Privacidade em tempos de cólera

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Marcelo Pedroso volta em Câmara Escura aos mesmos temas abordados em seu tão comentado documentário Pacific (2011): privacidade e limites borrados na contemporaneidade entre o público e o privado.

No curta-metragem, em vez de o diretor pedir os registros particulares feitos por dispositivos móveis ou câmeras amadoras como em seu outro filme, parte para uma abordagem mais ativa ao entregar ele próprio os meios para captação de imagens a pessoas aleatórias. O resultado? O inverso ao obtido em Pacific.

Pedroso cria uma caixa simples de madeira na qual dentro se encontra uma câmera ligada. Toca a campainha em duas casas cercadas por altos muros, deixa a encomenda e vai embora sem que o dono do local trave qualquer tipo de relação com ele. No dia seguinte volta aos locais se apresentando como aquele que deixou o pacote. A recepção não é a das mais calorosas.

Um simples dispositivo móvel deixado à revelia pode causar transtornos terríveis. Os que receberam a encomenda alegam quebra de privacidade, como se o diretor tivesse invadido seu espaço privado e sagrado ao entregar uma câmera de presente. Note, não é que o cineasta tenha posicionado uma câmera na porta das casas gravando a movimentação (como em Caché de Haneke, com sua câmera espreitando os personagens) ou tenha bisbilhotado a janela alheia com uma lente de grande alcance (curioso como Janela Indiscreta). Não, o meio de produção estava nas mãos dos receptores. Estava dada a eles a opção de filmar, olhar, observar. As duas respostas foram de medo, pânico e terror.

A cena mais emblemática do curta é quando o diretor volta no dia seguinte para conversar com um dos moradores. O discurso falado e o discurso visual se chocam completamente: o áudio capta a bronca do homem que recebeu o pacote, dizendo que não autoriza o uso de sua imagem, que se trata de crime e invasão de privacidade, enquanto que a câmera focaliza, num plano fixo, duas câmeras de segurança na casa que apontam para a rua. Quem está quebrando a privacidade? E qual privacidade?!

Numa sociedade cada vez mais vigiada por câmeras e dispositivos de rastreamento inseridos em produtos banais do dia a dia, que tornam possível saber mais sobre a vida e cotidiano de um indivíduo do que qualquer um que conviva com ele, é difícil estabelecer os limites entre a esfera privada e a pública – muros altos e fortificados não mudam esta realidade. Ambas as famílias desligaram os dispositivos depois de recebê-los, atitude não possível ao caminhar pela rua e ser observado por cada câmera de casa, do governo, de instituições comerciais.

A diferença entre Pacific e Câmara Escura se dá na falsa sensação de escolha. No primeiro projeto, foram pedidos os registros feitos durante a viagem; neste foi dada a câmera sem que esta fosse pedida. Entretanto a privacidade está ausente em ambas por uma configuração da sociedade atual – que digam Obama e as corporações como Google, Apple e Facebook quando Snowden afirmou o que todo mundo sabia, mas preferia deixar em silencio: nossa vida privada é uma mentira, tudo está escancarado.

Em tempo: em 2012 um grupo de artistas alemães enviou uma caixa com uma câmera dentro para a Embaixada do Equador destinada a Julian Assange com a proposta de filmar em tempo real todo percurso do objeto até chegar ao seu destino final. Talvez Assange gostaria de receber uma das caixas de Marcelo…

Malu Andrade

Câmara Escura está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja as próximas sessões do filme no Festival de Curtas 2013

Terreno onírico

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O Castelo, do premiado diretor Rodrigo Grota, com certeza será um dos curtas mais comentados do festival pela qualidade e consistência do trabalho.

O curta flerta com o universo fantástico e de terror. Cinco amigos vão passar o dia em uma floresta, em tempo e local não definidos. O mais tímido da turma, o deslocado Rafael, ao sair de um mergulho na cachoeira se vê sozinho no local e situações estranhas começam a acontecer quando ele encontra uma casa (na verdade, um castelo) abandonado.

Em um primeiro momento pode parecer uma aproximação com A Bruxa de Blair pelos mistérios de um local inóspito. Entretanto o curta flerta mesmo é com o universo fantástico e simbólico de Lars von Trier como em Anticristo, ao apresentar elementos como a natureza como força primordial, mística, cheia de segredos que não devem ser desvendados – tal como Rafael diz em sua única fala do filme, “é um segredo”.

E principalmente com O Iluminado, de Stanley Kubrick. A cena inicial em um plano aberto com pinheiros muito altos em fileira tendo o personagem posicionado ao centro remete ao longa do diretor norte-americano pela cor do céu, pela sensação de solidão e pelo silêncio imposto. A casa/castelo assemelha-se ao hotel de Jack Torrence no estilo arquitetônico de montanhas. Em duas cenas, Rafael mira a imensa fotografia daquele espaço em preto e branco. Um tempo congelado, como a própria casa, abandonada de vida terrena, mas com uma força estranha como em O Iluminado. Os cortes secos na imagem como acontece no longa, blackouts do personagem em sonho, transição para situações de terror. Em uma das cenas, o personagem vê seu amigo morto no chão de um dos cômodos, uma cena filmada em vermelho intenso, um sangue que remete ao sangue que inunda o corredor do hotel de Kubrick.

O personagem Rafael, quieto, é um ótimo observador e ouvinte, está a toda hora com seu gravador vintage e sua câmera fotográfica. Não para menos, os trabalhos de Rodrigo Grota possuem notadamente uma preocupação com a fotografia e o som, fazendo deles quase personagens de suas histórias. Nesse curta o som tem destaque preponderante ao dar o tom da história, ao revelar sons não cotidianos, dar voz ao mistério. A fotografia também impressiona com cores vibrantes lavadas, o que cria uma atmosfera de falsa leveza, onírica.

Esteticamente belo e perturbadoramente inquietante, O Castelo é um excelente trabalho de experimentação narrativa e visual.

Malu Andrade

O Castelo está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013

De Sganzerla a Tarantino, uma geleia geral

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Faroeste – Um Autêntico Western, exibido Mostra Brasil 7 no CineSesc, foi premiado no Festival Anima Mundi este ano como Melhor Curta Brasileiro pelo júri popular no Rio de Janeiro. A animação de Wesley Rodrigues realmente merece elogios.

No sertão árido um urubu ao nascer, sem pai nem mãe, toma gosto pelo crime e violência desde pequeno e se torna o grande terror da região. Se trocássemos a palavra urubu por criança teríamos o personagem mais icônico do cinema brasileiro desde a Retomada: Zé Pequeno. O contra-plongéé de Cidade de Deus de Dadinho com a arma rindo de maneira tresloucada aparece aqui com o pequeno urubu. Não só este “bandido” parece ser homenageado no curta goiano: o urubu marginal/cangaceiro aparece rodando em alta velocidade num carro conversível em algumas cenas, atirando contra tudo e contra todos como o Bandido da Luz Vermelha, outro personagem clássico dos anti-heróis brasileiros.

Assim como o longa de Sganzerla era uma pot-pourri, ou geleia geral, de referências pops e cinematográficas, o curta Faroeste – Um Autêntico Western também o é. A violência vingada por mais violência e o espaço sem lei são temas recorrentes não só no Western tradicional, como também no cangaço brasileiro que cinematograficamente bebeu muito no gênero americano (o Nordestern como classificou Salvyano Cavalcanti de Paiva).

Soma-se a essas referências o elemento oriental, não apenas esteticamente, mas também na figura do matador profissional de aluguel, um samurai raposa que irá vingar a morte de uma coelhinha pelo bandido urubu. A vingança como aproximadora da cultura ocidental e oriental por excluídos é recorrente na cinematografia pop e tem seu expoente máximo com Kill Bill de Tarantino – a trilha sonora, aliás, voltada mais para o gênero western contemporâneo, parece sofrer influencia do diretor.

Esteticamente, Wesley Rodrigues mescla de maneira muito feliz elementos da grafic novel com cores mais vibrantes e formas mais geométricas para o universo cruel do urubu, além do anime japonês de cores mais pastéis e elementos mais arredondados para as vítimas do bandido e seu espaço de convivência. Ambas as referências trabalham muito com a velocidade, imprimindo um ritmo veloz ao curta, e de planos em detalhe ou super closes que ajudam a criar a tensão entre os personagens.

Alguns dos pontos mais interessantes do curta são traço e técnicas de animação 2D, a opção por deixar marcado o traço do desenho, a textura de técnicas utilizadas como o uso de giz de cera e tinta. Isso faz com que o espectador veja um trabalho autoral e não apenas uma história bem contada.

Com certeza Faroeste – Um Autêntico Western terá uma carreira vitoriosa em todos os festivais que participar.

Malu Andrade

Faroeste – Um Autêntico Western está na Mostra Brasil 7. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013