Da organização fílmica do sujeito

como sao crueis os passaros da alvorada

Rodrigo Sá –

À sua maneira, um filme pode ser muitos filmes. Dada a não produção de uma impressão geral que permita uma interpretação do sentido, o filme constrói-se por meio de um processo de negação de síntese onde não se atribui aos elementos determinações semânticas permanentes. Filmes que se utilizam desse procedimento fogem daquilo que comumente se espera de uma narrativa fílmica. Em uma narrativa tradicional, a unidade do geral e do particular verifica-se sem mediações: sublinha-se o caráter orgânico de tais obras. Nas obras inorgânicas – nas quais conserva-se uma abertura em si mesma –, a unidade do geral e do particular não está dada. A negação do sentido produz um choque no receptor, no momento em que esse percebe que apenas ele é capaz de produzir o momento de unidade da obra. A estética do choque é um procedimento para acabar com a imanência estética e conceder à obra um potencial de transformação do comportamento daquele que entra em contato com a ela.

Como São Cruéis os Pássaros da Alvaroda é construído sob essa inorganicidade estrutural. No entanto, não é apenas a forma do filme que assume esse aspecto. A própria vida do personagem dialoga com essa ausência de um sentido fixo, fechado em si mesmo. Os acontecimentos do personagem parecem sempre palpebrear a vertigem dos seus abismos interiores. Forma e conteúdo – ambos marcados pelo caráter inorgânico – fundem-se e promulgam uma narrativa que outorga ao próprio vazio uma capacidade explosiva. Tudo se passa como se o fogo pudesse surgir mesmo no vácuo. Construído sob essa esfinge indeterminista, o filme de João Toledo desponta como um dos curtas mais promissores da Mostra Brasil.

As indicações do GPS no início do filme já indiciam o desnorteamento de uma busca fadada a nada encontrar, senão o vazio da própria (in)existência. Logo em seguida, a visualização do personagem atrás das grades da janela denunciam o aprisionamento pelo qual se dilacera a existência do personagem. As primeiras informações verbais acerca dele são obtidas a partir da descrição feita por aqueles que seriam seus pais adotivos. Esse modo de apresentação do personagem é muito significativa se pensarmos em algo que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade: uma impossibilidade de falar de si. O discurso do sujeito sobre si mesmo é invalidado em função da miríade de instituições que colonizam o discurso e detém a verdade sobre eles. O filme, já em seu começo, põe em questão duas delas: a família e a psiquiatria. Ambas estão instaladas no cerne da sociedade capitalista, constituindo-se, assim, como um dos seus principais aparelhos controladores.

Neste ponto, é necessário lembrar que a sociedade capitalista põe em ação seus modelos hegemônicos de subjetividade, reproduzem e internalizam, com seus aparelho sociais de reprodução, um sistema de repressão e limitações que inviabiliza o discurso do sujeito. Uma nova gramática do ser nasceu com a psiquiatria e moldou de maneira decisiva a percepção do sujeito contemporâneo, funcionando como uma peça importante para a consolidação dos modos de gestão social do capitalismo. O personagem “D” é analisado, descrito, codificado por uma psiquiatria que acredita possuir a verdade quanto à loucura; quando, na realidade, é a loucura que possui a verdade sobre a psiquiatria.

A família, por sua vez, opera uma reificação do indivíduo ilustrada tanto nas ordens que lhe fizeram de pronto quanto no distanciamento inscrito na própria fala do pai que, na presença do filho, fala com a mulher utilizando o pronome da terceira pessoa, evidenciando as formações insulares desenvolvidas no seio da estrutura familiar. Aparentemente acostumado a esse tratamento, o filho chega ao café de costas, como se assim pudesse passar despercebido, sem a necessidade de escutar os pronunciamentos dos “pais”.

Essa indeterminação pessoal terá como consequência uma despossessão de si mesmo, um esvaziamento do ser. O curta retrata essa decorrência quando o personagem, na presença dos pais, desaparece subitamente, deixando à vista apenas um quadro composto por uma infinitude de formas geométricas sem conexão entre si. A desconexão das figuras do quadro simbolizam a própria desconstrução a qual o sujeito está submetido na sociedade capitalista. A cena nos faz recordar Os Residentes (2010), outro filme da nova safra do cinema mineiro que guarda semelhança formais com o curta em questão.

A sequência seguinte, além de contar com uma beleza plástica exuberante, acentua ainda mais esse vazio. A cena transcorre aparentando que as pessoas que andam de patins estão deslizando sobre um nada flutuante. Destaca-se o plano-sequência do travelling lateral executado com uma matemática dos movimentos bastante preciso. O espectador fica sob o estase da experiência do voyeurismo.

Desde cedo, é possível perceber que o filme configura seus protocolos de organização de narrativa, planos, montagem, etc por intermédio das disposições psíquicas do personagem principal. O todo do filme é redefinido a partir do interior do sujeito. Em outras palavras: trata-se da construção de uma espécie de dramaturgia subjetiva centrada na figura elementar do personagem principal, o “D”. Ao adotar essa estratégia, o filme constrói sua diegese e mobiliza seu personagem cujas ações organizam um tempo fora do comum e variável em sua complexidade, mas mantendo uma conexão particular com a experiência social, isto é, com a sociedade permeada pelas estrutura hegemônicas de construção de subjetividade.

Buscando relacionar o filme ao contexto das produções nacionais, busquemos um fragmento do ensaio de Hernani Heffner, publicado na Cinética, intitulado “Sem Futuro”. Analisando o cinema brasileiro contemporâneo, o crítico e conservador da cinemateca do MAM-RJ escreveu: “Não interessa mais, porém, a denúncia da opressão político-econômica, do colonialismo, do autoritarismo, por exemplo. O eixo desloca-se da luta coletiva para a afirmação individual pelo desejo, pela sexualidade, pela criatividade.” A partir dessa conceituação, é facilmente assinalável que o filme de João Toledo, à sua maneira, se insere nessa tradição desse “Novíssimo Cinema Brasileiro”

Em seus desvelamentos, o curta assinala um conjunto de situações marcadas por uma repetitividade do gesto. O bonequinho do banheiro que executa um movimento eternamente igual, o telefone que toca indefinidamente, a chamada que ninguém atende, a bola de tênis que salta de um lado para o outro, as cigarras que entoam exaustivamente suas cantigas noturnas, o carro que insiste em não funcionar, as paisagens da cidade que se repetem avenidamente, o cabelo que teima em não obedecer ao movimento do pentear. A ausência de sentido acentua a ineficácia dos gestos, tão sem solidez como a própria materialidade do vazio. Tudo se passa como se a vida houvesse de ser repetida sempre a mesma assim como a piada dos mineirinhos contada várias vezes durante o filme. No limite, o ato mais rebelde parece consistir em contar uma piada até pulverizar a imaginação.

Numa cena fatídica, um amigo liga para “D” convidando-o para sair e ele responde mecanicamente: “não, não dá, tenho que trabalhar, não rola, não dá, não, não, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não rola, não dá, não rola, não rola, não rola”. A reiteração da fala é consoante ao mesmo ritmo de trabalho, atividade essa que impede-o de sair. O trabalho, enquanto atividade produtiva, requer uma uniformidade e repetição extenuante dos gestos. A relação profunda entre os regimes sociais de trabalho e a construção da subjetividade individual permite-nos compreender a associação entre trabalho e a repetição da fala. A instituição trabalho funciona como mais um elemento definidor do sujeito e, por consequência, de seus sofrimentos psíquicos.

A inadequação ao mundo do personagem é semelhante a do peixe que navega nas águas de uma privada, impedindo que o personagem urine, ainda que um mictório esteja posicionado ao seu lado. Até mesmo o estado orgiático da festa em que ele está não é capaz de retirá-lo de sua indiferença. A vida é revestida de uma inoperância como a fila de bebedor paralisada pela lentidão do personagem em beber água.

O final do filme permanece em aberto. O eclipse das circunstâncias – deambulação noturna e tanque de gasolina vazio – levam para um quarto de motel o personagem e um galão de gasolina. Não se chega a saber o que aconteceu. No entanto, tal indefinição não é nada mais que uma redundância. Afinal, o que é uma morte para quem parece já estar morto há muito tempo?

Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada está na Mostra Brasil 8. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2015

A Era de Ouro: o palco e a verdade

a era de ouro

por Bianca Elias –

A vida em torno de festas robotizadas pelas roupas pretas e o eletrônico tem grau de normalidade que vai dos paulistanos aos cearenses. Não cabe falar de uma pureza de raiz do paulistano que cresceu no coração do progresso econômico, pois quando não motorizada, a identidade mais miscigenada é a sua. Falamos aqui, ou falam Miguel Antunes Ramos e Leonardo Mouramateus, dos efeitos da cidade que perde suas convicções naturais e se transforma em impérios modulares de coqueiros e arranha céus de vidro; homens que se auto enclausuram com a identidade mantida no sotaque e mais nada.

A Era de Ouro aparenta um resultado final (ao menos até agora) de ensaios sobre a vida dentro dos muros invisíveis e sobre quatro rodas. Os realizadores em codireção sintetizam o que é brincar de atuar para a conquista do sucesso profissional e, hoje não desvinculado, pessoal. São tomadas diretrizes de duração de planos, escolhas de cores e palavras corporativas para a imersão no espectro burguês que não se discernem da presença preponderante desses elementos ermos na vida real: um incômodo invasivo toma conta do espectador que, mesmo não indo na contramão da ideologia mercadológica que se retrata, identifica um constrangimento ainda que não saiba qual é. O contato entre Simone e David, que se viram pela última vez no Ceará, acontece pela vitrine do viver em São Paulo e, por conta das tentativas vindas dele, de se resgatar o elo antes vivo e poético entre os dois. Um passado teatral que os conecta respinga apenas na teatralidade de Simone na vida real.

E e Salomão, ambos no festival deste ano e codirigidos por Miguel, em mesmo nível, mas em teor documental, resgatam pelo sarcasmo de suas imagens e silêncio a representação dos estacionamentos e do templo da Igreja Universal do Reino de Deus da mesma maneira em que se perpetua um papel para os personagens da ficção: ao alcance da aprovação em sociedade cria-se um discurso convincente sobre si mesmo e para si mesmo. O Completo Estranho (também em mostra) de Leonardo Mouramateus se situa dentro do mesmo universo em Fortaleza e cria o cenário para falar da sobrevivência conquistada através das máscaras, onde perucas e danças ensaiadas fazem parte de uma encenação pensada para ser verdadeira.

Relações esfriadas pela vida e outras esquentadas pela ideia de ser arte consagram-se e, sem força, acordam no dia seguinte sem esperança para ser. Numa descaracterização dos personagens, que vem sem informações adicionais que não seus nomes e vícios de entonação, poderíamos pensar no filme sendo realizado diegeticamente em qualquer lugar do Brasil, quiça do mundo.

Os dois diretores traçam caminhos que passam pelo entendimento da fraqueza relacional e/ou o fortalecimento inevitável das barreiras de concreto, para que juntos pudessem sintetizar um propósito, um fim em si: o alcance de consciência na retomada da atuação teatral. A Era de Ouro termina com Simone cedendo aos textos por ela conscientemente esquecidos e os declamando em voz alta, aos prantos, exterminando sua outra aparência e dando espaço ao riso por ferir David com seu cartão de visita de vidro – o papel dela o fere, e lhe invade o riso leviano do reconhecimento. Se atuar é estar em palco, então é o palco a única possibilidade da verdade.

A Era de Ouro está na Mostra Brasil 9. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2014

Roda mundo, roda gigante

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Ao se utilizar da Arqueologia para problematizar o despejo dos vários moradores das favelas brasileiras (e, porque não, mundiais) destruídas pela especulação imobiliária, A Máquina da Ruína (The Ruin Machine) procura realizar uma arqueologia do presente. Ao projetar um olhar que se quer deslocado temporalmente, o filme procura nos instigar a tomar agora atitudes que o fluxo ininterrupto do tempo não nos permitiria em nenhum outro momento histórico.

O curta-metragem de Bruno Vianna inicia-se com uma breve introdução a respeito da função da arqueologia, dizendo-nos que “o método arqueológico pode ser aplicado a qualquer coisa”, já que seu intuito é o de permitir compreender os modos de vida e de estar no mundo dos vários indivíduos sobre os quais se aplica.

Juntamente ao som das diversas falas e informações em off, nos são apresentadas imagens de indivíduos os quais deduzimos ser arqueólogos. Estas imagens nos chegam saturadas e truncadas em seu transcorrer inconstante, borrando seus contornos conforme se movem lentamente. Vemos ali estampados os traços deixados por aqueles homens e mulheres ao longo do tempo que habitaram a tela.

Toda esta construção fílmica parece caminhar rumo a uma evidente crítica à ação do capital escondido sob a égide do “progresso” e do “desenvolvimento”. Passamos a ver imagens documentais da bruta remoção e destruição de comunidades periféricas. Assistimos àquilo que o filme formula como um futuro sítio arqueológico, ouvimos um morador revoltado gritando aos tratores que aquilo ali destruído não são apenas casas, mas também vidas e histórias de seus moradores.

Temos então contrapostos dois momentos discursivos, um que pretende nos instigar a olhar para o passado e revirarmos suas ruínas à procura de uma maior compreensão histórico-social, e outro que nos coloca ao lado dos moradores expulsos, próximos de sua dor e revolta. Estes movimentos acabam por perigosamente aproximar e associar duas forças: uma delas inevitável à ação do tempo e das catástrofes naturais – como no momento em que um dos estudiosos nos lembra a erupção do Vesúvio que destruiu Pompeia – e outra inerente à expansão destruidora do capital, que se desenvolve às custas da obliteração daquilo que lhe impõe resistência.

O filme parece criticar o ataque sistemático às populações pobres através de uma delicada abordagem da ação destrutiva do “progresso” sob o olhar arqueológico: tanto a natureza quanto os homens destroem, cabe detectarmos a razão, a necessidade e a justiça de tais impulsos para que possamos tomar diante deles a mais correta atitude.

Para um filme que lida com arqueologia, talvez A Máquina da Ruína pudesse ir mais a fundo na problematização desta força que destrói favelas e gentrifica cidades mundo afora: somos apresentados aos efeitos e não às causas. Apesar de interessante este seu ímpeto por lançar um olhar histórico sobre um presente tão comumente desenraizado e alienado frente aos seus alicerces político-ideológicos, suas pesquisas como filme que intenta ir além do senso comum parecem se dar ainda muito superficial e timidamente. O que alimenta A Máquina da Ruína?

Bruno Marra

A Máquina da Ruína está na Mostra Brasil 3. Clique aqui e veja a programação do filme no Festival de Curtas 2013