Antropofagia, tecnofagia, autofagia. Bulimia.

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Mas não está claro que o problema está na terra? Essa aí com a letra minúscula que a gente pisa em cima e às vezes esfarela ou afunda, mas que começou a crescer e a engolir o Sol: febre do cimento, aço fálico.

Mudo. No quarto, um cigarro e o amanhecer: Não estamos sonhando. Ligou o gravador: o som das novas construções invade o filme, a febre é barulhenta, pede, além das palavras de um discurso de resignação, ação.

Vandalismo. São as pessoas que sempre estiveram ali com seu som e seus corpos reboliços que invadem a tela em Lagoa Remix. Parte da sessão Tomada Única, o filme superoitista traz a dança e as brincadeiras de quem frequenta a lagoa, a qual será também alvo futuro de reapropriação. Em volta da lagoa, carros de som com volume muito alto compõem a trilha do filme; o cenário, talvez pela proximidade das sessões, lembrou o de Céu sobre a água de Agrippino, revestindo-o da contemporaneidade da dança do bumbum, do período tão atual de manifestações e “datenismos” e explicitando o comum que se tornou a mediação. “Esse prefeito não presta, é eu que tô falando”, diz a moça pra câmera.

É eu que tô falando. “Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça o seu! arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível”. Torquato Neto em 1971 bradava pelo que hoje é quase hábito, senão demanda. O olhar sobre o contemporâneo e sobre o referencial ao qual pertence o artista, fez a produção superoitista na década de 70 resistir ao que pregava instituições e a cultura oficial, enfatizando a experiência pessoal como espaço de crítica política, econômica, etc. É a partir de seu próprio chão que o funcionamento do espaço é reavaliado (maldito foi o dia em que Adão resolveu fazer um testamento), quase um happening na vizinhança, o registro de um ato performático que rompe com o comportamento socialmente aceito. Dentro dessa política, o corpo ganha espaço no filme Super-8, e é por aí que caminha a dança do bumbum de Lagoa remix ou a masturbação e transa em espaços públicos de Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu.

Risse de tanto cu. Com certeza, de todos os filmes, Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu foi o que mais risadas trouxe à sala de exibição. Não foi só pela atitude a la Jackass com suas máscaras e bichinhos masturbatórios que as bocas se encheram de risos, algo ali incomodou e, se incomodou, deve ser bom, deboche é isso (também). Três rapazes espalhando amor pela cidade onde uma nova Dubai vai crescer monumental acabam por se jogar nos campos cercados nas proximidades do “haver avencas” relembrando os planos finais de Toques.

Monumental. O desmaio diante do monumental falo de cimento, depois da trajetória que percorre estátuas e outras construções “postais” (em forma de poste) é sedução que mata em Falos e Badalos. Mata sim e pra não morrer é preciso merda. Como disse o professor Rubens Machado após a exibição: “O 35mm dedica-se a construir monumentos; o 16mm a questioná-los; o Super-8 vem jogar merda nos monumentos”. Merda em forma de efeito visual, em trepidação, a bitola não é Super-8, mas se faz necessário a ação, a ação imaginária ou o terrorismo imagético. Buscando construir “o mundo que queremos”, Não estamos sonhando joga bombas nos prédios ao redor, destrói a imagem deles.

Terrorismo, aí vêm as câmeras de segurança, de vigilância, uma violência contra os corpos em planos contra plongée. Mas a suspeita de bomba é outra, é a que está na caixa de Marcelo Pedroso em Câmara Escura e que entra pela porta ou pela caixa de correio em uma propriedade privada, que filma e é logo julgada e condenada, uma arma, claro, a caixa preta de Vilém Flusser é logo tratada como criminosa, então é hora de fazer o filme.

Filmes bulímicos. Sem generalizações didáticas, vão pras telas. Nem sempre muitas telas, infelizmente. A produção superoitista de 70 já não tinha o público como grande preocupação, sendo assistido por quase ninguém em sua própria época. Espero que festivais como o Curta Oito, Kinoforum, youtube, vimeo e outros canais possam fazer essa interface. O desbunde aparenta muitas vezes como atitude vazia ou apenas risível, mas febres precisam baixar antes do colapso, não se vomita ar.

Carol Neumann

Não Estamos Sonhando e Câmara escura estão na Mostra Brasil. Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes

Lagoa Remix, Amor e outras construções e Falos e Badalos estão na mostra Tomada Única. Clique aqui e conheça o projeto

Privacidade em tempos de cólera

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Marcelo Pedroso volta em Câmara Escura aos mesmos temas abordados em seu tão comentado documentário Pacific (2011): privacidade e limites borrados na contemporaneidade entre o público e o privado.

No curta-metragem, em vez de o diretor pedir os registros particulares feitos por dispositivos móveis ou câmeras amadoras como em seu outro filme, parte para uma abordagem mais ativa ao entregar ele próprio os meios para captação de imagens a pessoas aleatórias. O resultado? O inverso ao obtido em Pacific.

Pedroso cria uma caixa simples de madeira na qual dentro se encontra uma câmera ligada. Toca a campainha em duas casas cercadas por altos muros, deixa a encomenda e vai embora sem que o dono do local trave qualquer tipo de relação com ele. No dia seguinte volta aos locais se apresentando como aquele que deixou o pacote. A recepção não é a das mais calorosas.

Um simples dispositivo móvel deixado à revelia pode causar transtornos terríveis. Os que receberam a encomenda alegam quebra de privacidade, como se o diretor tivesse invadido seu espaço privado e sagrado ao entregar uma câmera de presente. Note, não é que o cineasta tenha posicionado uma câmera na porta das casas gravando a movimentação (como em Caché de Haneke, com sua câmera espreitando os personagens) ou tenha bisbilhotado a janela alheia com uma lente de grande alcance (curioso como Janela Indiscreta). Não, o meio de produção estava nas mãos dos receptores. Estava dada a eles a opção de filmar, olhar, observar. As duas respostas foram de medo, pânico e terror.

A cena mais emblemática do curta é quando o diretor volta no dia seguinte para conversar com um dos moradores. O discurso falado e o discurso visual se chocam completamente: o áudio capta a bronca do homem que recebeu o pacote, dizendo que não autoriza o uso de sua imagem, que se trata de crime e invasão de privacidade, enquanto que a câmera focaliza, num plano fixo, duas câmeras de segurança na casa que apontam para a rua. Quem está quebrando a privacidade? E qual privacidade?!

Numa sociedade cada vez mais vigiada por câmeras e dispositivos de rastreamento inseridos em produtos banais do dia a dia, que tornam possível saber mais sobre a vida e cotidiano de um indivíduo do que qualquer um que conviva com ele, é difícil estabelecer os limites entre a esfera privada e a pública – muros altos e fortificados não mudam esta realidade. Ambas as famílias desligaram os dispositivos depois de recebê-los, atitude não possível ao caminhar pela rua e ser observado por cada câmera de casa, do governo, de instituições comerciais.

A diferença entre Pacific e Câmara Escura se dá na falsa sensação de escolha. No primeiro projeto, foram pedidos os registros feitos durante a viagem; neste foi dada a câmera sem que esta fosse pedida. Entretanto a privacidade está ausente em ambas por uma configuração da sociedade atual – que digam Obama e as corporações como Google, Apple e Facebook quando Snowden afirmou o que todo mundo sabia, mas preferia deixar em silencio: nossa vida privada é uma mentira, tudo está escancarado.

Em tempo: em 2012 um grupo de artistas alemães enviou uma caixa com uma câmera dentro para a Embaixada do Equador destinada a Julian Assange com a proposta de filmar em tempo real todo percurso do objeto até chegar ao seu destino final. Talvez Assange gostaria de receber uma das caixas de Marcelo…

Malu Andrade

Câmara Escura está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013