Degustação na casa ao lado

o sol pode cegar

O filme O sol pode cegar, de Toti Loureiro, retrata de maneira cativante alguns temas de grande importância nas discussões sociais contemporâneas. Cativante no sentido de conseguir prender a atenção do espectador e despertar sentimentos – não necessariamente bons.

O enredo se dá em torno de Paulo, um garoto que perde a virgindade com sua empregada doméstica e conta para seus amigos, que interpretam aquilo como um “convite para uma degustação”. A forma como os garotos encaram o corpo de Maria é absolutamente desprezível e o roteiro se desenvolve de modo a passar para o espectador todo o asco, agonia e ódio que aquela situação merece. O espectador percebe o que vai acontecer antes de ver na tela e isso só aumenta o sentimento de aflição e raiva.

A escolha dos atores e das locações foi muito apropriada para dar verossimilhança à história e escancarar para o público quão plausível é essa situação, como aqueles garotos poderiam perfeitamente ser filhos ou amigos dos espectadores. O comportamento deles reflete toda uma lógica de total discriminação de classe social, raça e gênero que permeia as cabeças de muita gente. E a naturalidade com que eles agem demonstra como esse tipo de coisa acontece muito mais perto e com muito mais frequência do que aparece no jornal ou que as pessoas ficam sabendo.

As cenas do parque, em que os amigos conversam, são o ponto fraco do filme. A linguagem do jovem é muito dinâmica e coloquial, as gírias entram nas frases com uma naturalidade que se perde facilmente quando escrita num roteiro. Com falas ditas de maneira forçada e pouco realista, os atores – à exceção de Vinícius Tardio – deixam a desejar na interpretação, perdendo o timing das piadas e provocações. Melissa Arievo, por sua vez, está muito bem, interpretando com verdade e vivacidade, e fazendo Tardio crescer nas cenas que têm juntos.

O desfecho da história também poderia ter sido diferente. O encontro de Maria e Paulo no final do filme merecia mais dramaticidade e uma reação muito maior da moça diante daquilo a que ele a submeteu permitindo que seus amigos fossem até sua casa falar com ela. Talvez Loureiro tenha falhado no que diz respeito à abordagem desse tema tão delicado, que é tratado por Maria com mais naturalidade do que deveria, mas o diretor foi muito feliz na maneira como conduziu a narrativa, sem que o filme se tornasse cansativo e fosse apenas um pretexto para dar uma lição de moral no espectador.

Marina Moretti

Cego, mas não pelo sol

o sol pode cegar

Somos amantes de estórias, devoradores insaciáveis de narrativas. Seja lendo livros, indo ao cinema, ouvindo música, navegando na internet, conversando com amigos… É difícil estarmos longe de estórias, boas ou ruins. Vemos nossa própria vida como narrativa, e nos encantamos com muitas que conhecemos. E o poder das estórias, ficcionais ou não, é inegável; é a partir delas que tiramos reflexões a respeito de nossas próprias vidas.

O Sol pode Cegar relata a iniciação sexual do adolescente Paulo com Maria, que trabalha como empregada doméstica em sua casa, e que chega ao fim após a partida dela, depois de ser violentada sexualmente pelos amigos de Paulo. Há no filme três temas que por si só renderiam um filme cada um: a iniciação sexual na adolescência; a diferença imposta a indivíduos através de uma classificação em classes sociais, delimitadas a partir do poder econômico de cada um, e como isso pode afetar as relações sociais entre esses indivíduos; e aquele que estrutura-se como o clímax do filme, o ponto final dessa relação: a violência sexual.

Meu incômodo está no que senti como uma falta de cuidado com a construção narrativa relacionando esses três pilares. Meu foco firma-se sobre o último tema. A partir do momento que os três amigos entram no apartamento de Paulo e são recebidos por Maria, sabemos exatamente o desfecho daquela cena e sente-se a angústia por aquilo que está prestes a acontecer com a personagem. Angústia essa que não é criada apenas a partir da progressão narrativa do filme que encontra seu desfecho ali, mas também por termos em nós o conhecimento do ato hediondo que é o abuso sexual, e sabermos que esse é um ato que acomete muitas mulheres, assim como Maria. E estamos ali, assistindo aquilo, presenciando tudo.

A preocupação é ver que a narrativa fica na superficialidade ao submeter sua personagem a tal violência, e termina sem que possamos sair da sala com algum pensamento ou reflexão sobre o assunto, onde o estupro de Maria está apenas como desfecho chocante para a narrativa, provocador de tensão e choque para aqueles que assistem.

Mas ao retratar em sua narrativa um tema que, por mais infeliz que seja admitir isso, está presente na sociedade e vitimiza tantas mulheres, não seria mais respeitoso, e digo até mesmo mais corajoso, criar algo que possa trabalhar de maneira mais inteligente e profunda esse assunto, e não simplesmente usá-lo para como artifício narrativo para o chocante? Afinal, já somos colocamos em estado de indignação e perplexidade ao ouvir algum outro caso semelhante.

Se as estórias têm um poder que muitas vezes não nos damos conta, a ponto de serem lugares de reflexões sobre como nós mesmos vivemos nossas vidas, é necessário em alguns momentos ter um cuidado com aquilo que estamos narrando, pois o choque pelo choque pode funcionar durante o tempo de exibição, mas após a sessão pouco fica.

Tratando-se de um tema que aflige tantas pessoas, a narrativa não se debruça sobre ele, usando-o no fim apenas de maneira espetacular, o que pode ser uma ofensa para aquelas(es) que já foram vítimas da violência sexual ou já estiveram próximos desse crime. E com uma narrativa assim logo ela é esquecida, por não trazer nada que possa nos servir como um aprendizado frente nossa própria realidade, ironicamente falando dela mesma.

Pablo Gea

O Sol Pode Cegar está na Panorama Paulista 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013