DONA VILMA

Tons de grandiosidade histórica

Dona Vilma surge, no curta homônimo exibido no programa Mulheres Negras 1, retratada como antítese de muito do que é vigente na sociedade brasileira. Na sociedade, vemos os credos (religiosos ou não) pessoais em confronto, com desdobramentos que violentam minorias. A antítese que Dona Vilma encarna propõe uma síntese de resolução: a liderança feminina e negra, envolta pelo espírito candomblecista, diverso, múltiplo, que se faz e se mostra diante do culto aos diferentes elementos naturais, consegue ser capaz de abarcar diferentes credos, pessoas, culturas e origens, e desse caldo instruir tolerância, unidade e, não obstante, democracia através de luta popular.

Uma personagem real constituída como produto de um candomblé de ambientação e condição histórica, um candomblé propiciador e cuidador daqueles que virão suprir uma necessidade histórico-social para si e para o outro, portanto, remetindo diretamente ao sincretismo religioso fundador. O documentário expõe como o pioneirismo desse fenômeno político moderno que se formou em torno de Dona Vilma só poderia ter sido erigido diante de tais condições citadas de racismo e exclusão. A religião de matriz africana, mais viva do que nunca, surgiu no passado brasileiro como produto-síntese de necessidades históricas, e continua ainda hoje sua luta contra a perseguição, formando individualidades no caldo da multiplicidade e da liderança de um verdadeiro quilombo urbano.

Essas contingências atestam resistência, mas também sugerem instintivamente um modelo de sociedade diverso, coletivo. Abarca o diferente, fortalece e dá voz ao oprimido, situa historicamente, considera o bem-estar social. Tudo que tem sido combatido desde sempre pelo establishment ahistórico individualista no qual as pessoas estão desconectadas das outras e ligadas apenas pela lógica da exclusão e da competitividade em suas diversas consciências. A hierarquia dentro do candomblé é uma hierarquia de funções e competências, e não de posse e/ou dominação. Além disso, quão maior a posição hierárquica, maior a responsabilidade social para com seus filhos. É esse tom de resgate de modus operandi e de valorização do olhar social que o curta assume e chama para a atualidade.

Apresentar nossa icônica personagem apenas depois de um terço da obra possibilita criar expectativas e já iniciar uma caracterização subjetiva diante do discurso de terceiros, pra quando Dona Vilma aparecer falando misturar no espectador sentimentos de admiração já com nova vestimenta, própria da paixão e da força com que Dona Vilma apresenta ao vivo em nossa mente. Esse “ao vivo” que utilizo não é à toa. Ao aparecer nesse contexto descrito, Dona Vilma, mesmo já falecida, vive novamente, na tela, na mente do espectador e na história.

Dona Vilma aprendeu durante a luta e não com estudos formais, mas foi através desta mulher que a universidade pode se tornar mais democrática. Em vez de a universidade a priori já oferecer contribuição à sociedade tal como sua função designa, foi Dona Vilma que liderou campanhas para tornar a universidade melhor, e assim poder fazê-la servir melhor à população. Essa é uma linha clara do percurso fílmico que fora pensado para este documentário: contextualização de um capítulo popular de surgimento de uma individualidade, um retrato de liderança que extrapola a si e ganha tons de grandiosidade histórica.

(Rogério Henrique Gonçalves)

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