Cego, mas não pelo sol
Somos amantes de estórias, devoradores insaciáveis de narrativas. Seja lendo livros, indo ao cinema, ouvindo música, navegando na internet, conversando com amigos… É difícil estarmos longe de estórias, boas ou ruins. Vemos nossa própria vida como narrativa, e nos encantamos com muitas que conhecemos. E o poder das estórias, ficcionais ou não, é inegável; é a partir delas que tiramos reflexões a respeito de nossas próprias vidas.
O Sol pode Cegar relata a iniciação sexual do adolescente Paulo com Maria, que trabalha como empregada doméstica em sua casa, e que chega ao fim após a partida dela, depois de ser violentada sexualmente pelos amigos de Paulo. Há no filme três temas que por si só renderiam um filme cada um: a iniciação sexual na adolescência; a diferença imposta a indivíduos através de uma classificação em classes sociais, delimitadas a partir do poder econômico de cada um, e como isso pode afetar as relações sociais entre esses indivíduos; e aquele que estrutura-se como o clímax do filme, o ponto final dessa relação: a violência sexual.
Meu incômodo está no que senti como uma falta de cuidado com a construção narrativa relacionando esses três pilares. Meu foco firma-se sobre o último tema. A partir do momento que os três amigos entram no apartamento de Paulo e são recebidos por Maria, sabemos exatamente o desfecho daquela cena e sente-se a angústia por aquilo que está prestes a acontecer com a personagem. Angústia essa que não é criada apenas a partir da progressão narrativa do filme que encontra seu desfecho ali, mas também por termos em nós o conhecimento do ato hediondo que é o abuso sexual, e sabermos que esse é um ato que acomete muitas mulheres, assim como Maria. E estamos ali, assistindo aquilo, presenciando tudo.
A preocupação é ver que a narrativa fica na superficialidade ao submeter sua personagem a tal violência, e termina sem que possamos sair da sala com algum pensamento ou reflexão sobre o assunto, onde o estupro de Maria está apenas como desfecho chocante para a narrativa, provocador de tensão e choque para aqueles que assistem.
Mas ao retratar em sua narrativa um tema que, por mais infeliz que seja admitir isso, está presente na sociedade e vitimiza tantas mulheres, não seria mais respeitoso, e digo até mesmo mais corajoso, criar algo que possa trabalhar de maneira mais inteligente e profunda esse assunto, e não simplesmente usá-lo para como artifício narrativo para o chocante? Afinal, já somos colocamos em estado de indignação e perplexidade ao ouvir algum outro caso semelhante.
Se as estórias têm um poder que muitas vezes não nos damos conta, a ponto de serem lugares de reflexões sobre como nós mesmos vivemos nossas vidas, é necessário em alguns momentos ter um cuidado com aquilo que estamos narrando, pois o choque pelo choque pode funcionar durante o tempo de exibição, mas após a sessão pouco fica.
Tratando-se de um tema que aflige tantas pessoas, a narrativa não se debruça sobre ele, usando-o no fim apenas de maneira espetacular, o que pode ser uma ofensa para aquelas(es) que já foram vítimas da violência sexual ou já estiveram próximos desse crime. E com uma narrativa assim logo ela é esquecida, por não trazer nada que possa nos servir como um aprendizado frente nossa própria realidade, ironicamente falando dela mesma.
Pablo Gea