O TEMPO DOS ORIXÁS

Poética da subjetividade

Os filmes do programa Mulheres Negras 1: Mergulho Ancestral já mostraram que têm em comum, para além do óbvio, o quanto as diretoras colocam de si mesmas no seu trabalho. A produção baiana “O Tempo dos Orixás” marca fortemente essa característica de subjetividade de autor, se assemelhando em seu propósito artístico-político a “Mumbi 7 Cenas Pós Burkina”. A diferença é estética: enquanto “Mumbi” se vale de experimentalismos, “O Tempo dos Orixás” explora um lado religioso e místico, mais “categorizável” como ficção proriamente dita, mas que nem por isso deixa de ter aquele tom pessoal em que enxergamos a autora projetando sua própria infância na tela.

A forma como a criança Lili ocupa quase sempre o centro da tela/câmera diz que devemos nos aproximar dela pra entender sua atmosfera. Essa escolha funciona porque, mesmo que a atriz mirim pareça às vezes estar pouco à vontade, a ambientação sonora e a construção fotográfica do filme funcionam tão bem que a engrenagem de fato consegue criar essa atmosfera peculiar, no qual a realidade pessoal está circunscrita por religiosidade e fenômenos místicos.

Os atores secundários que encarnam parentes ou mesmo os próprios orixás valorizam nossa protagonista porque são feitos pra construir essa ambientação em torno dela e do que ela vive. Legítimos canais auxiliares de expressão individual. O tempo é dos orixás porque é o tempo de Lili em meio à sua inocência se criando, se orientando, se desenvolvendo em meio às participações recorrentes das entidades.

Os créditos à mãe, no fim do curta, fazem intuir Lili como a diretora do filme da sua vida, misturando novamente realidade ficcional/realidade material e ocupando, na sucessão de imagens, o espaço visual que o rosto da menina tomou na tela durante a maior parte do tempo. Aqui parece haver um espaço infindável para metaliguagens. A dita barreira entre ficção e realidade não precisa existir; em psicologia e em arte, é melhor e mais útil quando não existe.

A produção técnica faz o espectador visitar a religiosidade de perto; a fotografia e os recursos de áudio mapeiam bem um espaço de atuação e ainda um espaço off. Conseguimos enxergar as rodas de umbanda mesmo quando vemos planos médios mostrando apenas um terço dessas rodas, porque temos a competente estereofonia desenhando o resto. É assim a técnica do filme, sempre optando por mostrar de perto, colocar junto, montar um percurso de ficção subjetiva claramente autoral, perpassada por uma religiosidade popular. Uma obra poética que requer e explora grande sensibilidade.

(Rogério Henrique Gonçalves)

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