Reflexões sobre o material fílmico

Três filmes da Mostra Panorama Paulista 3 levantam algum tipo de reflexão sobre o material fílmico, seja através da metalinguagem ou do registro documental, e trazem uma discussão interessante sobre as criações, os objetivos, as formas e os caminhos das produções.

Meta, de Rafael Baliú, é o mais explícito por mostrar o diretor dentro do próprio filme que dirige e as discussões que envolvem a própria produção do filme e de seu objetivo. A premissa acaba por proporcionar momentos hilários nos quais personagens e realizadores se confundem.

Quando o corte pedido pelo diretor em cena não é realizado pelo câmera, por exemplo, aquele precisa sair de quadro e fazê-lo sozinho. Ou quando o microfonista tem uma opinião a apresentar, este aparece e redireciona o microfone para si mesmo. Fechando astutamente a proposta, a meta do filme e a do diretor/personagem se confundem como se confundem a realidade e a ficção dentro do próprio curta.

Em Piove, il film di Pio, de Thiago Mendonça, conhecemos um pouco da história de Pio Zamuner, diretor dos 12 últimos filmes de Mazzaropi. Por meio de uma conversa com o cineasta em um bar, começa uma viagem ao passado da Boca do Lixo, reduto de Pio. À medida que retoma as memórias daquela época, o diretor acaba por interferir na própria gravação do documentário, sugerindo enquadramentos, posições de câmera e até a mise-en-scène dele e do diretor.

Dessa forma, é incrível que possamos conhecer um pouco mais de Pio e de seu trabalho não apenas por suas palavras, mas por meio da própria feitura do filme a que estamos assistindo. Ao compartilhar a direção do filme com o próprio objeto do registro, o diretor acaba por dar mais vida ao cineasta em seu filme, realmente o filme de Pio.

Já em Cine Camelô, de Clarissa Knoll, um cineasta-ambulante vende filmes de curta-metragem de acordo com o interesse de cada um dos seus clientes. Com uma câmera apontada para um fundo que alterna entre algumas paisagens, é possível retratar as histórias das pessoas que vivem um cotidiano apressado e distante do cinema.

Com uma estrutura de produção muito simples, mas com o intenso carisma de Maurício de Barros, o cineasta que também atua, é possível criar desde uma fantasiosa luta entre um samurai e um leão até um melodrama de época. Com disposição e imaginação, um cinema que retrata e se aproxima do público, criando um material especifico para cada pessoa.

Três propostas que ampliam a discussão sobre as formas e os conteúdos cinematográficos criados e os objetivos intrínsecos a cada uma delas, suscitando outros caminhos para o material fílmico.

Marcelo Félix Moraes

Meta, Piove, il Film di Pio e Cine Camelô estão na Mostra Panorama Paulista 3. Clique aqui para ver a programação dos filmes

Isto não é um filme de cowboy

À primeira vista, Cowboy, de Tarcisio Lara Puiati, é um registro de um personagem. Mas as aparências enganam e, aos poucos, aquilo que parecia ser verdadeiro é colocado em xeque. Em Homem-bomba (2009), por exemplo, sobre dois meninos que tentam sobreviver ao tráfico, o diretor abordava sutilmente a tênue fronteira entre o real e o não-real no desfecho. Em seu mais novo curta, o realizador mergulha de vez nesse universo.

No início, o espectador acompanha um personagem que se apresenta, em voz off, como um homem comum que, por vingança, torna-se matador profissional. Poucos minutos depois, ele conta outra versão da sua história. E depois outra. E outra. E assim por diante. Enquanto o texto narrado muda, as imagens do mesmo homem montado em sua bicicleta continuam em um plano-sequência.

O diretor confronta o espectador com essas diversas narrativas, sem deixar claro o que é ou não é real. O artifício é simples, mas a questão levantada pode ser ainda maior, na medida em que o curta pode ser compreendido como uma forma híbrida entre o documental e o ficcional.

Por um lado, as versões apresentadas pelo protagonista podem não ser necessariamente reais, mas ficções. Por outro, a história de Cowboy poderia, sim, ser verdadeira; ao ser recontada, explora-se a semelhança dela com a de outros tantos cowboys no mundo. Outra ainda: qualquer uma daquelas vidas poderia ser a dele.

Nesse sentido, o documentário deve somente expor as ações registradas com a tradicional presença do narrador? Deve alinhar-se com o que ficou conhecido como “cinema verdade”, a partir da concepção de Dziga Vertov de que a câmera capta a essência do real? Ou deve apenas sugerir visões de mundo, uma vez que é uma construção subjetiva de quem está por trás das lentes, como os filmes de Jean Rouch ou Eduardo Coutinho evidenciam?

À parte disso, Cowboy tem o mérito de mostrar um olhar sobre o norte do país. Finalmente, e para dar ainda mais sabor ao debate metalinguístico, há todo um mistério no lusco-fusco do entardecer parintinense e no título, que também aparenta ser aquilo que não é. Um filme de cowboy.

Camila Fink

Cowboy está na Mostra Brasil 7. Clique aqui para ver a programação do filme