontecimentos ou alertar gerações seguintes sobre alguma moral. Os contos da Maré têm fim em si mesmos e sua importância está simplesmente no fato de terem existido em uma comunidade em crescimento, seja para divertir ou botar medo, preenchendo a escassez de pessoas e construções da época.

Ao transitar entre dois gêneros, Contos da Maré traz a lenda como caráter documental de uma sociedade, colocando em pauta o poder das histórias na construção de uma determinada cultura. O folclore criado no Complexo, por compor parte significativa da memória daquela população, serve não só como lembrança, mas também como registro, definindo o passado do local como um período em que os mitos eram verdade e o presente como um tempo em que as pessoas, incluindo seus narradores, já não acreditam tanto em nada disso.

Os Contos da Maré está na Mostra Brasil 5. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014