Filosofia do guardar

o que lembro, tenho2

Nas páginas do Grande Sertão Veredas, o curta dirigido por Raphael Barbosa, O que Lembro, Tenho, recebeu seu nome. No romance de Guimarães Rosa, há certa dificuldade em compreender o tempo. Narrado em primeira pessoa, Riobaldo conta suas lutas, seus amores, suas memórias, controlando ou tentando controlar ele próprio o tempo de suas digressões. “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados”.

O curta, como disse Raphael no início da sessão, foi baseado em suas vivências com o mal de Alzheimer. Assim, ele traz Maria e sua filha Joana, que moram num apartamento, mas com a evolução da doença, parecem viver cada vez mais em suas lembranças e na sua impotência.

Andreas Huyssen no texto Seduzidos pela memória mostra como dos anos 1980 para cá o foco das expressões (artísticas sobretudo) parece ter passado dos “futuros presentes” para os “passados presentes”, havendo um deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo. Enquanto os sistemas de informação ampliam sua capacidade de armazenamento motivados pelos processos de registro e museificação, o lapso de memória e as doenças a ela relacionadas mostram-se cada vez mais preocupantes. Dá-se assim forma à filosofia do guardar: “O que lembro, tenho”.

Interessante notar sob esse aspecto como o curta teve uma aparente grande aceitação do público. Afirmo pelo soar das palmas, pelos comentários ao redor e pelas seleções pelas quais ela já passou. O tema da memória desenrola-se quase de forma datada, fazendo com que a identificação com o público seja potencializada, já que é de fácil aproximação: a filosofia do guardar é bastante compartilhada.

Esse “datado” ultrapassa o tema e vai se mostrando em vários dos planos e transições usados no filme. O retomar das cenas estabelecendo ligação entre os tempos passado e futuro, como o chinelo dentro do fogão ou o varrer dos milhos, já eram cantados e funcionaram quase didaticamente. Não deu para se perder no tempo com Maria: nem ela controlava suas digressões, nem eu pude ser controlada por elas.

Talvez tivesse sido gostoso se perder com Maria, pois a sinceridade com que foi interpretada lembrou por vezes a protagonista de Girimunho. Mas já que o roteiro não me permitiu tal passeio, fiquei observando a impotência de Joana. A simplicidade das cenas e dos cenários, alguns planos que soavam caseiros e as falas simples foram promovendo um crescimento da personagem, que não caiu em um dramalhão, caminhou pela delicadeza.

Funcionou como um filme de homenagem e de fazer carinho na memória, mas a maneira que foi apresentado, muitas vezes didática, nem me prendeu com Joana, nem me deixou viajar com Maria. Também me fez falta apostar no poder de reinventar memórias e questionar esse lugar que a lembrança ocupa. “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte”.

Carol Neumann

O que Lembro, Tenho está na Mostra Brasil 1 e na Estado Crítico. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

Uma pérola multicolorida

O sertão nordestino faz, de alguma forma, parte de nós. Do morador que ali vive sob o sol ardente ao mais urbanoide dos brasileiros, nos sentimos um pouco parte daquela realidade. Talvez pelas diversas apropriações já feitas, seja pelas pinceladas dos Retirantes, com os Miguilins das letras, com as imagens de um sertão que vira mar e um mar que vira sertão, ou com as melodias das asas brancas.

Dia Estrelado, pérola de estreia de Nara Normande, reúne essas e outras referências em um corpo único e original. Não por seu enredo, mas pela tradução estética do tema em uma belíssima animação stop motion. O roteiro é simples: uma família em busca da sobrevivência em um lugar pobre e árido. Tão seco que uma gota d’água vira pedra. Contrastam com essa “não-vida” as cores fortes e a textura do expressionismo de Van Gogh. O céu do cenário foi inspirado na obra Noite Estrelada e reproduz as grossas e largas pinceladas do artista.

Feita com massa de modelar, bonecos de arame articulados e muita paciência — quatro anos de trabalho –, a animação dialoga com todas as artes, e leva para o cinema esse drama sem um tom piegas. A realizadora pernambucana acerta a mão na poesia e no realismo, presente no piscar de olhos dos personagens, nos detalhes dos cabelos e na única flor que ainda tenta sobreviver. Uma metáfora do sertanejo, “antes de tudo, um forte”.

A perfeição técnica dos movimentos e da fotografia, trabalhada em conjunto com as mudanças de tonalidades da massinha, produz um efeito naturalista. No entanto, a diretora também deixa espaço para o humor e o lúdico, preenchendo essas vidas secas com uma graciosidade e uma paleta de cores infinitas.

Camila Fink

Dia Estrelado está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme