AO VERME QUE PRIMEIRO ROEU AS CARNES BRASILEIRASRepública das saúvas, de Piero Sbragia

por Gabriel Marçal

A ironia, vergonha, tristeza e o abismo trazidos por República das Saúvas, de Piero Sbragia, provocam efeitos estranhos, sentimentos análogos aos de quem assistiu o Brasil da pandemia. Num exercício de colar recortes tão díspares quanto imagens das saúvas (formigas nocivas)  se alimentando de uma vegetação, paisagens de prédios em São Paulo e um conjunto de áudios das falas mais aberrantes de Jair Bolsonaro, o diretor cria um universo absurdo que, em vez de confundir, parece explicar o Brasil de hoje: um país onde “a realidade não existe” (frase utilizada no curta), ou existe de maneiras paralelas. Onde a morte diária de milhares de pessoas não mais impressiona, é como se os vermes e as pragas tivessem tomado o poder e convencido a população de que estava tudo bem se a sua plantação fosse destruída.

Estamos num documentário experimental que possui um detalhado desenho de som e uma montagem disruptiva que traz climas dissonantes. A relação entre as formigas destruidoras e o Brasil é fácil, uma vez que esse é um país cuja colonização teve o único objetivo de extrair riquezas sem qualquer precedente. Outros animais aparecem, como o gado e o burro, ambos relacionados com os discursos do presidente, que ocorrem durante todo o filme. A utilização das falas de Bolsonaro sobre a pandemia tem sido recorrente em documentários e até ficções. É um recurso potente (que nem sempre dá certo), e que aqui tem um efeito dúbio: a sua incessante utilização é vertiginosa, tornando-se ao mesmo tempo um elemento rítmico chocante e cansativo.

Esse eterno retorno cria um sentido cíclico, de que essa destruição da terra, cultura e povo nunca cessa no Brasil. A clareza da analogia entre os animais e o presidente pode ser vista como um caminho fácil, mas aqui aparece como parte de um mundo bizarro – A Revolução dos Bichos vem à cabeça –, e o clima de ficção científica tem uma ironia que beira o humor tosco. República das Saúvas é inteligente na forma como nos faz sentir esse lugar marcado pela violência de séculos e formado por um sistema de sobrevivência primitiva que reflete até hoje. Outras imagens complementam esse universo, como os céus trovejantes e arranha-céus.

As filmagens das formigas, que em um documentário convencional seriam acompanhadas por uma narração sobre sua ação na natureza, mas que são aqui sobrepostas pelas falas do presidente, causam uma experiência tátil significativa. Há ainda outro elemento irônico que traz perplexidade: as saúvas são pragas que fazem parte de um ecossistema regenerativo. O mesmo não pode ser dito de nós, que ultrapassamos, principalmente a partir do capitalismo, qualquer regeneração. Portanto, um país onde humanos são tratados como simples agentes naturais (em um mundo antinatural), que existem apenas para sobreviver, largados nas adversidades sociais e patológicas, é um cenário que só não é distópico porque já é verdadeiro. A realidade pode não existir, mas as feridas são reais. Por quanto tempo as carnes e os espíritos vão aguentar?

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