Quintal: mergulhar no portal cinematográfico

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por Adriana Gaeta –

Quintal é um experimento sobre linguagem. Se inicialmente mostra um casal de idosos e seu cotidiano, o curta rapidamente nos insere no universo do realismo fantástico, com o qual o diretor André Novais (Fantasmas, Pouco Mais de um Mês) vem flertando em outros curtas. Desse reconhecível mundo da casa e do quintal, o filme nos leva em uma viagem por universo nonsense e muito divertido.

Ele parte da observação do cotidiano da casa dos pais do diretor, Maria José Novais Oliveira e Norberto Novais Oliveira, na casa da família. Uma sacola de fitas eróticas é achada. O protagonista masculino se deleita com as imagens. Enquanto isso, um forte vendaval quase leva Maria pelos ares. Da mesma maneira que ele surge, vai embora. Mas, no quintal um estranho “portal” é aberto.

Enquanto isso, Norberto se deleita em seu aparelho televisivo, onde bundas prefeitas em poses provocativas se besuntam de óleo. Fascinado pelas imagens, Norberto mergulha no portal. Maria por sua vez não sente falta do marido durante todo o período e mantem suas atividades cotidianas. Norberto ressurge, sem explicar a nós espectadores onde foi. O elemento fantástico no filme está inserido em um cotidiano e não carece de explicação. Cabe a nós, espectadores, recriarmos esse lugar.

Nas cenas seguintes, Norberto apresenta sua tese “Bundas e óleos”, tema que foi objeto de um profundo estudo. O portal do quintal então poderia ser uma metáfora do portal televisivo, do mergulho no universo erótico, ou uma abertura para a consciência da sexualidade na terceira idade. Nada nos é explicado. O filme não dá possíveis trilhas a serem percorridas. Cabe a nós espectadores também mergulharmos no portal cinematográfico. O mergulho é de Norberto em um mundo paralelo e também o de nós, na nossa própria capacidade de (re)criação. Quintal nos teletransporta para o interior de nosso mundo imaginativo, e nos convida a ser co autores do curta metragem. E o mergulho, é bom avisar, é de cabeça.

Quintal está na Mostra Brasil 1. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

Um cinema de velhinhos

geru

por Artur Ivo –

É interessante como muitos curtas estão bem ligados à família e as vertentes mais exploradas são crianças/adolescentes e idosos; os idosos se destacam bastante, acho eu que seja por causa de sua apatia e simplicidade – é mais fácil fazer um curta com eles, e também por causa que idosos sempre tem algo para dizer. O espectador muitas vezes aparece como um confidente deles, alguém que está lá só para ouvir seus problemas e suas histórias, como um terapeuta ou um Eduardo Coutinho. Suas experiências e seu relatos são muitas vezes exagerados e os idosos acabam quase endeusados, imaculados, “os sábios idosos que poucos ouvem, vou fazer ouvi-los através do meu curta”.

No entanto, alguns realizadores conseguem captar seus idosos de forma muito legal, frequentemente reinventando a câmera e seu papel no filme, colocando-a dentro da cena, sempre percebida pelo seu personagem mais sábio, e principal, claro. E o cineasta, em todos os casos (mesmo naqueles que não reinventa a câmera), pauta seu protagonista em ações familiares, comuns para todos – por exemplo o jantar de família, a foto de família, a visita ao seu avô, o que contribui para o espectador não se perder quando a câmera muda de lugar ou quando alguma situação inusitada aparece em cena.

Como reinvenção do papel da câmera destaco dois curtas: Geru e Vailamideus. Ambos usam sua câmera dentro da cena e são disfarçados de documentário: o personagem principal não sai do quadro, percebe a câmera e interage com ela. Essa permanência dos idosos no quadro faz com que eles fiquem cheios de carisma para com a plateia, ao contrário de seus familiares. Enquanto estes andam, se movem e falam num ritmo frenético, os dois protagonistas são mudos, pouco expressivos, e esse carisma, esse contraste e essa permanência na tela os deixam interessantes.

Apesar dos curtas serem quase idênticos em relação aos papéis e ações dos seus personagens, considerando o plano de imagem são quase opostos. Em Geru, seu personagem é seguido enquanto anda por aí, arrasta cadeiras e almoça, até uma hora em que ele encontra a câmera face a face. A partir daí o filme se torna todo subjetivo, não vemos mais o velhinho, mas vemos o que ele vê. Por outro lado, Vailamideus só tem um plano – o filme inteiro a anciã fica sentada, com sua família tirando fotos com ela, ninguém olha pra ela, ela não fala nada, não se move, não faz gesto algum, mas mesmo assim ela é interessante e a plateia entende seus sentimentos, inclusive os compartilha.

Mas por que será que se fazem tantos filmes de idosos? Parece um tema interessante, familiar
e ao mesmo tempo esquecido dos grandes centros de cultura – eu mesmo consigo listar poucas peças e livros sobre o tema, e filmes também. Entretanto parece um tema comum em curtas brasileiros, pois além desses dois também assisti a A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês? e Pausas Silenciosas, todos com algum traço de documentário e com idosos como personagens principais. Fico pensando também se não seria um modo de
conseguir história mais fácil, ainda mais para um documentário – nesse sentido lembro de O Gaivota, um curta brasileiro que passou no Anima Mundi desse ano que também falava sobre velhice.

De qualquer forma posso destacar que mesmo que os cineastas utilizem o tema idoso eles não se privam apenas na construção de documentários com suas histórias e memórias. Dos filmes que citei aqui, três deles são focados nisso, já os outros dois (que foram os que mais analisei) tentam pensar na vida do idoso e na sua expressão, além de conseguirem criar novas formas da câmera para isso.

Amor próprio

guida

por Andréia Figueiredo

O Panorama Paulista 2 com toda a certeza foi uma experiência inesquecível. Saí da sessão ansiando por mais. Por mais do mesmo e mais de obras incríveis e cativantes que te encantam daquele modo sutil. O meu favorito foi o Guida, que pelas palavras da diretora Rosana Urbes, se trata de “uma homenagem a tudo que é velho”. E assim com essa citação, é que passamos a entender mais sobre a história.

O curta-metragem é todo feito pela técnica tradicional de animação em 2D e cria ambientes com formas harmoniosas, belas e verdadeiras, que insere automaticamente o espectador nesse novo universo. A história gira em torno da personagem Guida, uma mulher mais velha e com algumas rugas, que tem uma vida cômoda e sem grandes emoções, vivendo em uma eterna rotina como arquivista há 30 anos. Porém, isso muda ao encontrar um anúncio de jornal que diz que se procura modelos vivos para posar, fazendo-a se interessar.

A poesia do roteiro está inteiramente na procura do que nos motiva, inspira e faz com que nos sintamos vivos. No começo do filme, fica claro que a personagem não se sente bem com o que vê no espelho, simplesmente não aceita que os anos passaram e que sua juventude se foi, o que nos é mostrado quando se recorda de sua aparência quando jovem. Ao ter a iniciativa de posar como modelo vivo, tendo que estar completamente nua, Guida acaba por se libertar de seus medos. Isso nos faz refletir sobre o papel da arte como meio de expressão artística do indivíduo e sua importância para o mundo.

Trata-se definitivamente de uma história de amor. Além disso, da certeza que não importa a idade, o que aconteceu e o que ainda tem a acontecer, a vida está constantemente se renovando. Frequentemente não percebemos as oportunidades que nos rodeiam com o único objetivo de adquirir qualquer forma de crescimento. Guida retrata a beleza da velhice e a mais antiga e complicada história de amor: o amor que envolve amar a si mesmo.

Guida está na mostra Panorama Paulista 2. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014