Quintal: mergulhar no portal cinematográfico

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por Adriana Gaeta –

Quintal é um experimento sobre linguagem. Se inicialmente mostra um casal de idosos e seu cotidiano, o curta rapidamente nos insere no universo do realismo fantástico, com o qual o diretor André Novais (Fantasmas, Pouco Mais de um Mês) vem flertando em outros curtas. Desse reconhecível mundo da casa e do quintal, o filme nos leva em uma viagem por universo nonsense e muito divertido.

Ele parte da observação do cotidiano da casa dos pais do diretor, Maria José Novais Oliveira e Norberto Novais Oliveira, na casa da família. Uma sacola de fitas eróticas é achada. O protagonista masculino se deleita com as imagens. Enquanto isso, um forte vendaval quase leva Maria pelos ares. Da mesma maneira que ele surge, vai embora. Mas, no quintal um estranho “portal” é aberto.

Enquanto isso, Norberto se deleita em seu aparelho televisivo, onde bundas prefeitas em poses provocativas se besuntam de óleo. Fascinado pelas imagens, Norberto mergulha no portal. Maria por sua vez não sente falta do marido durante todo o período e mantem suas atividades cotidianas. Norberto ressurge, sem explicar a nós espectadores onde foi. O elemento fantástico no filme está inserido em um cotidiano e não carece de explicação. Cabe a nós, espectadores, recriarmos esse lugar.

Nas cenas seguintes, Norberto apresenta sua tese “Bundas e óleos”, tema que foi objeto de um profundo estudo. O portal do quintal então poderia ser uma metáfora do portal televisivo, do mergulho no universo erótico, ou uma abertura para a consciência da sexualidade na terceira idade. Nada nos é explicado. O filme não dá possíveis trilhas a serem percorridas. Cabe a nós espectadores também mergulharmos no portal cinematográfico. O mergulho é de Norberto em um mundo paralelo e também o de nós, na nossa própria capacidade de (re)criação. Quintal nos teletransporta para o interior de nosso mundo imaginativo, e nos convida a ser co autores do curta metragem. E o mergulho, é bom avisar, é de cabeça.

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Da organização fílmica do sujeito

como sao crueis os passaros da alvorada

Rodrigo Sá –

À sua maneira, um filme pode ser muitos filmes. Dada a não produção de uma impressão geral que permita uma interpretação do sentido, o filme constrói-se por meio de um processo de negação de síntese onde não se atribui aos elementos determinações semânticas permanentes. Filmes que se utilizam desse procedimento fogem daquilo que comumente se espera de uma narrativa fílmica. Em uma narrativa tradicional, a unidade do geral e do particular verifica-se sem mediações: sublinha-se o caráter orgânico de tais obras. Nas obras inorgânicas – nas quais conserva-se uma abertura em si mesma –, a unidade do geral e do particular não está dada. A negação do sentido produz um choque no receptor, no momento em que esse percebe que apenas ele é capaz de produzir o momento de unidade da obra. A estética do choque é um procedimento para acabar com a imanência estética e conceder à obra um potencial de transformação do comportamento daquele que entra em contato com a ela.

Como São Cruéis os Pássaros da Alvaroda é construído sob essa inorganicidade estrutural. No entanto, não é apenas a forma do filme que assume esse aspecto. A própria vida do personagem dialoga com essa ausência de um sentido fixo, fechado em si mesmo. Os acontecimentos do personagem parecem sempre palpebrear a vertigem dos seus abismos interiores. Forma e conteúdo – ambos marcados pelo caráter inorgânico – fundem-se e promulgam uma narrativa que outorga ao próprio vazio uma capacidade explosiva. Tudo se passa como se o fogo pudesse surgir mesmo no vácuo. Construído sob essa esfinge indeterminista, o filme de João Toledo desponta como um dos curtas mais promissores da Mostra Brasil.

As indicações do GPS no início do filme já indiciam o desnorteamento de uma busca fadada a nada encontrar, senão o vazio da própria (in)existência. Logo em seguida, a visualização do personagem atrás das grades da janela denunciam o aprisionamento pelo qual se dilacera a existência do personagem. As primeiras informações verbais acerca dele são obtidas a partir da descrição feita por aqueles que seriam seus pais adotivos. Esse modo de apresentação do personagem é muito significativa se pensarmos em algo que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade: uma impossibilidade de falar de si. O discurso do sujeito sobre si mesmo é invalidado em função da miríade de instituições que colonizam o discurso e detém a verdade sobre eles. O filme, já em seu começo, põe em questão duas delas: a família e a psiquiatria. Ambas estão instaladas no cerne da sociedade capitalista, constituindo-se, assim, como um dos seus principais aparelhos controladores.

Neste ponto, é necessário lembrar que a sociedade capitalista põe em ação seus modelos hegemônicos de subjetividade, reproduzem e internalizam, com seus aparelho sociais de reprodução, um sistema de repressão e limitações que inviabiliza o discurso do sujeito. Uma nova gramática do ser nasceu com a psiquiatria e moldou de maneira decisiva a percepção do sujeito contemporâneo, funcionando como uma peça importante para a consolidação dos modos de gestão social do capitalismo. O personagem “D” é analisado, descrito, codificado por uma psiquiatria que acredita possuir a verdade quanto à loucura; quando, na realidade, é a loucura que possui a verdade sobre a psiquiatria.

A família, por sua vez, opera uma reificação do indivíduo ilustrada tanto nas ordens que lhe fizeram de pronto quanto no distanciamento inscrito na própria fala do pai que, na presença do filho, fala com a mulher utilizando o pronome da terceira pessoa, evidenciando as formações insulares desenvolvidas no seio da estrutura familiar. Aparentemente acostumado a esse tratamento, o filho chega ao café de costas, como se assim pudesse passar despercebido, sem a necessidade de escutar os pronunciamentos dos “pais”.

Essa indeterminação pessoal terá como consequência uma despossessão de si mesmo, um esvaziamento do ser. O curta retrata essa decorrência quando o personagem, na presença dos pais, desaparece subitamente, deixando à vista apenas um quadro composto por uma infinitude de formas geométricas sem conexão entre si. A desconexão das figuras do quadro simbolizam a própria desconstrução a qual o sujeito está submetido na sociedade capitalista. A cena nos faz recordar Os Residentes (2010), outro filme da nova safra do cinema mineiro que guarda semelhança formais com o curta em questão.

A sequência seguinte, além de contar com uma beleza plástica exuberante, acentua ainda mais esse vazio. A cena transcorre aparentando que as pessoas que andam de patins estão deslizando sobre um nada flutuante. Destaca-se o plano-sequência do travelling lateral executado com uma matemática dos movimentos bastante preciso. O espectador fica sob o estase da experiência do voyeurismo.

Desde cedo, é possível perceber que o filme configura seus protocolos de organização de narrativa, planos, montagem, etc por intermédio das disposições psíquicas do personagem principal. O todo do filme é redefinido a partir do interior do sujeito. Em outras palavras: trata-se da construção de uma espécie de dramaturgia subjetiva centrada na figura elementar do personagem principal, o “D”. Ao adotar essa estratégia, o filme constrói sua diegese e mobiliza seu personagem cujas ações organizam um tempo fora do comum e variável em sua complexidade, mas mantendo uma conexão particular com a experiência social, isto é, com a sociedade permeada pelas estrutura hegemônicas de construção de subjetividade.

Buscando relacionar o filme ao contexto das produções nacionais, busquemos um fragmento do ensaio de Hernani Heffner, publicado na Cinética, intitulado “Sem Futuro”. Analisando o cinema brasileiro contemporâneo, o crítico e conservador da cinemateca do MAM-RJ escreveu: “Não interessa mais, porém, a denúncia da opressão político-econômica, do colonialismo, do autoritarismo, por exemplo. O eixo desloca-se da luta coletiva para a afirmação individual pelo desejo, pela sexualidade, pela criatividade.” A partir dessa conceituação, é facilmente assinalável que o filme de João Toledo, à sua maneira, se insere nessa tradição desse “Novíssimo Cinema Brasileiro”

Em seus desvelamentos, o curta assinala um conjunto de situações marcadas por uma repetitividade do gesto. O bonequinho do banheiro que executa um movimento eternamente igual, o telefone que toca indefinidamente, a chamada que ninguém atende, a bola de tênis que salta de um lado para o outro, as cigarras que entoam exaustivamente suas cantigas noturnas, o carro que insiste em não funcionar, as paisagens da cidade que se repetem avenidamente, o cabelo que teima em não obedecer ao movimento do pentear. A ausência de sentido acentua a ineficácia dos gestos, tão sem solidez como a própria materialidade do vazio. Tudo se passa como se a vida houvesse de ser repetida sempre a mesma assim como a piada dos mineirinhos contada várias vezes durante o filme. No limite, o ato mais rebelde parece consistir em contar uma piada até pulverizar a imaginação.

Numa cena fatídica, um amigo liga para “D” convidando-o para sair e ele responde mecanicamente: “não, não dá, tenho que trabalhar, não rola, não dá, não, não, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola”. A reiteração da fala é consoante ao mesmo ritmo de trabalho, atividade essa que impede-o de sair. O trabalho, enquanto atividade produtiva, requer uma uniformidade e repetição extenuante dos gestos. A relação profunda entre os regimes sociais de trabalho e a construção da subjetividade individual permite-nos compreender a associação entre trabalho e a repetição da fala. A instituição trabalho funciona como mais um elemento definidor do sujeito e, por consequência, de seus sofrimentos psíquicos.

A inadequação ao mundo do personagem é semelhante a do peixe que navega nas águas de uma privada, impedindo que o personagem urine, ainda que um mictório esteja posicionado ao seu lado. Até mesmo o estado orgiático da festa em que ele está não é capaz de retirá-lo de sua indiferença. A vida é revestida de uma inoperância como a fila de bebedor paralisada pela lentidão do personagem em beber água.

O final do filme permanece em aberto. O eclipse das circunstâncias – deambulação noturna e tanque de gasolina vazio – levam para um quarto de motel o personagem e um galão de gasolina. Não se chega a saber o que aconteceu. No entanto, tal indefinição não é nada mais que uma redundância. Afinal, o que é uma morte para quem parece já estar morto há muito tempo?

Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada está na Mostra Brasil 8. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015