Caminhando por sensações

o inverno de zeljka

Panorama bem interessante da produção nacional atual, vou destacar alguns pontos de cada filme da Mostra Brasil 5 sem traçar nenhuma semelhança explicita entre eles. Foco aqui nas particularidades de cada um as semelhanças são consequência.

Os filmes selecionados são de vários locais do Brasil. Alias, não só do Brasil: temos o curta O Inverno de Zeljka, de Gustavo Beck (o quinto filme do diretor), que se passa entre Croácia, Dinamarca e Brasil; Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus (sétimo filme do jovem e experiente diretor), que se passa no Ceará; Não Estamos Sonhando, de Luiz Pretti (nono filme do diretor), de Minas Gerais; Cajamar, de Bruno Risas (belíssima estréia do diretor), se passa em São Paulo; e Nascemos Hoje, Quando o Céu estava Carregado de Ferro e Veneno, de Marco Dutra e Juliana Rojas (nono filmes dos diretores), que se passa em algum lugar da via láctea, talvez?

Começamos com O Inverno de Zeljka, curta que foi pensado num projeto de um longa com dois episódios. Nesse filme em preto e branco o que mais me chamou a atenção foi a parte sonora, ou não sonora, pois ele é completamente sem som, nem uma palavra nem um ruído, nem uma musiquinha de fundo, o que me fez imergir totalmente nas imagens, e estas eram bem lentas, frias e silenciosas, contavam em forma de documento a lenda do Inverno de Zeljka, com uma narrativa com ares de primeiro cinema. Simples, só que diferente e inovadora, tanto que a principio nem eu entendi o que estava vendo ali. Diria que é um filme difícil de digerir até cair a ficha.

Do silêncio absoluto fomos para a risada do menino sapeca, criativo e divertidíssimo Mauro em Caiena, meu curta preferido dessa sessão. Projeto bem pessoal do diretor Leonardo Mouramateus – que também participou da sessão especial Desbunde Tomada Única com Lagoa Remix, onde usou fragmentos de seu filme Europa. O documentário é sobre seu tio Mauro (como citou o diretor na apresentação de seu curta) e da saudade que ele deixou em toda família, em especial na avó e no narrador/personagem após partir para a Guiana Francesa.

Mouramateus nos conduz através da história com uma narrativa em forma de carta e poesia, as imagens são independentes da narração e ao mesmo tempo amarradas a ela. É traçado um paralelo entre as personagens do menino, de Mauro e do narrador. Em alguns momentos dos filmes as personagens se fundem, o menino brinca, sobe em arvore, pula muros, assim como Mauro que tem a “capacidade de se transformar em dinossauro ou lembranças”, assim como o narrador que quando a vó via chegar e de longe achava que era Mauro chegando, pois eles tem o caminhar parecido. Depois desses deliciosos 19 minutos até eu fiquei com saudade de Mauro e desejando que ele volte a Caiena para que eu possa ver mais histórias como essa.

O terceiro filme dessa mostra tem três pontos que eu quero destacar. Começo pela fotografia: o uso magnífico da cor branca na primeira cena de Não Estamos Sonhando dá um ar de paz e tranquilidade ao curta, que é também característica da personagem, como se de fato fosse um sonho, o que ao longo do filme vai ser totalmente desconstruído. Outro ponto que vale a pena ser destacado é a direção de arte que cumpriu seu papel majestosamente, dando muitas pistas sobre o personagem, que podemos observar ser organizado, calmo, centrado – todo o cenário reflete o personagem. E o terceiro, o som, que é também personagem dentro do curta. O som é o que interage com o outro personagem, o som é o que faz o personagem e a trama se movimentar e se modificar. “Filme sobre o que acontece perto de onde o diretor mora” disse a produtora na apresentação da sessão. Filme que consegue abordar a evolução da cidade traduzida em prédios e o impacto dessa evolução no indivíduo que tem o seu espaço invadido, nesse caso pelo barulho.

Depois de todos os ruidos do filme anterior ainda com zunidos no ouvido vamos a Cajamar e passamos da perturbação física para a perturbação mental. Diferente dos outros três filmes esse ja é bem mais colorido. A personagem sente uma dor de estômago que se manifesta externamente tanto nela quanto em quem ela encontra em sua jornada diária. A partir do momento em que é questionada “quem é você?” essa dor vai ficando cada vez mais forte e além das pessoas essas marcas começam a aparecer nos lugares e o filme começa a tomar rumos estranhos, tudo fica onírico e existencialista.

Embalados por esse clima mais lúdico terminamos com essa experiência. Além de outros estados, outros países, vamos para outro mundo! Entramos num buraco de minhoca e expandimos nossa mente para receber Nascemos Hoje, Quando o Céu Estava Carregado de Ferro e Veneno, fragmento do longa de episódios Desassossego (Filme das maravilhas), cuja proposta é uma carta-manifesto baseada em um bilhete encontrado no armário de uma adolescente. Cineastas de vários lugares responderam a carta com um fragmento de filme que compõe o longa.

O que é mais interessante no curta é a proposta estética, inspirada nos filmes em VHS o que nos remete automaticamente ao final dos anos 80 começo de 90. O filme tem cara de sátira com tons de homenagem aos musicais da época, principalmente os da Disney, e de forma bem humorada nos leva nessa viagem com os dois personagens desiludidos na Terra, a moça com sua profissão e o rapaz com o relacionamento, para lugares jamais antes habitados.

Danielly Ferreira

Antropofagia, tecnofagia, autofagia. Bulimia.

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Mas não está claro que o problema está na terra? Essa aí com a letra minúscula que a gente pisa em cima e às vezes esfarela ou afunda, mas que começou a crescer e a engolir o Sol: febre do cimento, aço fálico.

Mudo. No quarto, um cigarro e o amanhecer: Não estamos sonhando. Ligou o gravador: o som das novas construções invade o filme, a febre é barulhenta, pede, além das palavras de um discurso de resignação, ação.

Vandalismo. São as pessoas que sempre estiveram ali com seu som e seus corpos reboliços que invadem a tela em Lagoa Remix. Parte da sessão Tomada Única, o filme superoitista traz a dança e as brincadeiras de quem frequenta a lagoa, a qual será também alvo futuro de reapropriação. Em volta da lagoa, carros de som com volume muito alto compõem a trilha do filme; o cenário, talvez pela proximidade das sessões, lembrou o de Céu sobre a água de Agrippino, revestindo-o da contemporaneidade da dança do bumbum, do período tão atual de manifestações e “datenismos” e explicitando o comum que se tornou a mediação. “Esse prefeito não presta, é eu que tô falando”, diz a moça pra câmera.

É eu que tô falando. “Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça o seu! arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde. Mostre. Isso é possível”. Torquato Neto em 1971 bradava pelo que hoje é quase hábito, senão demanda. O olhar sobre o contemporâneo e sobre o referencial ao qual pertence o artista, fez a produção superoitista na década de 70 resistir ao que pregava instituições e a cultura oficial, enfatizando a experiência pessoal como espaço de crítica política, econômica, etc. É a partir de seu próprio chão que o funcionamento do espaço é reavaliado (maldito foi o dia em que Adão resolveu fazer um testamento), quase um happening na vizinhança, o registro de um ato performático que rompe com o comportamento socialmente aceito. Dentro dessa política, o corpo ganha espaço no filme Super-8, e é por aí que caminha a dança do bumbum de Lagoa remix ou a masturbação e transa em espaços públicos de Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu.

Risse de tanto cu. Com certeza, de todos os filmes, Amor e outras construções ou uma boca que abraçasse tanto cu foi o que mais risadas trouxe à sala de exibição. Não foi só pela atitude a la Jackass com suas máscaras e bichinhos masturbatórios que as bocas se encheram de risos, algo ali incomodou e, se incomodou, deve ser bom, deboche é isso (também). Três rapazes espalhando amor pela cidade onde uma nova Dubai vai crescer monumental acabam por se jogar nos campos cercados nas proximidades do “haver avencas” relembrando os planos finais de Toques.

Monumental. O desmaio diante do monumental falo de cimento, depois da trajetória que percorre estátuas e outras construções “postais” (em forma de poste) é sedução que mata em Falos e Badalos. Mata sim e pra não morrer é preciso merda. Como disse o professor Rubens Machado após a exibição: “O 35mm dedica-se a construir monumentos; o 16mm a questioná-los; o Super-8 vem jogar merda nos monumentos”. Merda em forma de efeito visual, em trepidação, a bitola não é Super-8, mas se faz necessário a ação, a ação imaginária ou o terrorismo imagético. Buscando construir “o mundo que queremos”, Não estamos sonhando joga bombas nos prédios ao redor, destrói a imagem deles.

Terrorismo, aí vêm as câmeras de segurança, de vigilância, uma violência contra os corpos em planos contra plongée. Mas a suspeita de bomba é outra, é a que está na caixa de Marcelo Pedroso em Câmara Escura e que entra pela porta ou pela caixa de correio em uma propriedade privada, que filma e é logo julgada e condenada, uma arma, claro, a caixa preta de Vilém Flusser é logo tratada como criminosa, então é hora de fazer o filme.

Filmes bulímicos. Sem generalizações didáticas, vão pras telas. Nem sempre muitas telas, infelizmente. A produção superoitista de 70 já não tinha o público como grande preocupação, sendo assistido por quase ninguém em sua própria época. Espero que festivais como o Curta Oito, Kinoforum, youtube, vimeo e outros canais possam fazer essa interface. O desbunde aparenta muitas vezes como atitude vazia ou apenas risível, mas febres precisam baixar antes do colapso, não se vomita ar.

Carol Neumann

Não Estamos Sonhando e Câmara escura estão na Mostra Brasil. Clique aqui e veja as próximas sessões dos filmes

Lagoa Remix, Amor e outras construções e Falos e Badalos estão na mostra Tomada Única. Clique aqui e conheça o projeto