CAMINHO DE SEMPRE

Mulher que anda só

 

A lei que permite que mulheres, idosos, travestis e transexuais desçam “fora do ponto” de ônibus na cidade de São Paulo, entre 22h e 5h, foi regulamentada em 26 de outubro de 2016. Na ocasião, lembro que eu, feminista, fiquei aliviada. Pensei nas mulheres que não têm as mesmas condições que eu e que precisam garantir a vida trabalhando à noite e voltando em horários absurdos para casa. Lembrei-me das vezes em que caminhei só na rua, e como tive medo. Lembrei cada passo, e em seguida cada olhada para trás ao perceber a presença de um vulto. Lembrei-me do novo respirar ao perceber que também era uma mulher atrás de mim, e do apertar o passo, ao ver que era um homem. Lembrei-me de um dos primeiros textos que me aproximou ao feminismo, que enumerava tudo o que eu não podia por ser mulher. A independência que me era tirada. O simples direito de ir e vir que me era negado por não haver segurança. Lembro-me de pensar que estavam fazendo algo a respeito.

“Caminho de Sempre”, de Bruna Vieira e Sarah Corsi, que integra a sessão Oficinas Brasil, me abriu os olhos, e isso, por si só, já é algo muito potente. Provavelmente, cumpriu seu maior objetivo. Ao vê-lo, lembrei-me de tudo isso, e da lei que logo esqueci. Mas que a mulher que anda só não esquece. Pois de nada adianta encurtar o caminho e descer fora do ponto, quando o ônibus não faz o caminho que a deixa na porta de casa. Quando o caminho de sempre é na favela e nas quebradas, e ela continua a voltar só e sem segurança. A lei, na verdade, é mais uma vez a política brasileira tentando tapar um buraco, em vez de atacar o problema. E é tão eficiente em tapar o buraco que o marketing funciona para algumas pessoas. Funcionou em mim. Mesmo quando agora parece tão óbvio que, se não é seguro para uma mulher chegar até sua casa, o problema não é onde o ônibus para, mas sim o caminho por inteiro. E sua casa, que também não é segura. E a segurança não é apenas no quesito da invasão do corpo por um homem. Uma casa sem saneamento básico também não é segura. Uma casa derrubada por enchentes e adentrada pelo frio não é segura.

“Caminho de Sempre” começa com vozes de mulheres em off, que pedem ao motorista que ele pare fora do ponto. Num primeiro momento, achei engraçado, pensei até no motorista, tendo que fazer inúmeras novas paradas, o caminho pingado, para não correr o risco de ser multado em R$ 360. A repetição é irônica, e sinaliza o caminho que o filme como um todo irá tomar. O primeiro plano, logo após os inúmeros pedidos femininos, é a mão de uma mulher enquanto segura a chave de casa.

Lembro que, na 14a. edição da FLIP (Feira Literária de Paraty), assisti a uma palestra do escritor Abud Said, que, ao tuitar seu dia a dia na guerra da Síria, ficou mundialmente famoso. Ele não entregou o que os jornalistas esperavam. Não contou uma grande história dramática, como o que escrevia na internet. Não se emocionou, não tinha um pesar. Ao contrário. Abud Said passou seu tempo inteiro falando das mordomias que estava recebendo, e de como não sabia como estava ali; que, ao contrário, um dia começou a escrever o óbvio, o cotidiano que vivia todos os dias, e o mundo reagiu com choque e espanto. Foi um tapa na cara da burguesia intelectual que frequentava o evento, e esperava relatos de “outro mundo”. O que Abud Said falou, sem precisar dizer muito, é que seus relatos eram desse mundo mesmo, o mundo em que você acorda tranquilo na sua casa, sabendo que viverá pelo resto do dia.

Lembrei também da crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector. Seu relato do ato de justiça que matou um homem a 13 tiros. Mineirinho, um famoso criminoso, havia sido fuzilado pela polícia, e nas ruas reinava um sentimento dúbio. A pergunta de Clarice era por que tamanha indignação existia dentro das pessoas, quando todas sabiam que Mineirinho havia matado muito mais.

Sabiamente, ela responde:

“Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.”

Na sua crônica, Clarice apresenta o conceito do “sono dos sonsos”, esse sono que nos permite dormir à noite, ao acreditar num senso deturpado de justiça. O filme “Caminho de Sempre” me fez lembrar do meu sono, tranquilo, fácil, falso. Me fez lembrar do meu sono, ao acreditar em leis tão absurdas. Lembrei-me das paredes da minha frágil casa, que se sustenta em razão do que eu decido emburrecer dentro de mim. Clarice, em seu conto, discorre sobre como programamos nossos dias em função de que a casa não estremeça e nosso sono permaneça tranquilo.

Meu sono dos sonsos foi perturbado, pois ver o medo no olhar da mulher que anda só é reconhecer o medo apagado em mim. Eu me vi no seu andar. E o que acontecerá agora? Continuarei vivendo sob esta casa fraca, que se sustenta sob nosso fraco conceito de justiça.

(Louise Belmonte)

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