A CORPORIFICAÇÃO DE UMA MEMÓRIA EXTERNAUtopia, de Rayane de Penha (AP)

por Heitor Montipó Lopes

Após lançar em 2017 um de seus primeiros trabalhos, o curta “Cartas sobre nosso lugar: mulheres do Vila Nova”, a diretora Rayane de Penha chega com uma nova obra, desta vez captando uma essência bem intimista e investigativa de um espírito próximo. Uma filha procura histórias e relatos vividos por seu pai, que morreu no garimpo, traçando um paralelo histórico e social frente à prática econômica e a situação financeira e emocional daqueles que precisam desse trabalho para sobreviver.

A construção narrativa do documentário se utiliza bastante de relatos falados, de indivíduos que trabalharam no garimpo, comentando a prática e trazendo questões que só quem viveu sabe. Mas o conteúdo não impacta por ele mesmo, deve ser acompanhado de uma forma, de uma articulação visual e linguística que potencialize aquilo que é mostrado. Rayane não só dá voz a rostos, mas os preenche de identidade e sentimento. Existe ali uma melancolia bem vigente, uma dor, um pesar que paira enquanto histórias são contadas, imagens acompanhadas de uma melodia lírica, intensificando os laços mais dramáticos. Mas a diretora equilibra sua encenação com sensibilidade e um estilo que abraça o espectador e aqueles sobre quem comenta, fazendo do luto uma mensagem de carinho e lembrança.

Tal aspecto cativante da obra se dá muito pela forma com que a cineasta filma tudo que é fora dos relatos pessoais. O modo de filmar um martelo batendo em uma pedra, a mão passando no rio, os toques do corpo na terra. Por mais banal que isso pareça, contribui para a formação de uma lógica cênica, do estabelecimento de um contato, de uma textura narrativa que trará o espectador para mais perto daquilo que é evidenciado. Não se trata somente de expor um drama, mas também de trazer signos, expressões, movimentos e gestos que consigam transmitir para a tela aquilo que não é dito.

É como se a procura de Rayane não se reduzisse somente a achar relatos ou resgatar as memórias de um homem, mas estender o espírito de corpos para a terra, traçar uma ligação entre o ser e o espaço – indissociáveis dentro dessa prática econômica. A materialização de uma aura terrena e humana se dá por uma aproximação de meios, aspectos e traços reconhecíveis, focando não só em um significado aparente, mas num efeito prolongado e conjunto.

O termo utopia, que dá nome ao curta, remete a algo distante e inalcançável. É como se a diretora, em seu processo, entendesse que realmente existem cenários e desejos que não vão se materializar. Ela se debruça naquilo que é tangível, no que está ao seu alcance, trazendo para sua obra uma fluidez sentimental, sensorial e natural do mundo para o mundo.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *