MIRANTES ABANDONADOS, REABITADOS, REVISITADOSHospedeiros Naturais (Reino Unido), de Nick Jordan

por Luis Gustavo Cardoso

O mirante abandonado, construído em torno da enorme árvore de pinho, é o objeto que abre o curta Hospedeiros naturais, filmado com câmera de visão noturna, em infravermelho, do diretor inglês Nick Jordan. São dois minutos em escala de cinza, um dia eterno em que predominam duas linguagens: aquela da imagem, textura áspera, objeto que se dá a ver, sombra que se infiltra na luz; e aquela dos sons, vento que passa nas folhas, rumor da floresta, a voz da mulher na rádio a fazer um índice de eventos catastróficos, pandêmicos, humanos: uma breve história da destruição. A voz e nosso trajeto são acompanhados pelo som de cordas que, quem sabe, oferecem um tema ao nosso próprio cortejo.

Mirante é a estrutura de madeira a partir da qual se pode ver o deserto do real, campos de caça, uma casa abandonada, vestígios da passagem do tempo. Mirante é também o olhar que mira as formas concretas, ingressa na paisagem dos escombros, examina as ruínas, recolhe objetos abandonados que souberam, por si mesmos, integrar-se à natureza. Galões de gasolina vazios, pôsteres da caçada, roteiros rasgados, placas que relatam a presença de animais ausentes. Blocos de concreto pendem de uma corda como dois tabletes de açúcar que esperam servir o chá ao dono da casa que jamais voltará. E o vento, as folhas, a luz de um dia eterno, e as colônias de fungos que crescem em todos os cantos com suas formas puras.

Entra-se na casa onde os colchões, camas, poltronas, cadeiras, lugares do repouso, sofrem o desgaste da ausência e do tempo. Onde ainda a ausência e o tempo são as sentinelas a cobrar passagem pelas portas, escadas e janelas, lugares da passagem. Apenas os morcegos desafiam a sua vigília e a nossa mirada: seu voo rápido, desordenado, orientado apenas pela surpresa, profetiza as pandemias que virão. Mas os morcegos não suportam a claridade invasora, o dia eterno a reinar na casa abandonada. No teto da sala, o seu corpo pequeno repousa e prepara o antídoto para o maior dos agentes destruidores, para o olhar humano que observa, passivo, a sua própria destruição. O morcego é, assim, o anti-humano, a bomba alada que a natureza preparou para a menos controlável de suas invenções.

Volta-se pela casa e andar por seus corredores é ter, de um lado, os retratos da catástrofe que já se abateu sobre nós. Do outro lado, a voz que profetiza, do passado, o evento futuro de cujo presente agora somos testemunhas. Ao fundo sabemos que tocam cordas para um cortejo fúnebre, sabemos do rumor do vento nas folhas, das asas rápidas que o morcego não controla. Sabemos da luz que entra. De um lado as imagens e do outro a voz, ambas correndo paralelas pelo corredor. Uma casa abandonada, assim como um planeta abandonado, tem muitas entradas. Entrar nela é fácil, difícil é sair. E assim como os morcegos, procuramos uma saída de emergência. E vamos pelos corredores. Sentimos que em algum momento a ficha vai cair: as imagens e a voz, que correm paralelas, quem sabe vão se encontrar dentro de nós. “Não é bizarro que esta criatura, a mais intelectual de todas, esteja destruindo a sua própria casa?”.

A voz que nos acompanha, do início ao fim, é da primatologista e antropóloga inglesa Jane Goodall, em entrevista sobre degradação ambiental e a pandemia. O seu depoimento dura dois minutos. O diretor Nick Jordan tomou-o, como a um mirante, e subiu por suas escadas.

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